Um ano após a chegada dos trishaws, fruto da proposta vencedora do Orçamento Participativo de 2021 de Castro Verde, o balanço é “surpreendentemente positivo”. O “Diário do Alentejo” acompanhou mais um passeio pela vila e testemunhou o impacto do projeto na comunidade.
Texto Ana Filipa Sousa de Sousa
A falta de “instrumentos” para levar a bom porto o “antigo” projeto de Cidália Guerreiro, coordenadora do CLDS 4G Castro + Vivo, fez com que o “Pelo Direito ao Ventos nos Cabelos – Pedalar Sem Idade” estivesse durante algum tempo guardado na sua gaveta.
Em 2020, a título pessoal, concorreu ao Orçamento Participativo (OP) do ano seguinte da Câmara Municipal de Castro Verde e venceu a edição.
“Tinha esta ideia velha dos trishaws, quando apareceu o OP fiz a candidatura a nível individual, porque na altura as associações não podiam fazer candidaturas, e apelei ao voto. Felizmente, conseguimos ganhar”, recorda com um sorriso no rosto a proponente Cidália Guerreiro.
Estruturada como uma iniciativa comunitária e intergeracional, com o foco em aproximar e sensibilizar a comunidade para a necessidade de se olhar o envelhecimento de uma forma global e inclusiva, chegou aos castrenses em forma de passeios de trishaws pela vila alentejana.
Pensado e trabalhado num período pré-pandémico, o CLDS viu-se obrigado a “redesenhar” e “repensar” o projeto inicial aquando da chegada dos trishaws, em plena pandemia.
“Na pandemia foi muito complicado, porque, por exemplo, na parte do voluntariado tínhamos desenhado, [além dos passeios], o entrar na casa das pessoas para lhes fazermos companhia e a covid-19 veio deitar-nos tudo abaixo”, explica ao “Diário do Alentejo” (“DA”) a técnica do CLDS, Rita Nobre.
Aos poucos, com a abertura gradual do País e a redução do medo vivido na comunidade sénior, os trishaws começaram a ser vistos como “uma lufada de ar fresco”, tanto para o Castro + Vivo se dar a conhecer à comunidade, como para voltar a integrar os idosos na sociedade.
“Parecendo que não, nestes últimos dois anos de pandemia, nós saíamos de casa para ir trabalhar e fomos vendo as evoluções, mas eles não saíam e esta foi a oportunidade, que os nossos idosos precisavam, para voltarem a sair e a ver pessoas”, relembra a técnica de 29 anos.
Ao contrário do empolgamento inicial, a procura pelos passeios de trishaws não foi espontânea. Foi preciso tempo para amadurecer a ideia e convencer aqueles que receavam experimentar.
Filomena Graça, com 81 anos e dona de uma das antigas vozes do grupo coral “As Camponesas de Castro Verde”, foi uma das utentes que resistiu “durante muito tempo” a entrar no trishaws e passear pela vila.
“Eu não achava muito jeito aos passeios, não sei bem porquê, dizia que era velha demais para estas coisas e queria estar sossegada na minha casa e então nunca quis experimentar passear com as meninas. Mas, afinal, até gosto e esta já é a segunda vez”, conta ao “DA” entre gargalhadas.
Apesar de ter como foco principal o combate ao isolamento social dos idosos, o “Pelo Direito ao Ventos nos Cabelos – Pedalar Sem Idade” vem proporcionar uma nova forma de envelhecer ativamente e retardar alguns dos problemas causados nesta fase da vida, como a doença de Alzheimer.
“Estes passeios permitem que os idosos tenham pequenos momentos de estimulação cognitiva através de uma forma lúdica, porque revisitam espaços, relembram histórias e encontram pessoas, principalmente aqueles que estão mais isolados, quer em lares, quer em casa”, defende a coordenadora.
Maria Helena Felizardo, de 88 anos, é uma das utentes a quem os passeios têm permitido aumentar os momentos de lucidez. Impulsionada por Cidália Guerreiro, sua nora, passeia desde o primeiro dia “com as meninas da bicicleta” o que tem permitido continuar a “relembrar sensações”, como o cheiro do eucalipto.
UM ANO “SURPREENDENTEMENTE POSITIVO”
Subir à Rua Nova, descer à rua onde outrora alguém morou, ver o “moinho da altura de Beja”, a nora da Cerca dos Faleiros, junto ao Parque de Campismo, e a igreja caiada são alguns dos muitos pedidos que os três trishaws, conduzidos pelos voluntários do CLDS Castro + Vivo, acolheram ao longo deste tempo.
