Diário do Alentejo

O futuro das minas numa viagem do presente ao passado

22 de julho 2022 - 17:00
Ao longo do verão é possível conhecer o património mineiro de Aljustrel e descer a uma mina. As sessões servem de ensaio para o que será o Parque Mineiro de Aljustrel
Fotos | Marco Monteiro CândidoFotos | Marco Monteiro Cândido

Fruto de uma parceria da Câmara Municipal de Aljustrel (CMA) com o Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG), e no âmbito do programa “Ciência Viva no Verão”, está a decorrer, até setembro, a iniciativa “Aljustrel tem uma mina”, visitas para dar a conhecer os locais de interesse geológico da vila mineira. Os visitantes têm ainda a possibilidade de entrar numa antiga mina, a Galeria de Algares. O “Diário do Alentejo” acompanhou a primeira dessas sessões, no que pode ser considerado um ensaio do percurso do futuro Parque Mineiro de Aljustrel.

 

Texto Marco Monteiro Cândido

 

A boca da galeria, que será saída, que sempre foi saída, é agora entrada. Uma entrada para um mundo misterioso, de escuridão, que entra pelas entranhas da terra adentro, esventradas outrora, à custa de explosivos e da força bruta dos homens. Força suada e esforçada, consumidora da vida, onde os dias se transformavam em noite e o breu da mina era mais escuro do que a escuridão da noite mais escura.

 

À medida que os passos levam os visitantes por terra adentro, a escuridão, hoje, dá lugar à luz elétrica, mas a claridade do dia vai ficando para trás. Cada vez mais longe, cada vez mais ténue, cada vez mais pequena. Até se tornar num clarão opaco em forma de túnel, de galeria, de dimensões muito mais pequenas do que aquelas que deveras tem. É a Galeria de Algares, mais precisamente o piso -30, por se encontrar 30 metros abaixo da superfície, com cerca de 300 metros de comprimento. A “cereja no topo do bolo” das visitas atuais e das futuras. Para perceber o que está a tomar forma em Aljustrel, será melhor recuar algumas horas e alguns séculos.

 

São nove horas da manhã e o termómetro já marca perto dos 30ºC. A paisagem não engana. O malacate (palavra de origem espanhola, usada apenas nas minas da Faixa Piritosa Ibérica, onde se encontra Aljustrel, referindo-se ao elevador nos poços das minas) de Viana sobressai na silhueta mineira, numa paisagem que integra ainda os bairros mineiros e a terra escavada, mas não só, vestígios do passado, do presente e do futuro mineiro. Os visitantes começam a chegar. O ponto de encontro é junto ao Centro de Receção e Acolhimento do, futuro, Parque Mineiro. São 16 pessoas, oriundas de todo o País, mas também de Aljustrel, que irão participar na primeira visita do conjunto de oito que terão lugar até setembro. Depois de reunido o grupo, é hora de começar. Primeira paragem: o núcleo museológico da Casa dos Compressores.

 

Chegados ao velho armazém de aspeto industrial, o que se esconde por trás de portas impressiona pelas dimensões da antiga maquinaria. Construída em 1952, a Casa dos Compressores possui três equipamentos deste género. O mais antigo data de 1928, fabrico luxemburguês, funcionava com recurso a eletricidade, podendo recorrer, em caso de necessidade, a um motor a diesel, assim como os mais modernos. Este espaço, com a entrada em funcionamento de um conjunto de máquinas mais modernas nos anos de 60 do século passado, passou a funcionar como apoio e reserva, sendo desativado em 1992. Hoje em dia serve de núcleo museológico. Para além dos compressores, enormes, os visitantes podem observar antigas ferramentas dos mineiros, como os velhos e pesados martelos pneumáticos ou o esquema intrincado de tubagens de fornecimento de ar comprimido à mina, sempre acompanhados dos rostos que fazem parte do passado da terra e da extração. Um lugar onde a história parou, preservada, como se pudesse retomar o seu rumo a qualquer momento. No entanto, alguns pormenores denunciam o que se está a preparar, como um robot, a recriar um mineiro, que fará a explicação das amostras de minério que estão depositadas à sua frente. Um misto de encontro entre a história e o futuro do património mineiro. E do que se quer fazer. “Foi uma excelente oportunidade nesta terra onde se ‘respira geologia’ um pouco por todo o lado”.

