Diário do Alentejo

A angústia de quem quer falar de uma dor que não é física

15 de outubro 2022 - 09:00
Segunda-feira, dia 10, celebrou-se o Dia Mundial da Saúde Mental
Foto | Ricardo ZambujoFoto | Ricardo Zambujo

Nos últimos anos, os hospitais públicos não conseguiram dar resposta ao aumento do número de pedidos de ajuda aos departamentos de saúde mental, atrasando, até quatro meses, uma primeira consulta em psiquiatria. No Alentejo, a falta de psiquiatras e de enfermeiros especialistas é a principal causa apontada.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

Dois meses de espera. Este é o tempo estimado para uma primeira consulta geral em psiquiatria de utentes muito prioritários no Hospital José Joaquim Fernandes, em Beja. O tempo aumenta conforme o aligeirar da prioridade. Entre junho e agosto deste ano 190 pessoas aguardavam por esta primeira chamada, das quais 67 eram crianças e jovens.

 

O cenário repete-se na maioria dos hospitais. Esperar, atrasar diagnósticos e agravar comportamentos são normalmente a única opção. Quem lá chega queixa-se do pouco tempo que lhe é disponibilizado nas consultas de mês a mês. Os 45 minutos, ainda que cientificamente estudados, não lhes chegam.

 

M. sofre de ansiedade crónica desde que se lembra. Tem sido acompanhada por diferentes psicólogos e psiquiatras, ao longo das suas diferentes fases da vida, mas o nascimento dos filhos, o seu diagnóstico de esclerose múltipla e a morte da mãe agravaram a sua situação para uma depressão, também ela crónica.

 

“Eu sempre precisei de uma pessoa para conversar e desabafar e fazia-o com a minha mãe, só que quando ela foi embora eu fiquei sem apoio nenhum [porque] ela era uma amiga, uma confidente, uma conselheira… era tudo”, conta, calmamente, ao “Diário do Alentejo” (“DA”).

 

O colo de outrora é agora dado, quase na totalidade, pelas psicólogas e psiquiatras que a acompanham. Diz, com ternura, que é “tratada na palma das mãos” e que sempre que necessita de “conforto” alguém da área está lá. Sabe que o tempo que lhe é disponibilizado é o adequado para o seu tratamento, mas sente que precisava de muito mais.

 

 “Eu acho que em Portugal não há tempo suficiente [nas consultas], porque nós dizemos muita coisa e fica tanta coisa ainda por dizer. Eu vou, de mês a mês, e falo, falo, falo e o tempo termina e não me conseguem dar respostas, porque só têm 45 minutos para mim e depois há tanta gente a precisar”, refere, visivelmente desiludida.

 

“NO ALENTEJO E NO DISTRITO DE BEJA EXISTE UM GRANDE RISCO DE DESENVOLVER PSICOPATOLOGIAS”

O número cada vez maior de pedidos de ajuda cresce a cada dia que passa. As consultas hospitalares continuam sobrelotadas e as respostas frágeis. No Alentejo, sobretudo no distrito de Beja, o isolamento e a exclusão social são os principais impulsionadores de psicopatologias na comunidade adulta.

 

M. vive atualmente em Castro Verde e é uma das utentes apoiadas pelo projeto social da Cercicoa – Cooperativa para a Educação, direcionado para o reforço de respostas terapêuticas, ocupacionais e preventivas ao nível da saúde mental nos concelhos de Almodôvar, Ferreira do Alentejo, Castro Verde, Aljustrel e Ourique.

 

A intervenção, junto destas comunidades, passa por estabelecer um protocolo de serviço complementar com a Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba), sinalizando casos de doença mental e identificando necessidades de tratamento preventivo, bem como prestar apoio psicológico e implementar atividades de cariz cultural, artístico e desportivo de forma inclusiva.

 

“O Fórum Ocupacional de Expressão e Comunicação (FOEC) é um projeto de proximidade que colmata as necessidades existentes na região, ou seja, atenua a falta de psiquiatras e enfermeiros de psiquiatria e simplifica a grande dificuldade em aceder a consultas de crise atempadamente. [Este trabalho permite assim], manter os utentes num estado equilibrado o maior tempo possível, evitando surtos e diminuindo os internamentos”, explica o presidente da Cercicoa, António Matias.