Volvido um ano desde a chegada dos trishaws, em agosto de 2021, e do início dos passeios, no mês seguinte, o balanço feito pela equipa técnica é “surpreendentemente positivo”.
“Ainda que soubéssemos que isto ia ser um projeto que ia ter sucesso, conseguiu surpreender e superar o que nós estávamos à espera”, diz Rita Nobre. Contabilizados, até junho deste ano, o CLDS já realizou mais de 430 passeios no município de Castro Verde e nas suas quatro sedes de freguesia.
Para Cidália Guerreiro, além do combate à solidão e ao envelhecimento, o “Pelo Direito ao Vento nos Cabelos – Pedalar Sem Idade” mostrou-se também importantíssimo em duas outras vertentes: no fomento de parcerias e na sensibilização da comunidade para o voluntariado.
“Não havia uma grande estrutura de voluntariado formal em Castro Verde e quando os trishaws chegaram foi possível criar uma em torno deste projeto, sensibilizando para esta questão do envelhecimento mais ativo. E desde então, criou-se uma dinâmica engraçada e relações improváveis tanto entre voluntários, como entre estes e os utentes”, conta a técnica coordenadora de 48 anos.
Atualmente, o CLDS Castro + Vivo conta com 150 voluntários, entre os 16 e os “50 e muitos” anos, que diariamente assumem a missão de “promover sorrisos” sem receber nada em troca.
Fátima Barão é uma das voluntárias mais antigas do projeto e, presentemente, também formadora de quem chega. Inscreveu-se no CLDS pelo cariz gratificante do projeto e depressa percebeu que quem sairia a ganhar pessoalmente seria ela.
“O nosso objetivo [enquanto voluntários] é tirar os utentes das suas casas, principalmente aqueles que estão sozinhos diariamente, e fazer com que aprendam um bocadinho connosco [porque] há partes da vila que estão modificadas ou que foram acrescentadas e que, se não forem nestes passeios, não as veem nem as conhecem. Mas eu acredito que nós é que aprendemos com eles, pois levamos a passear pessoas com 80 e 90 anos que conheceram os sítios antes de nós e contam-nos histórias de outros tempos”, refere.
Os sorrisos, quando um trishaws estaciona, após um passeio, “é inexplicável” e “vale mesmo muito” para quem conduziu, entre 45 minutos a uma hora, pelas ruas de Castro Verde.
A voluntária de 55 anos tem por costume dizer que esta iniciativa é simplesmente “dar prazer a quem um dia nos deu a vida” e que o mais valioso é, no fim de cada percurso, os utentes “agradecerem por aquele tempo que passamos com eles e marcarem outro passeio ainda antes de acabar”.
Outro dos aspetos do voluntariado está também ligado à formação de novos voluntários do projeto. Numa fase inicial, foi a própria equipa técnica do CLDS que recebeu formação da Associação de Apoio à 3.ª Idade – Pedalar Sem Idade Lisboa para conduzir os trishaws da responsabilidade da autarquia de Castro Verde. Neste momento, o CLDS já possui uma equipa formadora, da qual Fátima Barão faz parte.
Entrar na equipa de voluntariado é simples. Qualquer pessoa, independentemente da idade, que tenha condições físicas para pedalar e que “manifeste essa vontade” contacta o CLDS e após receber formação teórica sobre o projeto e prática sobre os trishaws fica certificada e começa a realizar os passeios com os utentes.
“As pessoas contactam-nos, manifestam essa sua vontade e depois recebem uma formação, primeiro teórica sobre o projeto e depois prática, sobre treinos com os trishaws. Consoante a aptidão de cada um, há pessoas que depois de dois ou três treinos são logo certificadas e outras que demoram mais um pouco. [O que temos visto é que], os jovens, que não tem carta de condução, como precisam de conhecer e cumprir com as regras de trânsito, são aqueles que têm mais dificuldade e com quem nós trabalhamos mais um bocadinho”, explica Cidália Guerreiro.

UM PROJETO QUE UNE GERAÇÕES
O número de histórias e de momentos marcantes davam “um livro”. Cada utente percorre a vila com os seus próprios olhos e as suas vivências, permitindo que cada um dos voluntários a conheça em contextos, épocas e status sociais diferentes.
“Para mim, os momentos mais marcantes foram os primeiros passeios que fizemos, porque algumas pessoas choraram de alegria e queriam pagar, mas elas próprias nos diziam que também não sabiam como pagar, porque aquele bocadinho não tinha preço”, conta visivelmente emocionada a coordenadora do CLDS.
