Publicou o jornal «O Bejense», na sua edição de 28 de Junho de 1879, a notícia de que se encontrara em Beja, nas imediações da Porta de Avis, junto à muralha, por ocasião dos desaterros ali então realizados, «uma lápide com inscrição, a qual foi removida para o edifício da Câmara Municipal». É, sem dúvida, uma das inscrições mais importantes desta colónia romana. Um texto enigmático? A local informa ainda que, na mesma ocasião e junto à citada porta, apareceram «restos de capitéis, mármores finíssimos de pavimentos e uma moeda romana de prata» e que a pedra teria as seguintes letras: IVSTVS · PATERIA OTES XXI COLON TVRRES I ORTAS.
Texto José D'Encarnação, professor
Pelo que sabemos de outras referências a epígrafes romanas de Beja colhidas no mesmo periódico, elas são, normalmente, da responsabilidade dos redactores, desprovidos, como é natural, de conhecimentos epigráficos, que se limitavam, por isso, a maior parte das vezes, a copiar o que é mais legível, sem outra preocupação que a de noticiar. Felizmente que essa tinham. De facto, desta sorte ficámos a conhecer não apenas o texto então legível como o contexto arqueológico em que a epígrafe foi achada.
Está no Museu Rainha Dona Leonor um fragmento, com o nº de inventário B-31, que é a parte superior desta inscrição. Foi Leite de Vasconcelos quem por primeiro a ele se referiu, em nota publicada na revista «O Arqueólogo Português» (VIII, 1903, p. 163: dá-a como procedente de Quintos, indica as medidas, apresenta desenho, lê [Au]gustus…. [trib. p]otest.XX…. Não tece a seu respeito nenhuma consideração; não conhecia a notícia de 1879...
Ao estudar essa epígrafe em 1984 (no livro «Inscrições Romanas do Conventus Pacensis», p. 364, inscrição nº 292), reproduzi as informações que Abel Viana publicara no livro Museu Regional de Beja – Secção Lapidar, de 1946, transcrevendo ele o que estava no Inventário: «Mármore (fragmentado) […] servia de marco no parapeito da Fonte dos Frângãos. Of.do pela Direcção das Obras Públicas deste distrito» (p. 102, nº 1); cita também o que «O Bejense» publicara no nº 1640, de 11/6/1892, dando-o como «servindo de frade junto à ponte dos Frangãos, na estrada de Beja a Barrancos».
Certamente a consulta à documentação, porventura existente, acerca das obras efectuadas nesse final do século XIX, há-de, um dia, esclarecer a divergência assinalada no que respeita à data e local de achamento desta pedra com letras. Fica-se com a ideia de que a pedra se terá partido, a dado momento, e alguém levou para o museu o que dela restara.
A CAMINHO DA DESCOBERTA! ...
Apenas em 1988 tive conhecimento, por amável informação do Doutor Jorge Alarcão, da citada publicação de 1879 e não o relacionei de imediato com o que já se conhecia.
Já em 1984, no entanto, se pusera a hipótese de o facto de a palavra Augustus estar por extenso ser indício de que o texto se referisse ao imperador Augusto; e, por outro lado, acrescentou-se, «a beleza do fragmento sugere-nos que a placa teria pertencido a um grande monumento público de Pax Iulia». Mas em 1988, tendo muito embora citado a existência do fragmento do museu, não pensei na possibilidade, que ponho agora, de se tratar da mesma pedra.
Deste modo, a reconstituição total do letreiro, que então se propôs, ganha agora maior consistência, na medida em que palavras como turres e ortas só poderiam estar relacionadas com importante trabalho levado a efeito em relação às torres e portas da muralha da cidade.
Perguntar-se-á desde logo: não é fantasia essa? Como resposta, seja-nos permitida uma comparação: ao ver uma criancinha chegar toda amarela ao seu consultório, o médico não tem dúvida: «Está com icterícia!». Assim o epigrafista, que conhece outros testemunhos semelhantes do mundo romano.
Ora vejamos:
– Em Barcelona, um magistrado municipal, no exercício das suas funções, mandou fazer as muralhas, as torres e as portas da sua cidade, aí pelo ano 26 a. C. Temos uma inscrição em que dá conta desse seu empenho e que certamente mandou afixar num dos panos da muralha.
– Em Sagunto, outra cidade importante da Hispânia, também na 2ª metade do século I antes da nossa era, os duúnviros – cargo que correspondia ao do nosso presidente da Câmara, exercido por dois magistrados – Fúlvio Ticiniano e Lúcio Lucílio tiveram autorização por parte da ordem dos decuriões (o correspondente à nossa Assembleia Municipal) para procederem à reparação das torres e das muralhas citadinas.
– O exemplo mais significativo para nós, porque mais próximo do que supomos ter estado escrito no letreiro que motivou estas linhas, é o da cidade de Nîmes, uma inscrição que reza assim (transcreve-se em maiúsculas o que vem na pedra e resolvem-se entre parêntesis as siglas e abreviaturas):
IMP(erator) CAESAR DIVI F(ilius) AVGVSTVS CO(n)S(ul) XI TRIB(unicia) POTEST(ate) VIII / PORTAS MVROSQ(ue) COL(oniae) DAT
Foi a comparação com este testemunho (em que se diz que o imperador Augusto deu a Nîmes as portas e as muralhas) que nos permitiu propor a reconstituição total da placa que, num dia dos anos 3 ou 2 antes da nossa era, terá sido colocada numa das portas da cidade, porventura a de Mértola.
De concreto, só temos no texto transmitido pelo jornal a referência expressa às torres e às portas; os exemplos citados autorizam, porém, a também incluirmos as muralhas. E, assim, em português, o texto latino completo diria o seguinte (vide figura em anexo):
«O imperador César Augusto, filho do Divino, pai da Pátria, pontífice máximo, no seu 13º consulado, com o 21º poder tribunício, ofereceu à colónia de Pax Júlia as muralhas, as torres e as portas».
Pelo que se conhece – estou a recordar o postal «Portas de Mértola» da Papelaria Borges, de Coimbra (Col. H, 3) em que elas se mostram bem altaneiras… – obra assaz importante deve ter sido, de que Pax Iulia muito se terá orgulhado. Segundo a reconstituição proposta pelo Dr. José Luís Madeira (em rigoroso exclusivo e que muito agradecemos), a placa mediria 4,50 m x 0,90 m!...