 

Um dos elementos do campus do LNEG em Aljustrel (criado em 2018), responsável por guiar a visita, é Igor Morais, geólogo. Apaixonado por geologia e pelos recursos minerais desde cedo, veio parar a Aljustrel como bolseiro do LNEG, tendo antes passado por um estágio profissional nas minas de Neves-Corvo. “Aljustrel tem um património geológico e mineiro riquíssimo e, estando um dos pólos do LNEG sediado neste território, faria todo o sentido propor, no âmbito da Ciência Viva no Verão, um conjunto de atividades que desse a conhecer ao público as potencialidades deste território”. Um território rico na área da geologia, considerado um laboratório ao ar livre, pelas possibilidades de estudo e conhecimento que permite, aos olhos de todos, mesmo dos mais leigos na matéria. “Do ponto de vista geológico temos uma grande variabilidade geológica que se reflete de certo modo na paisagem não esquecendo também os minérios que são explorados que neste caso, nós geólogos, chamamos “sulfuretos maciços””.

 

Numa parceria entre o LNEG e a CMA, a sintonia no entendimento que fazem da região e do valor do património é comum, bem como da promoção da geologia como valor científico. Quem o refere é o presidente da autarquia, Carlos Teles, para quem o setor mineiro e as minas “têm uma importância enorme”. “Seja numa perspetiva histórica, porque nos dá um património com 5 mil anos de mineração; seja na dimensão presente e futura, porque garante que este seja um território próspero, com indicadores socioeconómicos acima da média nacional, onde existe emprego e onde é bom viver”.

 

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A CONTINUAÇÃO DA VISITA

Deixando para trás as relíquias industriais do funcionamento da mina, é hora da visita continuar a céu aberto. Agora é tempo de percorrer o passadiço que circunda o Chapéu de Ferro. Este é mais um exemplo do que o “laboratório ao ar livre” permite dar a conhecer, sem grandes complicações aos visitantes, principalmente aos mais novos, já que “em contacto com os diversos objetos torna-se mais simples essa aprendizagem podendo muitas das vezes haver um chamamento do público em geral para áreas que normalmente são consideradas desinteressantes”, como sublinha Igor Morais. Mas, afinal de contas, o que é um Chapéu de Ferro? Uma rocha intensamente oxidada, com sinais de erosão ou decomposição, e que é, normalmente, a parte superior e exposta de um jazigo ou veio mineral. De aspeto avermelhado, fazendo lembrar a cor do barro, os chapéus de ferro contrastam com as rochas e o solo em volta, apresentando mais resistência à erosão. Daí a sua forma de colina, que, muitas vezes, servia, e ainda serve, para auxiliar os prospetores a identificar o tipo de minerais que se encontravam por baixo dessas formações geológicas.

 

Continuando a visita, o grupo faz uma pausa numa área de descanso, enquanto Igor continua com as explicações, de pendor mais científico, acerca do património circundante, que abarca a visão e, até, o olfato dos que o ouvem. As perguntas sucedem-se. O porquê das cores, das formas? Quais os recursos minerais ali existentes? Há quanto tempo se faz extração mineira em Aljustrel? Retemperadas as forças, continua-se a caminhada que, inevitavelmente, irá terminar debaixo de terra. Passa-se ao lado do malacate Vipasca, cujo nome inicial foi Eyben, tal como o primeiro administrador belga das Minas de Aljustrel. Nos anos 60 do século passado, fruto de uma remodelação da mina de Algares, o seu nome foi alterado para Vipasca, para assinalar o nascimento de uma nova mina. Será por aqui que, no futuro, os visitantes entrarão na galeria visitável de Algares. Descendo pelo elevador do malacate, irão entrar nas entranhas da terra, 30 metros abaixo do chão, para saírem 300 metros mais à frente. Mas, por agora, ainda não é assim que se fará. O grupo prepara-se para entrar por onde saíam mineiros e minério durante tantos anos.

