Diário do Alentejo

Número de animais de companhia abandonados continua a crescer no distrito de Beja

20 de agosto 2022 - 09:00
Canis municipais e associações aumentam recolhas
Ilustração | Susa MonteiroIlustração | Susa Monteiro

Os centros de recolha oficial e as associações de bem-estar animal do distrito de Beja têm vindo a registar um aumento do número de animais de companhia abandonados, atingindo, em alguns casos, a capacidade máxima. A esterilização obrigatória para a maioria dos animais de companhia, evitando “o nascimento de ninhadas indesejadas”, é apontada como “o grande passo para acabar com o abandono”.Desde 1992 que o Dia Internacional do Animal Abandonado é comemorado todos os anos no terceiro sábado de agosto. Este ano foi assinalado no passado dia 20.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

Os canis municipais recolheram, em 2021, mais de 43 mil animais – errantes ou vadios, abandonados, vítima de maus tratos ou agressor –, mais 39 por cento do que em 2020, representando, assim, o número mais elevado desde que existem registos, revela o Relatório Anual de Atividade dos Centros de Recolha Oficial (CRO) de 2021. Ainda de acordo com o documento divulgado recentemente pelo Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), em 2021 houve um aumento do número de animais adotados e esterilizados nos centros de recolha oficial do País.

 

No Cagia – Canil/Gatil Intermunicipal da Resialentejo, estrutura classificada como CRO, tem-se vindo a registar, segundo dados disponibilizados ao “Diário do Alentejo”, um acréscimo do número de animais recolhidos pelo menos desde 2019 – 237 em 2019, 314 em 2020 e 316 em 2021. No primeiro semestre deste ano, o centro, que serve os municípios de Aljustrel, Almodôvar, Alvito, Beja, Castro Verde, Moura, Mourão, Serpa, Vidigueira, Reguengos de Monsaraz e Ourique, já acolheu 194 animais, o que, segundo o presidente do conselho de administração da Resialentejo, indicia que os valores de 2021 serão ultrapassados.

 

Devido à capacidade limitada de alojamento do Cagia – entre 105 e 130 animais, dependendo do porte –, Marcelo Guerreiro diz que “existe uma relação direta entre a capacidade de receber animais e o número de animais que se consegue enviar para adoção”, pelo que “o principal motivo” que justifica o aumento de animais recolhidos é terem conseguido enviar um maior número para adoção. De facto, as adoções têm “vindo a aumentar significativamente”, sendo que, em 2019, foram adotados 56 animais; em 2020, 124; em 2021, 179; e, no primeiro semestre deste ano, 110. Apesar de crescente, “a taxa de adoção continua a ser manifestamente insuficiente”, diz o responsável.

 

De forma “a potenciar o número de adoções”, o Cagia tem vindo a reforçar as campanhas nas redes sociais e estabeleceu uma parceria com o Clube Cinófilo de Beja, “visando o treino dos animais que vão para adoção”. Complementarmente, a aposta nas esterilizações dos animais que aloja e na dinamização de campanhas de esterilização para a população em geral “assume-se como uma medida importante para combate ao abandono”. Em 2019 foram realizadas 51 esterilizações; em 2020, 82; em 2021, 223; e, nos primeiros seis meses deste ano, 103.

 

No final do primeiro semestre deste ano estavam alojados no Cagia 111 animais. Segundo Marcelo Guerreiro, o CRO não consegue dar resposta a todas as solicitações de recolha, pelo que estão a decorrer obras de ampliação das atuais instalações, orçadas em cerca de 350 mil euros, e que se espera que estejam “concluídas em outubro deste ano”. Previa-se, inicialmente, que a ampliação estivesse terminada até ao final do ano passado, contudo, “a empreitada sofreu um atraso significativo, resultante da pandemia de covid-19 e da insolvência do empreiteiro”, justifica o responsável. Com este investimento, será possível triplicar o número de vagas disponíveis.

 

De entre os municípios do distrito de Beja associados da Resialentejo com maior número de animais recolhidos em 2021, destacam-se Serpa (50), Beja (36) e Almodôvar (32). Nos primeiros seis meses deste ano, Beja (36) e Serpa (31) continuavam a liderar a lista, a que se juntou Vidigueira (22).

 

Caça é “período mais crítico” para abandono em Mértola  Para além do CRO da Resialentejo, existem três canis municipais/CRO no distrito de Beja – em Ferreira do Alentejo, Odemira e Mértola –, sendo que este último foi, de acordo com o Relatório Anual de Atividade dos Centros de Recolha Oficial, o que registou o maior número de recolhas (108) e de adoções (84) em 2021, comparativamente aos restantes municípios da região.

 

A médica veterinária municipal de Mértola garante que “ainda não houve um único cão errante que ficasse por recolher na via pública no concelho”. “Sei que somos uma das poucas exceções a nível nacional, o que me deixa extremamente orgulhosa do trabalho de equipa que levamos a cabo”, acrescenta Eugénia Santana Alho.