Também Fátima Barão guarda infindáveis histórias. “Tive uma senhora, que faleceu há pouco tempo, com 102 anos, e que foi uma das primeiras pessoas a querer passear connosco. Todos os passeios que tive com ela eram espetaculares, porque a sua cabeça estava ótima e ensinava-me imensas coisas”, relembra.
Ainda assim, os passeios que juntam várias gerações, como avós e netos, são aqueles que são descritos transversalmente entre a equipa como “os mais especiais”. A possibilidade de juntar essas duas gerações, que pela “pouca mobilidade” dos avós nem sempre os torna acessíveis para “estas aventuras”, é “marcante”.
“Este é um projeto muito interessante e que veio fazer com que os netos procurem mais os seus avós, porque marcam passeios e durante aquele tempo estão juntos a conhecer a vila”, afirma a voluntária.
UM FUTURO RISONHO
Após este primeiro “ano de treino” a equipa do CLDS já consegue identificar alguns aspetos que devem ser melhorados e reconsiderados.
A dificuldade em integrar utentes em cadeiras de rodas, a baixa potência dos trishaws, que condicionam a sua condução em subidas, e a complexidade no transporte dos mesmos para outras localidades são os principais pontos menos positivos e que estão agora a ser repensados.
Este último aspeto tem sido “o calcanhar de Aquiles” nos últimos meses.
“Neste momento, estamos a fazer novas candidaturas no sentido de conseguirmos bicicletas elétricas, para acompanharmos os voluntários, e para a aquisição de uma carrinha essencial para transportar os trishaws. Esta tem sido a nossa principal dificuldade, porque queríamos ir também para outras localidades que não às sedes de freguesia e não conseguimos, exatamente porque os transportes são um constrangimento”, assegura Cidália Guerreiro.
Ainda assim, o futuro promete-se risonho. O foco está em seguir rumo a todas as freguesias de Castro Verde e levar o “Pelo Direito ao Ventos nos Cabelos – Pedalar Sem Idade” como exemplo a outros pontos do país.
Para Rita Nobre, esse é o caminho também a seguir e “já fomos contactados por vários sítios nesse sentido, inclusive recentemente tivemos utentes de um lar de Alvalade do Sado que vieram conhecer-nos e passear connosco”, refere.

A IMPORTÂNCIA DOS ORÇAMENTOS PARTICIPATIVOS
António José Brito, presidente da Câmara Municipal de Castro Verde, alia-se a Cidália Guerreiro e Rita Nobre quanto ao sucesso do projeto.
“O balanço é extremamente positivo na medida em que, sendo um projeto de grande sensibilidade social, foi muito bem recebido pela nossa comunidade, que se envolveu e acarinhou a ideia desde a primeira hora em que foi apresentada. Um ano depois, temos dezenas de voluntários treinados e grande parte da população sénior, quer esteja institucionalizada ou não, já tirou partido da iniciativa”, assegura.
Para o autarca, mais do que a importância que as verbas entregues, fruto das propostas vencedoras dos OP, adquirem neste tipo de projetos para a comunidade, está o “espírito comunitário e de cidadania” que os mesmos realçam.
“A influência do OP é mesmo muita porque, por exemplo, sem este, muito provavelmente, o projeto “Pelo Direito ao Vento nos Cabelos – Pedalar Sem Idade” não existiria em Castro Verde. [A disposição destes orçamentos permite], valorizar as ideias dos cidadãos e dar-lhes a possibilidade de intervirem diretamente e autonomamente na gestão do concelho, aprofundando ainda mais o processo democrático e potencializando a participação cívica dos nossos cidadãos”, conclui.
O som das campainhas não engana e os sorrisos nos rostos também não. A equipa do CLDS, neste primeiro ano, sente-se realizada. O objetivo principal de dinamizar e envolver a comunidade sénior está atingido, bem como o Castro + Vivo ser um ponto de referência para esta faixa etária.
Em Castro Verde, a solidão ouve-se cada vez menos e pedala-se cada vez mais em direção a um envelhecimento integrado na contemporaneidade. Se antes se esperava tristemente por mais um dia, agora anseia-se por um novo.
OP CASTRO VERDE 2023 EM “AVALIAÇÃO TÉCNICA”
A edição deste ano do OP de Castro Verde encontra-se agora em “avaliação técnica”. Segundo o presidente, José António de Brito, foram recebidas 19 propostas, nas mais variadas áreas de intervenção municipal, com particular destaque para as intervenções no espaço público, cultura e desporto.
O autarca garante ainda que “os níveis de participação e interesse dos munícipes foram semelhantes aos anos anteriores”. As propostas entram em fase de votação a 1 de outubro e são conhecidos os seus resultados a 21 do mesmo mês.