Diário do Alentejo

Casos na CPCJ aumentam o dobro face a 2021

29 de julho 2022 - 11:00
Comunicações de crianças e jovens em risco e processos instaurados no distrito de Beja aumentaram em 2021. Atualmente estão ativos 545 processos
Ilustração | Susa MonteiroIlustração | Susa Monteiro

Em 2021, as 14 comissões de proteção de crianças e jovens do distrito de Beja receberam 924 comunicações de situações de perigo, mais 20,3 por cento do que no ano anterior. No caso das situações de perigo diagnosticadas verificou-se um aumento de 55 por cento face a 2020. No presente ano já foram instaurados 798 processos, número que mais do que duplicou face a todo o ano de 2021.

 

A Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens sublinha que “um maior número de comunicações de situações de perigo pode refletir uma maior atenção ou sensibilidade para a sinalização da situação por parte de todos e não necessariamente um aumento do número de casos”.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

o relatório anual de avaliação da atividade das comissões de proteção de crianças e jovens (CPCJ) relativo a 2021, divulgado no final de junho pela Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (Cnpdp), adianta que o distrito de Beja registou um aumento do número de comunicações de crianças e jovens identificados em situação de perigo comparativamente a 2020.

 

Em 2021, as 14 CPCJ do distrito de Beja receberam 924 comunicações de crianças e jovens em situação de perigo, mais 156 do que no ano anterior, representando um acréscimo de 20,3 por cento. Em 2019 tinham sido 856 comunicações.

 

Ainda de acordo com o Relatório Anual de Avaliação da Atividade das CPCJ, registou-se, igualmente, um aumento do número de situações de perigo diagnosticadas em 2021: 300, mais 107 do que em 2020 (+55,4 por cento) e mais 53 do que em 2019 (+21,6 por cento).

 

Recorde-se que 2020 foi um ano atípico devido à pandemia de covid-19 e consequente encerramento das escolas, uma das principais entidades comunicantes, tendo-se registado um decréscimo de comunicações e processos instaurados.

 

Analisando os dados de 2021 por concelho, verifica-se que as comissões de proteção de Beja (199), Moura (153) e Odemira (144) são as que apresentam, em 2021, um maior número de comunicações de crianças e jovens em perigo. Em comparação a 2020, os maiores aumentos percentuais observam-se em Barrancos (de dois em 2020 para sete em 2021), Serpa (de 30 para 71), Cuba (de 25 para 51) e Moura (de 90 para 153). É de salientar, no entanto, que em termos absolutos, em alguns casos, os aumentos representam muitas vezes um número real baixo. As comissões de proteção de Ourique, Castro Verde, Vidigueira, Alvito e Aljustrel, por outro lado, apresentaram um decréscimo de comunicações de situações de perigo entre 2020 e 2021.

 

No que concerne às situações de perigo diagnosticadas em 2021, Beja (67), Odemira (52) e Moura (47), à semelhança das comunicações, continuam a ser as três comissões de proteção com maior número de processos instaurados. Os maiores aumentos percentuais foram registados nos concelhos de Alvito (de um em 2020 para quatro em 2021), Cuba (de seis para 18), Moura (de 19 para 47) e Mértola (de cinco para 10). As comissões de Ourique e Almodôvar foram as únicas em que se verificou um decréscimo de situações diagnosticadas em 2021.

 

Segundo dados disponibilizados ao “Diário do Alentejo” pela Equipa Técnica Regional do Alentejo da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens, o absentismo escolar foi a categoria de perigo mais registada nos processos instaurados no distrito de Beja em 2021, seguido da violência doméstica e da falta de supervisão e acompanhamento/familiar, estas duas com valores muito próximos entre si. Em 2020, a violência doméstica surgia no topo das categorias de perigo diagnosticadas. A falta de supervisão e acompanhamento/familiar e outros comportamentos eram outras das categorias em destaque.

 

PROCESSOS INSTAURADOS EM 2022 MAIS DO QUE DUPLICAM FACE A 2021

Ainda de acordo com os dados divulgados pela Equipa Técnica Regional do Alentejo da Cnpdp, entre 1 de janeiro e dia 17 deste mês, as 14 CPCJ do distrito de Beja instauraram 798 processos de promoção e proteção de crianças e jovens, número que mais do que duplicou face a todo o ano de 2021. Destes, 59 por cento (471) dizem respeito a processos transitados do ano anterior e 29 por cento (231) a novos processos.

 

Analisando os dados por comissão, verifica-se que Beja surge em primeiro lugar com 227 processos instaurados nos primeiros seis meses e meio deste ano, o que representa 28,4 por cento do total, seguindo-se Odemira, com 149 processos (18,7 por cento), e Moura, com 95 (11,9 por cento).

