Diário do Alentejo

De Pias para a Europa, a “Fazer o que Ainda Não Foi Feito”

22 de outubro 2022 - 10:00
Os Camponeses de Pias e Paulo Ribeiro em tour europeia com Pedro Abrunhosa
Foto | José SerranoFoto | José Serrano

Começou no passado sábado, dia 22 de outubro, a tournée europeia de Pedro Abrunhosa, que conta com a participação do Grupo Coral e Etnográfico Os Camponeses de Pias e do músico bejense Paulo Ribeiro, espetáculo que se apresentará em palcos no Luxemburgo, Paris, Bruxelas, Beja e Londres. O “Diário do Alentejo” acompanhou o grupo até Lisboa e assistiu ao ensaio geral dos 27 cantadores com o músico portuense, que enalteceu o cante alentejano e a parceria, considerando, em entrevista ao nosso jornal, ser este um dos “momentos mais altos” da sua vida.

 

Texto José Serrano

 

Domingo, dia 16 de outubro, 09:30 horas. No autocarro da Câmara de Serpa, que transporta o Grupo Coral e Etnográfico Os Camponeses de Pias e o músico Paulo Ribeiro, são três as horas de distância que ligam Beja a Lisboa, contando com a benfazeja paragem, a meio caminho, para que as pernas se desentorpeçam do ângulo reto, imposto pelo assento.

 

Ao longo da viagem, e por entre o som da rádio e das várias conversas dos homens, uma voz, ininterruptamente cantada e irrepreensivelmente afinada, que se acompanha à viola, sobressai no veículo municipal em movimento.

 

É a voz de Rodrigo Aleixo, de 13 anos, o elemento mais novo do grupo, que, durante o trajeto, vai desnovelando o seu vasto reportório individual, brindando os companheiros com canções, como “O Pica do Sete”, e modas do cancioneiro popular alentejano, como a “Quinta-feira da Ascensão” ou “Fui Colher uma Romã”.

 

É já por cima do rio Tejo, no tabuleiro da Ponte 25 de Abril, que o benjamim dos cantadores pienses trauteia em tom saudoso, tal como a canção o pede, “Para os Braços da Minha Mãe”, da autoria de Pedro Abrunhosa, artista com ensaio marcado, dali a umas horas, com o coral – razão da deslocação do grupo à capital.

 

Um ensaio que se reveste de solenidade, pois é geral e antecede a tour europeia de “Passageiro”, espetáculo que o músico, em conjunto com Paulo Ribeiro e Os Camponeses de Pias, iniciará amanhã, dia 22, no Luxemburgo, e terminará em Londres, dia 11 de novembro.

 

Pelo meio, pisarão os palcos de Paris (dia 23 de outubro), Bruxelas (dia 25 de outubro) e Beja (dia 29 de outubro). Uma insuspeita parceria artística, entre a pop de Abrunhosa e o cante alentejano de Pias, que se estreou há três anos, no Festival Musibéria, em Serpa, altura em que Pedro Abrunhosa, os 26 elementos dos Camponeses e Paulo Ribeiro partilharam palco, pela primeira vez.

 

O músico bejense explica a origem desta partilha: “eu e os Camponeses de Pias, cuja cumplicidade musical existe há mais de 20 anos, elaborámos, em 2019, um projeto conjunto, intitulado ‘É assim uma espécie de cante’, que deu origem a um disco, no qual grandes êxitos da música pop portuguesa foram adaptados para o universo da linguagem do cante. Uma das músicas, deste disco, é, precisamente, “Momento”, do Pedro Abrunhosa que, nesse ano, em Serpa, nos convidou a com ele subirmos a palco. Desde aí já atuámos juntos em Alcochete e em Coimbra, espetáculos que, de forma natural, correram muito bem – o que originou o convite para integrarmos esta sua digressão europeia”.

 

Digressão que, para Paulo Ribeiro, se traduz num sentimento de “enorme alegria – uma vez que estes espetáculos significam que o cante tem esta possibilidade de viajar e de se apresentar em importantes palcos internacionais – e, ao mesmo tempo, de enorme responsabilidade, pois estaremos a representar o Alentejo, todos os cantadores e mesmo o País”.

 

Uma opinião corroborada por António Lebre, cantador e presidente dos Camponeses de Pias, para quem, a incumbência de atuar além-fronteiras é sempre uma “responsabilidade acrescida”, aconselhando os elementos do grupo que apreciem o regozijo de estar em palco “a fazer o que gostamos, que é cantar”, e a tirar o maior partido desta experiência, que será, “com certeza, muito gratificante, ao podermos levar à diáspora a dignidade da voz do Alentejo e mostrar a outros povos, outras culturas e outros países aquilo que bem sabemos fazer”.

 

O indisfarçável orgulho de ser representante deste Património da Humanidade é partilhado por Oliveiros Aleixo, pai do cantador júnior, alto e ensaiador do grupo, que considera, visivelmente emocionado: “nunca pensei que o cante alentejano chegasse a este patamar, o reconhecimento da Unesco embelezou-o e é agora visto de uma forma diferente de antigamente – o cante era o cante dos velhotes, ninguém queria saber disto, hoje tem outra dimensão. Por isso temos uma grande responsabilidade, tudo tem de sair mesmo bem, porque nestes dias, lá fora, vamos ser os embaixadores do Alentejo”.

 

Atento às palavras do seu progenitor, Rodrigo Aleixo sintetiza o que prevê vir a experienciar, nestas cidades estrangeiras onde ainda nunca esteve e nas quais irá atuar: “sinto sempre uma grande emoção quando canto, quando represento o Alentejo”.

