Diário do Alentejo

Quatro décadas de “perseverança” do Centro de Paralisia Cerebral de Beja

24 de setembro 2022 - 13:00
“Estes são 40 anos de história e de intervenção”
Foto | Centro de Paralisia Cerebral de BejaFoto | Centro de Paralisia Cerebral de Beja

O Centro de Paralisia Cerebral de Beja (CPCB) celebra 40 anos de “trabalho e perseverança”. O “Diário do Alentejo” conversou com a diretora da instituição, Ana Maria Baptista, sobre o balanço, as dificuldades e a importância do CPCB para a comunidade, ao longo destas quatro décadas, bem como acerca das perspetivas para os próximos anos.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

A incerteza da vinda de uma trovoada contrasta com a calma aparente que vem de dentro do grande edifício branco do Centro de Paralisia Cerebral de Beja (CPCB). Do lado de fora, o sol teima em espreitar enquanto a velocidade agitada e preocupada da cidade não entra pelos portões.

 

Ao longo das salas e corredores, parte dos funcionários já entrou ao serviço e está pronta para mais um dia de trabalho, insistência e conquista com os seus utentes.

 

Numa das grandes salas de reuniões, decorada com alguns dos quadros que não foram vendidos das edições anteriores da exposição anual “Arte numa Perspetiva Diferente”, da autoria dos próprios utentes, Ana Maria Baptista, a atual diretora da instituição, faz um balanço positivo do “serviço prestado na região” pelo CPCB ao longo das últimas quatro décadas.

 

O aumento do número de valências, beneficiários e funcionários são, neste momento, um sinal claro que “no geral as coisas correram bastante bem” e que este “projeto de vida” tem sido um êxito no “apoio às pessoas com deficiência” do distrito de Beja.

 

O início do “sonho”, em 1982, pensado por um médico psiquiatra bejense, surgiu da necessidade de se olhar para a comunidade de pessoas com deficiência e prestar-lhe o devido apoio nas áreas da saúde, terapêutica, educação, acção social e socioprofissional. Volvidos 40 anos, a área de intervenção é mais vasta, quer em número de respostas, quer em número de utentes. E constante.

 

“Nós temos aqui nove valências que dão resposta a mais de 600 pessoas com deficiência ou incapacidade [de forma contínua]. O que nos acontece, muitas vezes, é que começamos com utentes a partir dos zero anos, ao nível da Intervenção Precoce, e, posteriormente, estes vão sendo acompanhados, [ao longo dos anos], nas mais diversas valências”, explica, ao “Diário do Alentejo”, a diretora.

 

Atualmente, são nove as áreas de auxílio prestadas: na Intervenção Precoce, dos zero aos seis anos, na Escola de Ensino Especial (EEE), dos seis aos 18 anos, no Centro de Atividades Ocupacionais (CAO), no Apoio em Regime de Ambulatório, no Centro de Apoio à Vida Independente (CAVI), no Centro de Recursos para a Inclusão (CRI), na Formação Profissional, no Centro de Recursos para o Emprego (CRE) e no Lar Residencial. Paralelamente, o CPCB assiste também na categoria de Produtos de Apoio, ou seja, na aquisição e entrega de equipamentos de forma a melhorar e facilitar a vida autónoma, como cadeiras de rodas elétricas, carros adaptados ou computadores funcionais para determinados défices motores ou cognitivos.

 

O trabalho desenvolvido nos últimos anos tem deixado marcas bastante visíveis na confiança, autoestima e independência dos utentes do centro. Os diversos projetos adotados, como a “Horta de Todos”, são um dos principais impulsionadores desta nova forma de ver a vida.

 

Este, por sua vez, é um projeto “arrojado”, situado a três quilómetros da cidade de Beja, e que visa não só despertar o gosto dos utentes pela agricultura e jardinagem, como também estimular e capacitar os utentes em contexto real e promover a sua estimulação sensorial.

 

As atividades praticadas são diversas, desde as hipoterapias, com a atrelagem adaptada e a equitação terapêutica, às terapias em meio aquático e aos treinos de atividade de vida diária.

 

“A Horta de Todos já é uma estrutura da qual nós dispomos há muitíssimos anos e agora estamos a tentar canalizá-la com a reconversão da casa que lá está, para tornar todo o espaço mais adaptado”, refere a, também, técnica do CPCB.