 

O perfil de beneficiários do FOEC iguala os registos nacionais. Dos 43 utentes acompanhados, a maioria são mulheres, entre os 30 e os 50 anos, com uma doença mental diagnosticada ou em risco de desenvolver perturbações ao nível da ansiedade e da depressão e seguidas pelo Serviço de Psiquiatria do Hospital de Beja.

 

Para António Matias, os problemas associados à interioridade, que o distrito de Beja enfrenta, refletem-se também neste âmbito: o vasto e disperso território com débeis acessibilidades, a pouca oferta nas mais diversas áreas, a falta de investimento e de qualidade de vida tem condicionado a vinda de profissionais de saúde, principalmente nas especialidades com maior carência como a cirurgia geral, ginecologia e obstetrícia, otorrinolaringologia, pediatria, radiologia, urologia e psiquiatria.

 

“O facto de nós morarmos no interior do país e se continuar a não criar condições para as pessoas que [podem vir] e que estão cá é complicado, porque ninguém quer viver no Alentejo, afastado da saúde e dos centros de decisão. Os profissionais de saúde que estão cá vão embora e os que podiam vir não vêm, e isto [na área da saúde mental] faz com que não haja psiquiatras e psicólogos, ou seja, os técnicos especialistas em diagnóstico, e que uma primeira consulta demore muito tempo”, refere.

 

 

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“O ISOLAMENTO FOI UMA ‘BOMBA-RELÓGIO’” 

Habituada ao seu café matinal na pastelaria, sentiu-se aprisionada e sufocada durante os “difíceis” meses de confinamento. Os filhos, para a proteger, deixaram de a visitar, as vizinhas tinham medo de se aproximar, e limitavam a conversa, e as atividades da Cercicoa “ficaram em águas de bacalhau”. A estabilidade que sentia começou a ter falhas.

 

“Durante a pandemia foi horrível. Fechou tudo, eu estava habituada a beber o meu cafezinho e tive de comprar um frasco de café puro granulado e começar a bebê-lo em casa. Também os meus filhos, como conviviam com muita gente, quiseram proteger-me e não me vinham ver. Eu costumava dizer que morria sozinha e que só me encontravam já tarde”, conta.

 

Assim como abalou o mundo de M., a pandemia afetou negativamente a maioria dos doentes com psicopatologias. Os índices de ansiedade e receio estavam altíssimos em toda a comunidade e escalavam ainda mais em quem estava frágil psicologicamente.

 

“O isolamento foi um fiasco para muitas pessoas, o facto de estarem fechadas [conduziu] a situações de stress e de medo, deprimindo toda a população, mas estes sentimentos em pessoas com tendências depressivas e ansiosas foram uma ‘bomba-relógio’ para desenvolver ou acentuar psicopatologias”, esclarece António Matias.

 

Para Lúcia Espinho, coordenadora do FOEC, também o conflito entre a Ucrânia e a Rússia, associado à “incapacidade de gestão pessoal”, tem feito espoletar novos “quadros de doença mental”. Ainda assim, a psicóloga acredita que estes fatores foram também eles positivos, “despertando” ainda mais a sociedade para a igual importância da saúde mental e física.

 

“IMPLOREI NO CENTRO DE SAÚDE PARA ME JOGAREM A MÃO, PORQUE ESTAVA MESMO MUITO MAL”

A estabilidade emocional que M. tinha antes da pandemia não retornou por completo. A ansiedade geral que sempre sentiu viu-se reforçada com um internamento inevitável por conta da sua doença física. O desejo de voltar a casa era grande, mas a incerteza do que encontraria e do que conseguiria fazer autonomamente levaram-na a uma crise. Deixou de comer. Deixou de beber café. Perdeu peso. E pensou no suicídio.

 

“Em março, não sei se foi pela mudança de medicação, mas desabou-me alguma coisa em cima. Senti-me ansiosa e deprimida por não saber se conseguia fazer as minhas coisas em casa e, por isso, deixei de fazer as minhas refeições e de beber café, fiquei sem vontade de comer e perdi peso”, conta emocionada. “Eu tinha receio de me levantar da cama de manhã só de pensar que tinha de comer alguma coisa para poder tomar a dose da medicação”.

 

M. sabe que estes pensamentos são trazidos pelo seu transtorno psicológico e que é traída pela sua mente, diversas vezes. Recorreu ao centro de saúde e implorou ajuda. Recebeu um novo acompanhamento na área psiquiátrica, onde a medicação foi ajustada, e reforçou o apoio psicológico.