 

Segundo a responsável, o “‘segredo’ desta forma de trabalhar e o ‘sucesso’ alcançado na recolha de todos os cães abandonados/perdidos na via pública e o espaço que sempre temos, para esse efeito, tem muito a ver também com a responsabilização que tentamos incutir às pessoas detentoras de animais”. A médica frisa que não aceitam animais “que as pessoas possam ‘querer entregar’ no canil porque ficaram grandes, porque já não caçam, por motivos não atendíveis nem previstos na legislação, que são os casos de força maior, como doença grave, ida para um lar ou unidade de saúde, ausência de condições económicas”.

 

E reforça: “Todas as situações relevantes são tidas em conta, as outras, por falta de responsabilização, de cumprimento dos deveres dos detentores, são tratadas inicialmente com sensibilização e alerta para os afetos que devem continuar a dar aos seus animais, ao seu bem-estar, à ajuda para divulgação para adoção, e se há intransigência e ameaça de maus tratos, avisamos que o Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente (Sepna) será contactado para, em conjunto, seguirmos o ‘percurso’ a partir daí, do animal. E fazemo-lo”.

 

Eugénia Santana Alho sublinha que 85 por cento dos cães que recolhem na via pública não têm microchip, “tornando praticamente impossível ‘chegar’ ao seu dono”, uma situação que ainda se verifica “18 anos após a sua obrigatoriedade”.

 

“As pessoas arriscam, embora a coima prevista, para falta de microchip e registo, seja de 50 a 3740 euros”, acrescenta, chamando a atenção para o facto de a campanha de vacinação antirrábica, realizada anualmente, há 27 anos, em 110 localidades do concelho, ter levado “a uma grande adesão por parte dos munícipes, o que se traduz na identificação eletrónica em massa dos cães do concelho”. Por isso, afirma, dos “cães abandonados (perdidos têm microchip registado), nem cinco por cento serão do concelho”.

 

Sendo Mértola “uma área com grande potencial cinegético”, salienta, ainda, “o número de caçadores é elevadíssimo e, apesar de o Sepna fazer inúmeras fiscalizações, arriscam trazer a caçar sem microchip, ainda que as coimas sejam elevadas. Contam-se pelos dedos de uma mão o número de caçadores que anualmente nos contactam para saber se o seu cão foi recolhido para o canil”.

 

Embora o canil de Mértola tenha registado em 2021 o número mais elevado de recolhas e de adoções no distrito de Beja, ainda assim foram acolhidos menos 40 do que em 2020. As adoções também registaram uma diminuição, passando de 114, em 2020, para 84, em 2021.

 

“Com a covid-19 e os confinamentos aumentaram as adoções, sobretudo, as ocorridas diretamente no canil municipal, em que os filhos solicitavam muito aos pais. Todos esses casos continuam a ser, por nós, acompanhados e os cães e as famílias estão felizes. Por outro lado, é irónico, porque o aumento dos recolhidos em 2020 prende-se com o número de cadelas prenhas abandonadas ou que já vinham com cachorros. Em 2021 o número de cães errantes recolhidos diminuiu porque houve menos tempo de caça, devido à pandemia, não há a menor dúvida”, justifica Eugénia Santana Alho. Desde o início de janeiro foram recolhidos 71 cães e adotados 44. No entanto, frisa, “o período mais crítico” no que concerne ao abandono “vai começar com a caça que se avizinha”.

 

A médica veterinária salienta, ainda, que têm dedicado “muito tempo” à esterilização de colónias de gatos, de rua, um trabalho que tem “continuado a ser um grande desafio, considerado ganho”. Por um lado, porque “diz respeito ao controlo da superpopulação, que é urgente continuarmos a fazer”. Por outro, “pela resposta às solicitações dos munícipes, cuidadores no terreno dos bichos que ajudam diariamente pelas aldeias, montes e vilas do concelho, alimentando-os e acarinhando-os”.

 

RAFEIRITOS DO ALENTEJO EM RISCO 

Aos dados oficiais dos centros de recolha há que acrescentar, ainda, os acolhidos pelas associações de bem-estar animal existentes no distrito de Beja. À Associação Canil e Gatil Os Rafeiritos do Alentejo, em Ourique-Gare, Castro Verde, chegaram, em 2021, 68 cães, maioritariamente, abandonados pelos seus tutores, mais 17 do que em 2020. Em 2019 tinham sido recolhidos 56. No presente ano já acolheu 38. De momento está a recusar a entrada de novos animais. Por um lado, explica a presidente da associação, o canil “está completamente lotado”. Por outro, foi-lhes solicitado pelos proprietários do terreno onde está instalado que retirassem “todos os animais até ao final deste ano”.