 

À data de 17 de julho, estavam ativos, no distrito, 545 processos, destacando-se as comissões de Beja e Odemira com o maior número: 141 (25,9 por cento) e 93 (17,1 por cento), respetivamente. Seguem-se Ferreira do Alentejo, com 48 processos instaurados (8,8 por cento), e Moura, com 46 (8,4 por cento). Dos processos em acompanhamento pelas 14 comissões de proteção até à referida data, a faixa etária dos 15 aos 17 anos era a mais representada, seguida do escalão 11 a 14 anos. A maior parte são rapazes (55,9 por cento).

 

No que se refere às situações de perigo diagnosticadas, salienta-se, à semelhança de 2021, o absentismo escolar, principalmente no escalão 15 a 17 anos, a violência doméstica, maioritariamente na faixa 6-8 anos, e a falta de supervisão e acompanhamento/familiar, nos escalões 6-8 e 11-14 anos. É de salientar, ainda, os comportamentos graves antissociais ou/e de indisciplina na faixa 15 a 17 anos.

 

Segundo os dados da Equipa Técnica Regional do Alentejo da Cnpdp, entre 1 de janeiro e 17 de julho deste ano foram encerrados 391 processos.

 

AUMENTO DE COMUNICAÇÕES "PODE REFLETIR MAIOR SENSIBILIDADE PARA A SINALIZAÇÃO" 

Contactada pelo “Diário do Alentejo”, a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens sublinha que “o número de comunicações que chega às CPCJ e os respetivos diagnósticos depende da realidade e da comunicação ou não de mais situações de perigo” e que “um maior número de comunicações de situações de perigo pode refletir uma maior atenção ou sensibilidade para a sinalização da situação por parte de todos e não necessariamente um aumento do número de casos”.

 

“A localização das situações comunicadas e diagnosticadas está relacionada com as realidades locais, o momento em causa e os respetivos contextos. A CPCJ atua quando há uma comunicação, ou seja, os números que constam do relatório 2021 correspondem a todas as situações comunicadas e diagnosticadas, não sendo possível aferir se existiram outras situações não reportadas”, refere, ainda, a comissão nacional, frisando que “é essencial que todas as situações sejam comunicadas, para permitir os diagnósticos e remoção de eventuais situações de perigo. Para isso, é muito importante o trabalho de prevenção levado a cabo pelas CPCJ, bem como um olhar atento de toda a comunidade”.

 

A concluir, a comissão nacional frisa que “a atividade das CPCJ, em todo o País, envolve milhares de crianças e milhares de processos de promoção e proteção. Naturalmente que, pela complexidade de muitos casos, é um trabalho exigente e que impõe uma grande articulação com várias entidades, sempre em prol do superior interesse da criança”.

 

PANDEMIA ORIGINA AUMENTO DE COMPORTAMENTOS AGRESSIVOS 

“Verifica-se que houve, como consequência da pandemia [de covid-19], uma grande fragilidade mental das crianças e jovens, das famílias, por várias razões. Muitas ficaram sem emprego, o ficarem muito tempo em teletrabalho, fechadas, também não foi benéfico, e quando as crianças voltaram à escola [após os confinamentos e consequente encerramento dos estabelecimentos] começaram a ter comportamentos mais agressivos, que punham em causa a sua segurança e a de outras crianças”, diz, por sua vez, a presidente da CPCJ de Beja.

 

Maria de Jesus Ramires revela que chegaram, à comissão, “comunicações, por parte dos estabelecimentos de ensino – a principal entidade comunicante –, de grupos de sete, oito crianças, em que eram, ao mesmo tempo, agressoras e vítimas”, o que associa “às situações em que estiveram muito tempo fechadas, muito tempo ligadas ao mundo virtual, e quando vieram para o mundo social, para a realidade, não foram capazes de fazer a gestão das emoções e reagiram agressivamente a qualquer situação”.

 

A responsável salienta, ainda, que “em agregados familiares maiores, em que uma criança, por exemplo, não quer ir à escola por uma situação de perturbação mental ou outra, as restantes também já não vão e em vez de um processo, temos quatro ou cinco, embora a família seja só uma”, o que se traduz num aumento dos casos acompanhados.

 

Concluído que está mais um ano letivo, a CPCJ irá proceder, em articulação com as escolas, ao habitual “balanço” da situação das crianças e jovens em acompanhamento, diz a responsável. “Há quem tenha voltado à escola, melhorado as suas notas e transitado de ano, portanto, o perigo já não subsiste e o processo é arquivado. Há outros casos em que não conseguiram ter sucesso escolar no ano em que estavam, nem na escola onde estavam, mas a idade permitiu-lhes transitar para outras escolas, nomeadamente, escolas profissionais, por isso aquele perigo também já não subsiste e também arquivamos o processo. Há ainda quem tenha 17 anos e no próximo ano letivo já tenha 18, e também arquivamos porque já é maior”, esclarece. Em acompanhamento, prossegue, continuarão os casos de absentismo e abandono escolar em que não foi possível “aplicar medidas e propor ações que levassem aquela criança ou jovem a melhorar aquele comportamento”.