 

Já no grande terreno desolado onde são mais do que visíveis as marcas da exploração durante anos e anos, com a Chaminé de Transtagana no campo de visão ou os velhos carris, com pedaços retorcidos e arrancados, Igor leva o jipe do LNEG até bem perto do local por onde se fará, finalmente, a entrada na galeria. O grupo coloca os capacetes e coletes. Apesar de ser uma galeria visitável e segura, estar debaixo da terra comporta sempre algum risco. Os últimos passos até à boca do túnel de 300 metros são feitos sob um sol tórrido. É hora de entrar.

 

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A GALERIA DE ALGARES

A boca da galeria, que será saída, que sempre foi saída, é agora entrada. Assim que se entra, é notório o arrefecimento da temperatura. Abrigado do sol e do calor, o grupo olha em volta e em frente, com o deslumbramento próprio do desconhecimento em relação ao que vai ver e experienciar. A acompanhar a visita desde o princípio está Marcos Aguiar, técnico superior da CMA, e quem tem tido a responsabilidade do acompanhamento técnico da recuperação mineira. E também um dos seus maiores entusiastas. “Antes da intervenção, a galeria encontrava-se desativada há pelo menos 40 anos, tendo-se, entretanto, degradado o seu estado estrutural e funcional, com a ocorrência de desprendimentos e deterioração da infraestrutura”. A sua requalificação foi feita através de uma candidatura da Empresa de Desenvolvimento Mineiro com a CMA, permitindo a experiência “em segurança e acessibilidade plenas, com o ambiente que teria uma mina em meados do século XX e com as atividades desenvolvidas no contexto mineiro da época, técnicas de entivação e outras, experiência que é enriquecida por vários sistemas multimédia instalados ao longo do percurso”, explica. No entanto, como o grupo poderá ver mais à frente, também a riqueza geológica da região está bem patente nos 300 metros que serão percorridos. “A galeria é igualmente muito rica dos pontos de vista geológico, permitindo o visionamento de vários minerais, e arqueológico, intercetando vários vestígios da atividade romana no mesmo local, nomeadamente uma galeria longitudinal e dois poços, que foram sendo revelados à medida que a intervenção de requalificação se foi desenvolvendo”.

 

A caminhada tem início e o ponto de entrada vai ficando para trás. Cada vez mais pequeno e ténue, até que desaparece. A possível sensação de claustrofobia que se poderia sentir debaixo de terra, não existe. A galeria está iluminada, bem ventilada e tem largura e altura mais do que suficientes para fazer esquecer quaisquer sensações de incómodo.

 

Entre as partes reforçadas por cimento ou madeira, é possível ver vários troços do caminho em bruto, ou seja, com os recursos geológicos bem à mostra, como se de uma montra viva se tratasse. Até porque a temperatura e a humidade, diferentes ao longo do ano, vão modificando o aspeto da palete de cores que é imensa, desde os avermelhados aos azuis, passando pelos verdes, castanhos e brancos. A certa altura, também o odor parece ser diferente, com um aroma a fazer lembrar enxofre.

 

Ao longo da visita, Igor vai apontando e explicando o que o grupo vê: os minerais, as cores, os vestígios romanos, a janela para o Chapéu de Ferro (um quadrado por baixo desta formação com grande interesse para os geólogos). Ou a pequena galeria com a figura de Santa Bárbara, padroeira dos mineiros, presente em todas as minas.

 

A meio do percurso encontra-se um dos recursos interativos que pretende simular o que era vivido outrora: a simulação de rebentamento através de dinamite. Carregando no pêndulo, simula-se a explosão, através do som que ecoa e do fumo artificial que resulta da explosão imaginária. Mais à frente, mergulhados numa escuridão propositada, assiste-se a um filme que mostra os mineiros de antigamente, os sons e as vozes de quem escavou estes solos. Um entranhar-se ainda mais profundo nas entranhas da mina: na alma e nos olhares dos que por lá viveram tantos e tantos anos.

