Diário do Alentejo

Na Mesquita, a escavar o passado no concelho de Mértola

26 de agosto 2022 - 13:00
“A arqueologia é sobretudo descobrir o passado e a história com as nossas próprias mãos”
Foto | Ana Filipa Sousa de SousaFoto | Ana Filipa Sousa de Sousa

Até ao passado dia 30 de agosto a Ermida de Nossa Senhora das Neves, na aldeia de Mesquita, foi alvo de uma segunda campanha de escavações arqueológicas que visava avançar com a área fúnebre. O “Diário do Alentejo” esteve com a equipa de intervenção a conhecer os trabalhos e os resultados dos mesmos.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

Na aldeia de Mesquita, no concelho de Mértola, o calor e o silêncio não deixam antever o cenário ventoso e enérgico que ocorre junto à Ermida de Nossa Senhora das Neves.

 

De lenços e chapéus na cabeça, pás, vassouras, picaretas e pincéis nas mãos, os 10 intervencionistas da equipa de escavações do Campo Arqueológico de Mértola (CAM) e do projeto “Intervenção Arqueológica na Cerca das Alcarias de Mértola: Da Hispânica ao al-Andaluz – Arabização, islamização e resistência em meio rural” (Iacam) 2022 trabalham com alívio, e de sorriso no rosto, pelo vento que se faz sentir e que facilita as longas horas que ainda faltam debaixo de sol.

 

“Hoje, por causa do vento, estamos bem aqui. Os últimos dias têm sido difíceis”, comenta, com o “Diário do Alentejo” (“DA”), a arqueóloga e corresponsável das escavações, Maria de Fátima Palma.

 

Este é o segundo ano em que Mesquita se torna palco de achados arqueológicos. Entre junho e setembro de 2021 a antiga parceria entre o CAM e a Universidade de Granada permitiu a identificação de estruturas habitacionais que “possivelmente pertenciam a uma alcaria [aldeia] do século XI e XII do período islâmico”.

 

Este ano, a segunda campanha centra-se exclusivamente no exterior da Ermida e prevê que sejam “definidas as estruturas do complexo exumado em 2021 e delimitada a área funerária vinculada com o mesmo”.

 

Na parte lateral da igreja há quem escave, enquanto mais adiante se delimitam muros e se limpa, delicadamente, um dos mais recentes esqueletos descobertos. Este é o sétimo de um leque maioritariamente infantil. “Neste momento estamos a intervencionar numa zona necrópole que cremos que estava associada à Ermida que aqui está. Até ao momento foram escavadas sete sepulturas, sendo a maior curiosidade o facto de serem crianças, [contudo] os dados ainda não são muitos, mas esperamos que em laboratório consigamos obter mais informações”, revela a antropóloga do CAM, Clara Rodrigues.

 

Contrariamente às escavações anteriores, este tem sido o principal obstáculo da equipa de intervenção. O vasto tempo cronológico dos “elementos arquitetónicos” encontrados tem dificultado a sua identificação temporal. “A única certeza é que se trata de uma zona de permanências com estruturas que identificamos como um edifício religioso, mas não conseguimos perceber as suas cronologias, uma vez que temos aqui elementos arquitetónicos desde do século VI até quase à contemporaneidade”, afirma Maria de Fátima Palma.

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O SUCESSO DAS ESCAVAÇÕES EM 2021

A campanha deste ano, que decoreu até 30 de agosto, foi um complemento à intervenção do verão anterior na zona de Cercas das Alcarias e da Ermida de Nossa Senhora das Neves. A necessidade de conhecer e compreender o passado civilizacional rural fora da vila de Mértola e dos povoados distantes conduziu à criação do Iacam, financiado pelo “Projetos de Investigação e Intervenção Arqueológica Espanhola no Exterior”, do Ministério da Cultura e Desporto do Governo Espanhol.