 

“Felizmente essa parte consegui passar e dar a volta [à minha mente]. Foi muito difícil, mas agora já como, já cozinho, já tenho vontade de sair, de fazer pequenas limpezas em casa e vou voltar para algumas atividades do FOEC”

 

 

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“É MUITO IMPORTANTE PESSOAS COM AS MESMAS PROBLEMÁTICAS MENTAIS CONVERSAREM”

M. vê a sua situação como qualquer outra doença. Tem consciência que o largo sorriso que carrega consigo e com que recebe os outros por vezes desaparece para dar azo a pensamentos sombrios que a inquietam.

 

Para a psicóloga, ainda que o estigma seja recorrente, existe cada vez mais “uma grande abertura em se assumir e seguir em frente com apoio”.

 

“Sabemos que, quando falamos em saúde mental, há uma grande dificuldade na consciencialização [do próprio doente] sobre essa perturbação, ainda é difícil para uma pessoa com depressão assumir esse problema e pedir ajuda sem vergonha. [Contudo], sinto que cada vez há mais o pensamento que temos de melhorar a nossa saúde mental”, realça Lúcia Espinho.

 

M. concorda. O FOEC, além de lhe ocupar os tempos com atividades lúdicas e de a atender psicologicamente sempre que necessita, tem-lhe dado a oportunidade de conviver com pessoas com doenças mentais que a têm ajudado.

 

“O FOEC serve também para nós conversamos com uma e com outra, ouvirmos e darmos opiniões e descobrirmos, com pessoas com as mesmas problemáticas mentais, coisas que dão resultado para nos distraímos. Porque acho que nós somos muito bem compreendidos por aqueles que sofrem o mesmo que nós, pois quem não passa, não entende, nem compreende, o nosso sofrimento”, afirma.

 

“A CONJUTURA ATUAL É PESSIMISTA”

António Matias não consegue perspetivar um cenário otimista para o futuro da saúde mental no Baixo Alentejo. O agravar cada vez mais veloz da interioridade, com o centralismo dos serviços e a perda de decisão para Évora e Lisboa, o número crescente de regiões envelhecidas e isoladas e a continuada falta de incentivos para psiquiatras e especialistas da área de saúde mental deixam antever uma nuvem negra.

 

“Eu gostava de ser otimista, mas a conjuntura atual é pessimista. Se fizermos uma análise muito superficial e inicial não temos indícios [de que os próximos anos sejam] favoráveis. Nós fazemos a nossa parte, nós vamos criando estruturas aos números que aumentam, mas o nosso contributo é muito pequeno para aquilo que seriam as necessidades deste grande território”, garante.

 

Para já, ao nível da FOEC, as expetativas estão no alargamento da sua rede de apoio a mais beneficiários, superando o teto máximo estipulado, e em integrar, cerca de 30 por centos dos atuais utentes, profissionalmente.

 

O sorriso de M. por enquanto mantém-se. O café e as conversas com as vizinhas também. Não sabe por quanto tempo os pensamentos sombrios a deixarão sossegada. Uma semana. Um mês. Um ano. É imprevisível e não controlável. É difícil acordar diariamente sem saber como será o fim, com ou sem surtos.

 

Ainda que a maioria das psicopatologias sejam apelidadas de “novos males do século XXI”, elas estão presentes há décadas, mas só agora começaram a ser olhadas e aceites com maior naturalidade. Hoje, é fundamental falar sobre saúde mental e ouvir quem sofre de doença mental. Hoje, é imprescindível olhar para o Baixo Alentejo com uma “discriminação positiva” nestas situações onde há falta de serviços e profissionais de saúde que façam a diferença na vida das pessoas. Hoje, a região precisa de mais respostas.

 

FOEC UMA “METODOLOGIA EXPERIMENTADA” DE SUCESSO

O Fórum Ocupacional de Expressão e Comunicação (FOEC), da responsabilidade da Cercicoa, teve a primeira intervenção experimental entre 2010 e 2014, com 80 beneficiários.

 

Para o presidente da cooperativa, António Matias, esta iniciativa, “nada especial e muito simples”, mostrou grandes resultados, ao “reduzir a taxa de internamentos psiquiátricos em 90 por cento”.

 

Atualmente, apoia 43 beneficiários, de um teto máximo de 60, e prevê realizar 75 por cento das 242 ações sociais de promoção da saúde mental, da reabilitação psicomotora e da inclusão social e profissional na comunidade de pessoas com doença mental.

 

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