 

O grupo chega ao final da visita que, no futuro, será o início. Está junto ao elevador do Malacate Vipasca. Numa das máquinas que ainda ali restam, uma formação de melanterite, de grande beleza visual, parece uma estalactite que desce do teto do túnel até ao chão. Mais à frente, é possível ainda ver uma vagona, por onde saía o minério para ser transportado, e cujo deslocar ecoa, como um trovão, ao longo da galeria. No final, um holograma. O “Zé Mineiro”, figura simbólica, representa os mineiros romanos, os do século passado e os mineiros atuais, dá as boas vindas e fala sobre as dificuldades da sua profissão.

 

Com um grupo a fazer a visita ao contrário do que acontecerá daqui a um tempo, as boas vindas servem de despedida. Agora, fazer-se-á o caminho inverso como os mineiros sempre fizeram. É hora de voltar. Deixar a escuridão que já não o é como foi outrora, regressando à luz do dia. Refazer os passos que tantos outros fizeram, sem cabeça aberta, nem camisa rota, como no hino em sua honra. Com a sensação de alívio que, certamente, sentiriam, todos os dias, sempre que saíam da mina que nunca lhes saiu da pele. E da alma.

 

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O PARQUE MINEIRO DE ALJUSTREL

As visitas, que estão a decorrer até ao mês de setembro, servem como “balão de ensaio” para um projeto maior que está na sua fase final de implementação, o Parque Mineiro de Aljustrel, e cujo funcionamento está previsto arrancar no final do ano, segundo o presidente da autarquia, Carlos Teles. “Para além responder à vontade da própria comunidade de preservação do seu património, reúne as condições para se tornar num atrativo de âmbito muito mais vasto, oferecendo, em breve, aos visitantes e turistas a oportunidade de contactar com um património diversificado, onde a história, a arte, o ambiente, a ciência e as diferentes culturas do trabalho que se sucederam e se tornam nos elementos de uma estrutura identitária fortíssima”. Nesse sentido, patrimónios material, imaterial, natural e paisagístico funcionarão como um todo. “A Galeria de Algares, que permitirá fazer uma visita real a uma galeia mineira no subsolo; os passadiços dos Chapéu de Ferro, com o seu interesse geológico e vestígios arqueológicos da exploração mineira do período romano; o Centro Interpretativo da Faixa Piritosa Ibérica, situado do edifício da Receção do Parque Mineiro de Aljustrel; os circuitos pedonais, que constituem o maior percurso mineiro urbano de Portugal; os Bairros Mineiros, com a sua arquitetura e vivência própria; o Cante Alentejano, particularmente o Grupo Coral do Sindicato Mineiro de Aljustrel”. Para o autarca, Aljustrel quer tornar-se uma referência na forma como trata, recupera e preserva o seu passado e presente mineiros. “É essa a nossa obrigação no presente, a de honrar o passado mineiro de Aljustrel, não só porque esse legado é de um valor incalculável, mas também para honrar a memória do mineiros e das suas famílias, que deram muito de si a esta terra, tendo muitos pagado com a própria vida essa entrega à vida de mineiro. É também uma forma do município homenagear os mineiros dos nossos dias, visto que a profissão continua a ser de grande exigência e sacrifício. Somos, orgulhosamente, um concelho mineiro!”.

 

“ALJUSTREL TEM UMA MINA”

No âmbito da “Ciência Viva no Verão”, está a decorrer, até ao mês de setembro, a iniciativa “Aljustrel tem uma mina”. A primeira visita decorreu a 15 de julho. Para o mês de agosto estão agendadas visitas para os dias 6, 7 e 20. Em setembro, a atividade continua nos dias 2, 3 e 4. Até ao momento do fecho desta edição, a iniciativa contava já com 200 inscrições, o que motivou o alargamento das cinco visitas iniciais para oito. Com uma duração de, aproximadamente, 3:30 horas, esta atividade está direcionada para maiores de 10 anos. As inscrições, gratuitas, podem ser feitas no portal da Ciência Viva (www.cienciaviva.pt).

 

 

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