 

“Estas escavações arqueológicas surgiram, sobretudo, pela colaboração entre a Universidade de Granada e o Campo Arqueológico de Mértola e, o ano passado, por um projeto cofinanciado pela Câmara Municipal de Mértola e o Ministério da Cultura Espanhol, com a participação muito importante da região, da Sociedade Recreativa Mesquitense e, inclusive, do Campo Arqueológico da Fundação para a Ciência e Tecnologia de Portugal”, explica ao “DA” o codiretor da intervenção e investigador, Bilar Sarr.

 

A localização escolhida para se iniciar as campanhas não foi “ao acaso”. Para Maria de Fátima Palma, a importância de “sair de Mértola” e “estudar o território” era imprescindível para se “entender toda a unidade paisagística que é este território de Mértola” e, por esse motivo, “fixamo-nos aqui, na zona da Mesquita, porque consideramos que, por todos os outros trabalhos que já tínhamos feito anteriormente de prospeção, esta era uma zona com algum dinamismo em termos ocupacionais e que merecia esta intervenção [mais detalhada] ”.

 

Durante a campanha passada, além da identificação “de um complexo dividido e distribuídos numa série de unidades, das quais duas grandes salas, maioritariamente de forma retangular, uma de forma ligeiramente circular no seu lado sul e outra de maior importância ao centro”, foram também encontrados uma taça em corda seca do século XII, a cara de uma pequena escultura do século XVI, um cachimbo de caulino do século XVII e algumas moedas do século XVI e XVII.

 

O VOLUNTARIADO

Uma das grandes particularidades das campanhas do Iacam é juntar, em terreno e laboratório, investigadores, antropólogos, arqueólogos, historiadores, geofísicos e voluntários universitários portugueses e espanhóis.

 

Carlos Cardo Peres, de 19 anos, é estudante de História em Madrid e viu no Iacam uma oportunidade para perceber que caminhos a sua carreira profissional pode ou não seguir, além de aumentar os seus conhecimentos na área de arqueologia.

 

Também Susana Cristobal, estudante da Universidade Pablo Olavide e trabalhadora na área do comércio, aproveita os meses de verão para se inscrever como voluntária em projetos de arqueologia para “conhecer outras formas de escavar, encontrar outros colegas e continuar a aprender”.

 

“Eu já tinha feito escavações do período pré-histórico, púnico e romano, mas nunca tinha feito em cronologia islâmica e então [inscrevi-me como voluntária no Iacam] para conhecer um pouco e perceber as diferenças”, começa por contar. A sua paixão pela arqueologia é antiga e, aos 53 anos, garante que esta deve ser entendida como uma base que sustenta o passado e “nos ajuda a saber onde estamos, onde vivemos e de onde vêm o nosso presente”.

 

Entre os inúmeros motivos que fazem os jovens voluntariar-se para as escavações na aldeia de Mesquita, a paisagem alentejana e a especificidade no âmbito fúnebre que o projeto adquiriu são os principais. Maria Isabel Guevara, da Universidade de Coimbra, e Kevin Lopes, da Universidade Nova de Lisboa, têm em comum o gosto pelas zonas rurais do Alentejo e por entender o passado com quem está na área há mais tempo.

 

“Recebi o email o ano passado, vim e adorei a equipa, as condições e o sítio e, quando recebi o email este ano, não hesitei em aceitar. Gosto muito de trabalhar em zonas rurais e, apesar de termos tido alguns dias com muito calor, temos todas as condições para trabalhar. Além disso, somos bem alimentados, temos uma equipa excelente com muito bom ambiente de trabalho e, sobretudo, muito bons profissionais que nos ajudam e nos explicam o contexto e tudo o que envolve os achados arqueológicos. As pessoas da aldeia também têm sido impecáveis connosco e estão sempre preocupados com o que nós podemos precisar”, garante o jovem de 23 anos.