 

A presidente da CPCJ de Beja frisa, no entanto, “que o comportamento da criança ou jovem tem a ver, evidentemente, com os pais, porque são os cuidadores, são quem tem de sensibilizá-los para irem à escola”. Mas, salienta, “como os pais também não valorizam a escola, não valorizam a educação, não sensibilizam os filhos”.

 

Maria de Jesus Ramires sublinha, ainda, como “bastante preocupante”, nas situações de absentismo escolar, a categoria de perigo mais registada, os casos de bullying, “situações contínuas de agressividade a algumas crianças”, que acabaram por deixar de ir à escola porque “sentiram que não eram protegidas pelas escolas”. Preocupantes são também “situações de jovens de 14, 15 anos, com uma saúde mental muito debilitada, alguns deles com tentativas de suicídio, que não conseguiram frequentar a escola, acompanhar o percurso normal”; e ainda o “desinteresse muito grande de jovens de 16, 17 anos pela escolaridade”, porque os cursos que são oferecidos pelas escolas “não correspondem às suas expectativas”, uma situação “que terá de ser revista”. “Num concelho que é pequeno temos todo este tipo de problemas que afetam as nossas crianças, os nossos jovens, e que nos preocupam. São situações preocupantes”, reforça.

 

É FINDAMENTAL "CAPACITAR AS FAMÍLIAS DE COMPETÊNCIAS PARENTAIS"  

A responsável defende que, no caso do absentismo e abandono escolar, seria fundamental sensibilizar os pais “para a importância da escola”. “Há que investir profundamente nas famílias, capacitar as famílias de competências parentais. As entidades de primeira linha, com competência em matéria de infância e juventude (saúde, educação, segurança social, entidades policiais, autarquias, instituições particulares de solidariedade social, entre outras) têm um papel muito importante neste tipo de trabalho. Tem de se começar a preparar as famílias antes de a criança nascer, porque nós sabemos onde estão estas famílias. Já os pais dos pais procederam assim, é um círculo vicioso que tem de ser quebrado. Trabalhando em rede e em articulação, devemos conseguir ter resultados positivos e diminuir os números de processos nas comissões. Havendo mais famílias cuidadoras haverá menos processos, menos crianças nas comissões”, diz Maria de Jesus Ramires, sublinhando que na cidade de Beja “há instituições a trabalhar com essas famílias e com resultados positivos”.

 

A par da maior sinalização de casos por parte dos estabelecimentos de ensino, a presidente da CPCJ considera que o aumento do número de comunicações também se deve “a uma maior sensibilidade por parte da comunidade para estar alerta” a eventuais situações de perigo, sendo que a existência de um formulário de comunicação de situação de perigo no sítio eletrónico da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens, que pode ser feita de forma anónima, “facilita” o processo, em caso “de receio de represálias”. “É preferível comunicar, e depois nós fazemos a verificação de que não há perigo, do que não dizer nada, porque mais tarde pode ter consequências graves”.

 

Maria de Jesus Ramires chama a atenção, no entanto, para o facto de as comissões de proteção só poderem atuar com o consentimento dos pais, representantes legais ou quem tenha a guarda de facto, e a não oposição da criança, se tiver 12 ou mais anos. Assim sendo, diz, “é fundamental que exista uma articulação e colaboração muito estreita” entre as comissões e o Ministério Público, para onde são encaminhados os processos caso não haja consentimento dos pais ou representantes legais”. “Se uma família não deu o consentimento e temos de encaminhar o caso, imediatamente temos à vontade para pegarmos no telefone e dizermos ao Ministério Público que achamos que a criança está em perigo, mas que não podemos fazer nada”, para que se tenha isso em consideração.

 

2021 FOI UM ANO "AINDA MAIS EXIGENTE"  

No Relatório Anual de Avaliação da Atividade das CPCJ 2021, a presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens refere que, em 2020, quando escreveu a mensagem do relatório anual, “acreditava que a pandemia nos iria deixar e que 2021 seria um ano mais fácil para todas as pessoas”. “A verdade é que foi ainda mais exigente, numa constante incerteza e apresentando as sequelas do confinamento e do respetivo isolamento social”, adianta Rosário Farmhouse, sublinhando, ainda, que “com o seu trabalho empenhado e resiliente”, as CPCJ “continuaram a ser o porto de abrigo para as crianças em situação de perigo em Portugal, num tempo ainda mais difícil, onde o burnout e a redução de recursos humanos se fez sentir com mais intensidade”.

 

 

Comentários
Recomendamos