 

A CHEGADA A LISBOA 

Parado o autocarro na Avenida da Liberdade, os cantadores seguem a pé até à Rua das Portas de Santo Antão, cujo número 58 alberga a Casa do Alentejo, repleta de turistas de múltiplas nacionalidades, que apreciam a beleza da invulgar arquitetura do edifício.

 

No pátio árabe, o grupo de cantadores alinha-se e “puxa” uma moda, a que se segue uma segunda, uma outra ainda, pedidas que vão sendo por calorosas ovações dos visitantes, muitos deles a experienciarem pela primeira vez a profundidade grave das vozes que ecoam, vibrantes e unas.

 

Em alguns dos visitantes nota-se a exaltação de registar, fotograficamente, um momento único, mas outros há que, incrédulos com a força da harmonia, baixam os braços, esquecendo por momentos o botão obturador das máquinas, procurando absorver todo aquele singular e surpreendente momento, sem ecrãs que os possam distanciar dessa experiência.

 

No final da refeição, que decorre no sumptuoso salão dos espelhos, com receita adequada à região que ali se representa – “Carne de porco à alentejana” –, João Proença, presidente da associação que gere o espaço, pede ao grupo que ofereça uma moda ao restantes convivas que ali se encontram a almoçar.

 

“Alentejo, Alentejo” faz-se então ouvir, com a solenidade que lhe empresta a melodia e a letra – Eu sou devedor à terra/a terra me está devendo/a terra paga-me em vida/eu pago à terra em morrendo – fazendo capitular de emoção o “público”, que atribui ao grupo um enorme aplauso, sob o qual os homens cantadores se despedem do Palácio Alverca, embaixada do Alentejo, na capital.

 

O ENSAIO 

São agora horas de subir até ao Parque Mayer, onde se localiza o Cineteatro Capitólio – Teatro Raul Solnado, local agendado para o ensaio. Os cantadores são os primeiros a chegar, aproveitando o tempo de espera para “estudar” as letras das canções do músico portuense em que irão participar – que conjuntamente com uma música original de Paulo Ribeiro e modas do cancioneiro popular alentejano constituirão o alinhamento do espetáculo.

 

A meditação musical é interrompida quando Pedro Abrunhosa surge, entusiasmado, no palco do teatro, acompanhado pelo guitarrista Bruno Macedo – ambos cumprimentam, um a um, todos os cantadores. O ensaio começa, com Abrunhosa ao piano, a dirigir, acatando as sugestões vindas de Paulo Ribeiro.

 

Às músicas inicialmente previstas serem cantadas em conjunto outras mais se lhe juntam. À medida que as horas passam, há um crescendo nítido de coesão musical, até ao ponto em que a surpreendente harmonia gerada pela união das músicas urbana e rural se faz sentir, notável, a quem está na sala, refletida na alegria coesa dos intérpretes e individual dos ouvintes – técnicos de som, jornalistas….

 

Em “Fazer o que Ainda Não Foi Feito”, Pedro Abrunhosa deixa cair um desabafo de contentamento – “maravilhoso, até a Torre Eiffell vai abanar, ao som das vossas vozes…”.

 

Esta insuspeita e profícua fusão, entre estilos musicais tão distintos, que permite fazer o que à partida poderia indiciar não poder ser feito, significa para Paulo Ribeiro “que o cante – para além de ser uma expressão cultural identitária de uma região –, como arte musical que é, pode interagir com outros géneros e que aqui, com a música de Pedro Abrunhosa, se concretiza de uma forma muito interessante, surpreendente até”.

 

A possibilidade deste experimentalismo musical, possibilitando uma nova abordagem ao cante, é defendida, também, por António Lebre: “nós, Camponeses de Pias, somos indiscutivelmente um grupo tradicional de cante alentejano, que nunca pode esquecer o cancioneiro que os nossos antepassados nos deixaram – dessa condição eu sou um fervoroso apologista. Contudo, o grupo nunca se inibiu de experimentar novos caminhos e desde 1968, ano da fundação deste coletivo, que tem feito espetáculos com outros artistas, como Maria Bethânia, Caetano Veloso, Xutos e Pontapés, Paulo Ribeiro, Vitorino, Rui Veloso, Janita Salomé, Kepa Junkera… tem sido uma série de encontros musicais, de possibilidades de entrosar diferentes culturas e expressões culturais. O grupo tem tido sempre essa capacidade”.

 

E sublinha: “abraçar projetos destes não nos faz perder a nossa identidade, antes pelo contrário – estamos a dar prestigio à nossa tradição, pois o cante cabe em muitos palcos. Este é mais um trabalho, é mais um ‘pulo’ que o cante dá e um enaltecimento para o grupo – orgulhamo-nos e envaidecemo-nos disso, o quanto baste. Venham mais desafios destes, que nós estaremos cá para os abraçar”.

 

Uma ideia de trabalho partilhado e de interação cultural que, mais uma vez, Rodrigo Aleixo facilmente resume: “foram precisos muitos ensaios, mas agora já bate tudo certo, agora já tudo faz sentido”.

 

No caminho de regresso, o autocarro avança por entre a noite que já vai longa, os cantadores dormindo, exaustos de um dia longo e feliz, sonhando, com certeza, nas modas que farão entoar, orgulhosos, nos palcos e nas ruas movimentadas de cidades distantes do seu Alentejo.

 

(Reportagem publicada na edição nº 2113 do dia 21 de outubro de 2022).

 

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