 

Se tivessem capacidade para recolher mais cães, “o número iria ultrapassar em muito o do ano passado”, sublinha Ana Morgado, adiantando que a associação “está a receber, constantemente, pedidos de ajuda, pelo menos dois ou três pedidos por semana, e, principalmente, nos últimos meses”.  

 

Os animais que não conseguem acolher acabam por ser encaminhados para centros de recolha oficial, “quando a lotação o permite, mas muitos, infelizmente, têm de ficar onde estão e depender de eventual boa vontade de particulares”. O encaminhamento para outras associações também não é solução, diz, porque “vivem o mesmo problema do que nós”. Os gatos são acolhidos por famílias de acolhimento temporário, o que acontece desde que o gatil dos Rafeiritos foi desativado por falta de condições, não entrando, assim, na contabilização da associação.

 

“Neste momento estamos numa situação muito complicada, porque temos de abandonar o terreno até ao final do ano e porque estamos a tentar avançar com a construção de um novo canil em Castro Verde, sendo que temos uma parte da verba que nos foi concedida pelo ICNF, mas ainda nos falta outra parte, e o problema é que quando concorremos à verba do ICNF os preços da mão-de-obra e dos materiais estavam muito mais baixos”, diz a responsável. A associação já solicitou ajuda a algumas entidades públicas, nomeadamente, “às câmaras dos municípios que serve”, assim como a entidades privadas, “mas ainda não há respostas concretas”. O novo canil, a edificar num terreno cedido pela Câmara de Castro Verde, deverá ter lotação para mais de uma centena de cães.

 

Ana Morgado garante que não querem desistir do projeto, porque isso “levaria esta zona do Alentejo a uma regressão de 30 anos no que concerne ao bem-estar animal, assim como a um impacto ambiental bastante relevante”. “Estamos mesmo muito aflitos e acho que ninguém tem a noção da gravidade do que está a acontecer nos Rafeiritos do Alentejo”, reforça.

 

Para além da questão das instalações, Os Rafeiritos deparam-se “com dificuldades financeiras, com dívidas avultadas nas várias clínicas veterinárias” que colaboram com a associação “e que ascendem a milhares de euros”. Ana Morgado aponta ainda como preocupante “a falta de voluntários, quer para as atividades diretamente ligadas aos animais, quer para ajudarem em iniciativas” levadas a cabo pela associação.

 

Apesar de tudo, frisa, é de salientar o número de adoções registadas pela associação. Em 2021, por exemplo, foram 59, aproximando-se muito do número de recolhas (68). Em 2022 já foram adotados 16 cães. Tal deve-se ao facto de terem “ajuda de uma associação sueca”, diz a dirigente. “Normalmente conseguimos até fazer mais adoções no estrangeiro, e através dessa associação da Suécia, na qual confiamos bastante, e depois acompanhamos o processo, para onde vão, recebemos fotografias…”. Em Portugal, frisa, a “questão do bem-estar animal ainda está muito aquém” do esperado.

 

ESTERILIZAÇÃO "É O GRANDE PASSO PARA ACABAR COM O ABANDONO" 

A presidente da associação Os Rafeiritos do Alentejo defende como uma das principais medidas para combater o abandono animal “a esterilização obrigatória para a maioria dos animais de companhia, evitando, assim, o nascimento de ninhadas indesejadas que vão acabar na rua, em sofrimento e prolongado este ciclo vicioso”. “A esterilização é o grande passo para acabar com o abandono”, reforça.

 

Ana Morgado considera ainda que deve existir “uma maior fiscalização e atuação das entidades oficiais para o cumprimento da legislação em vigor, por exemplo, maus tratos e obrigatoriedade da identificação eletrónica”, assim como uma mudança “de comportamentos e mentalidades através de ações de sensibilização à população, e, principalmente, nas escolas, ações essas que os Rafeiritos fazem questão de fazer”.

 

Também no entender do presidente do conselho de administração da Resialentejo, “é necessário continuar a sensibilizar a população para a importância da esterilização e da identificação eletrónica dos animais de companhia, sendo estas duas ferramentas essências para o combate ao abandono”. Em paralelo, diz Marcelo Guerreiro, “torna-se necessário reforçar a fiscalização para se identificar animais não identificados eletronicamente e continuar a penalizar criminalmente os maus tratos animais, onde se inclui o abandono”.

 

No caso concreto de Mértola, diz a médica veterinária Eugénia Santana Alho, seria “importantíssimo que as zonas de caça fizessem cumprir a legislação e só deixassem caçar cães com microchip registado”. “Infelizmente não há essa preocupação, na grande maioria dos casos (…). O Sepna, por mais fiscalizações que faça, porque tem uma equipa extraordinária em Mértola, com o grande número de caçadas que existe no concelho não é possível um controlo mais apertado e os caçadores arriscam inexplicavelmente, porque o microchip colocado por um médico veterinário municipal não tem custos”.

 

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