 

Segundo Ana Maria Baptista, esta já se encontra em funcionamento e contém uma sala de condição física, uma sala de acompanhamento terapêutico e uma cozinha adaptada equipada por “algumas ajudas de mecenas”.

 

“CADA VEZ SURGEM MAIS CASOS DE CONJUGAÇÕES DA DEFICIÊNCIA COM PROBLEMAS DE SAÚDE MENTAL”

Ainda assim, nos últimos anos, o perfil dos utentes que têm chegado até ao centro sofreu alterações que não denotam “um bom pronúncio”. Segundo Ana Maria Baptista, “temos assistido à conjugação da deficiência com problemas de saúde mental”, o que deixa os profissionais em constante alerta e em articulação com o departamento de Saúde Mental da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba).

 

“O facto de uma pessoa ter uma deficiência não significa que tenha problemas de saúde mental, mas nestes últimos tempos sentimos que efetivamente vão aparecendo mais pessoas com estas duas problemáticas associadas, o que é preocupante”, realça.

 

Outra característica que se tem vindo a manifestar é o retorno de crianças e jovens com necessidades especiais para a Escola de Ensino Especial (EEE), face à incapacidade de resposta do ensino regular.

 

“O país não tem muitas EEE, estas têm vindo tendencialmente a desaparecer face às políticas de inclusão. No entanto, estamos a assistir a um movimento inverso,  [onde]   o ensino regular não tem capacidade para dar resposta, sobretudo aquelas crianças que têm deficiências mais comprometedoras e mais limitativas, e portanto estas estão agora a ser, outra vez, encaminhadas para a nossa escola”, afirma.

 

Ainda que esteja a ocorrer um ligeiro aumento, para já, no CPCB, este não se traduz num grande número de crianças inscritas. Este ano letivo, 2022/2023, a “pequenina” EEE dá resposta a 12 crianças, sendo uma das valências com menos “meninos”.

 

“40 ANOS É MUITO TEMPO E CERTAMENTE MUITA COISA SE ALTEROU”

Os dias nem sempre foram risonhos. As dificuldades que se fizeram sentir nas últimas décadas, ainda que transversais a todo o sector, deixam marcas e cautelas. A legislação, a complexidade dos trabalhos e o fator económico têm sido as principais barreiras nos últimos 40 anos.

 

“Cada vez mais as coisas vão se complexificando, a própria lei e regras que temos de seguir face ao número de tutelas com que trabalhamos são mais difíceis, além de termos de ver sempre muito bem as questões financeiras. Sabemos que, por um lado, temos de fazer investimentos para melhorar a nossa prestação de serviços e cuidados, mas, por outro, temos a consciência que temos de equacionar uma forma da instituição ter algum fundo de maneio. Isto exige aqui um racionar muito bem as receitas e os custos para que a instituição se mantenha sustentável”, esclarece Ana Maria Baptista.

 

Como se não bastasse, os últimos dois anos de pandemia complicaram ainda mais a situação do CPCB. “Durante a pandemia nós sentimos muitas dificuldades, mas penso que estas foram também transversais a todos porque ninguém estava habituado, adaptado e consciencializado para começar a agir de uma outra maneira, a conviver de uma forma completamente diferente e a ter um conjunto de cuidados para os quais não estávamos despertos”.

 

O investimento feito em Equipamentos de Proteção Individual (EPI), a gestão de pessoal, aquando do surto em janeiro de 2021, e a paragem forçada das terapias, decretada pelos sucessivos estados de emergência, tiveram “repercussões grandes” ao nível económico e social da instituição.

 

Para Ana Maria Baptista, este último foi o principal “aperto” e aquele que causou mais preocupação e sequelas. “O maior constrangimento para nós, enquanto instituição, foi o facto de pararmos durante algum tempo a prestação dos nossos serviços, o que teve um impacto tremendo para as pessoas com deficiências a todos os níveis. Deixar de dar esse suporte e esse apoio, que é absolutamente necessário, foi muito mau”, revela.

 

A diretora relembra também o isolamento forçado a que os utentes do lar foram sujeitos face à proibição de visitas e o “impacto muitíssimo grande” causado. “Na altura as coisas foram difíceis. Houve uma congregação de esforços e, efetivamente, conseguimos ultrapassar aquilo que podia ter sido um problema maior e continuar a assegurar os serviços fundamentais. Mas, na verdade, ainda nenhum de nós tem condições de aferir quais são as consequências a médio prazo que tudo isto teve”, garante.