 

Quanto a momentos memoráveis, os jovens afirmam que a primeira descoberta ou um achado “fora do contexto” são aqueles que dificilmente são esquecidos.

 

“Um dos momentos que mais me marcou foi no primeiro ou no segundo dia termos descoberto um achado eneolítico, porque esta era uma peça que estava fora do contexto porque supõem-se que estas construções sejam da idade média então isso foi algo muito impressionante”, conta Carlos Pardo Peres. Kevin Lopes concorda com o colega e relembra ainda quando encontrou “o cachimbo do século XVII”.

 

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“QUEREMOS QUE A COMUNIDADE INTERAJA COM A ARQUEOLOGIA”

Além das suas vertentes científica e histórica, este projeto visa, ainda, envolver a comunidade local e permitir que a arqueologia “possa ser útil às comunidades” e um dos motivos de desenvolvimento regional. Segundo a arqueóloga Maria de Fátima Palma, “nós estamos neste momento com esta escavação a descentralizar a arqueologia de Mértola também para o território à semelhança do que se fez em Mosteiro, Alcaria Longa e São Miguel do Pinheiro”.  “Com estas campanhas a nossa intenção é também que se possa adicionar e compreender o património dessas regiões à partir do nosso trabalho arqueológico”, confessa.

 

Rosinda Pimenta, vice-presidente da Câmara Municipal de Mértola, também corrobora com esta ideia de que a arqueologia é fonte de valorização e conhecimento patrimonial, bem como possibilitadora “de um novo foco de interesse cultural no território, em particular, na aldeia da Mesquita, gerando visitação, dinâmica cultural e economia”. “Além disso, a metodologia participativa e proximidade às pessoas da aldeia [permite] contribuir também para a literacia cultural da comunidade, potenciar o conhecimento da sua herança histórica, o sentido de pertença e identidade e salvaguardar um património que lhes é próximo e comum”, acrescenta.

 

“ESPEREMOS CONTINUAR CÁ PARA O ANO”

A vontade em continuar encontra-se inabalável. “Solicitámos uma renovação do projeto ao Ministério da Cultura Espanhol porque os nossos objetivos são continuar a investigar este sítio, não só em torno desta área ligada à Ermida, mas também no que seria a alcaria de Mesquita. Queremos reconstruir como foi a forma de vida das pessoas daqui desta parte do Alentejo que, [inevitavelmente], acaba por ser também o estilo de vida ocidente al-andaluz na época medieval”, antecipa Bilal Sarr.

 

Também o município espera que no futuro os trabalhos e investigações arqueológicas se mantenham, mostrando-se disponível para “continuar a apoiar” com “toda a logística”, desde “os custos com o acolhimento dos estudantes voluntários que participam na escavação” até ao auxílio “dos técnicos do Museu de Mértola nos diversos trabalhos”. Paralelamente, Rosinda Pimenta garante que a câmara municipal está interessada em “refletir, em colaboração com os parceiros e comunidade da Mesquita, a melhor forma de valorizar o património posto em evidência, e na sequência, contribuir para a operacionalização das soluções apontadas pelo coletivo”.

 

 

PATRIMÓNIO DE MÉRTOLA A “UM CLIQUE”, EM 360º GRAUS E DE FORMA VIRTUAL

A Câmara Municipal de Mértola lançou recentemente uma nova forma virtual de visitar os 14 núcleos museológicos do concelho “à distância de um clique e que pode ser acedida através do computador ou dispositivos móveis permitindo aos utilizadores uma visão 360º de cada um dos pontos assinalados”. Segundo a vice-presidente, Rosinda Pimenta, esta nova ferramenta digital possibilita atrair um público mais jovem e pessoas com dificuldades de mobilidade, bem como ajudar na preparação de uma possível visita presencial. O município prevê ainda “recuperar os níveis de visitação” pré-pandémicos e continuar o trabalho em prol da dinâmica e do diálogo do Museu.

 

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