 

Ainda que o funcionamento dos serviços e visitas esteja recuperado, pelos corredores do Centro, os cuidados e as preocupações mantêm-se ainda hoje. Quem lá entra não julga que cá fora a vida parece retomar ao “normal”, que as máscaras não são utilizadas frequentemente e que já se fala da covid-19 como um acontecimento passado. O medo continua a espreitar, ainda que seja “importante retomar ao normal”.

 

“Agora estamos realmente a voltar ao normal. Temos a instituição aberta à vinda de outras pessoas e isso é sempre uma mais-valia, principalmente pelas parcerias que temos com algumas escolas profissionais e secundárias e com o próprio Politécnico de Beja e, portanto, fazemos aqui muita receção de estagiários de várias áreas e níveis de qualificação e isso é fundamental. [Contudo], continuamos ainda com alguns cuidados, porque o nosso público é de facto bastante vulnerável e temos de ter aqui uma atenção extra”, confirma a também coordenadora da área de Formação Profissional e do CRE.

 

 

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“COMEMORAMOS 40 ANOS DE HISTÓRIA E DE INTERVENÇÃO”

 

O aligeirar da covid-19 veio permitir também que o aniversário do CPCB fosse assinalado com uma programação extensiva durante todo o ano de 2022.

 

“Este ano, em que celebramos 40 anos, decidimos promover alguns eventos no sentido de assinalarmos esta data importante. Retomámos a atividade do Sunset Solidário e, a par disso, decidimos organizar um espetáculo, na próxima quinta-feira, e um seminário técnico, no dia 27 de outubro”, revela a diretora.

 

Segundo Ana Maria Batista, esta foi a forma encontrada para recordar o fundador e mentor da instituição, Artur Carvalhal, os anos “de história e intervenção” que o Centro tem dedicado ao serviço da comunidade e de angariar, também, algumas verbas importantes para a instituição que servirão para melhorar as instalações e as próprias atividades.

 

“HÁ ESPAÇOS PARA MELHORAR E NOVOS EQUIPAMENTOS PARA ADQUIRIR”

O futuro, por enquanto, não consegue ser perspetivado por Ana Maria Baptista. A certeza, para já, é que o serviço prestado pelo CPCB é “bastante diversificado” e o foco está em manter a sua qualidade com o mesmo número de valências.

 

“Nós temos muitas valências, prestamos um serviço bastante diversificado e [consequentemente], temos algumas restrições ao nível do espaço físico, uma vez que crescemos muito nos últimos anos. Enquanto direção, de facto, não prevejo a curto e médio prazo fazermos a aposta noutro tipo de valências”, confirma a presidente da direção.

 

Nos dois últimos anos de mandato, a direção investiu na reabilitação das casas de banho da instituição e de um novo piso antiderrapante, climatizado e próprio para as cadeiras de rodas. A vontade futura é que estes investimentos, principalmente ao nível da aquisição de novos equipamentos, possam continuar para garantir a melhoria dos serviços prestados pelos 117 funcionários do CPCB.

 

O objetivo mantém-se claro, como há 40 anos: ser um apoio que faz a diferença na vida de quem precisa. O CPCB segue, sendo o braço direito de muitas famílias da região, que veem na instituição um amparo e uma esperança futura. Os primeiros passos já foram dados, agora é seguir um caminho de adversidades, próprias do setor, e de sorrisos.

 

QUALIDADE DE VIDA EM DEBATE NO SEMINÁRIO TÉCNICO

O CPCB debate a 27 de outubro, no Auditório do Instituto Politécnico de Beja, a qualidade de vida na área da deficiência com um grupo alargado de oradores, entre os quais, a terapeuta ocupacional Ana Frutuoso, o neuropsicólogo Miguel Coutinho e a médica fisiatra Teresa Gaia.

 

"Qualidade de Vida: O mesmo objetivo, diferentes perspetivas” será um seminário técnico e multidisciplinar que incluirá um segundo painel dedicado à saúde mental e à sua problemática. As inscrições já se encontram disponíveis nas redes sociais do CPCB.

 

 

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