Diário do Alentejo

A felicidade de todos os seres na sociedade futura (1) Gonçalves Correia

03 de julho 2022 - 12:00

Texto Francisca Bicho, Professora de História

 

No momento em que estamos perturbados com vários conflitos mundiais, em particular com a guerra que assola a Ucrânia e ameaça a Europa e o Mundo, faz sentido recuperar o título centenário que nos remete para uma sociedade futura com felicidade para todos, sendo que afinal ainda não foi conseguida.

 

O título diz respeito ao Livro publicado por Gonçalves Correia (G.C), cuja capa reproduzimos e que exibe a fotografia do próprio, com as barbas que sempre o distinguiram.

 

A edição pela Tipografia Porvir, Beja 1931, valeu ao autor a perseguição, e o exemplar de que dispomos foi, justamente por isso, encontrado entre outros numa panela, escondida numa parede da casa que fora residência de Gonçalves Correia.

 

Tal exemplar foi-nos oferecido por um antigo funcionário do “Diário do Alentejo”, afilhado de G.C. e de seu nome Germinal Correia, que lhe atribuiu o padrinho tendo presente o título de um Livro - Germinal, de Émile Zola, uma de tantas outras obras com que Gonçalves Correia consolidava as suas ideias.

 

Gonçalves Correia (S. Marcos da Ataboeira, 1886; Carnaxide 1967) era um anarquista que circulava pela cidade de Beja e outras localidades, levando sempre as suas palavras de revolucionário, e procurando esclarecer os interlocutores sobre o caminho e as características da sociedade nova, a da Anarquia, para que o próprio remetia, afirmando (1931) «Após a noite trágica que é o mundo burguês, onde impera a lei, há-de aparecer o dia deslumbrante e veludíneo onde imperará a Anarquia!». (2)

 

Sobre ele afirmou Raul Brandão (1984) «O Sr. Gonçalves Correia, caixeiro-viajante, vegetariano, tolstoiano, cheio de ideias generosas, é um revolucionário que quer levar a humanidade a uma vida mais perfeita e mais bela pela bondade. É um tipo extraordinário de grandes barbas tolstoianas e o cabelo caído pelas costas à nazareno (…) pretende realizar um sonho, dá a esse sonho tudo o que ganha, e, apesar da guedelha, das considerações ingénuas, faz-me pensar». (3)

 

Antes de nos debruçarmos sobre o texto de G.C. que queremos apresentar, tomemos palavras que escreveu em 1916 (publicadas no jornal que criou em Cuba), quando decorria a I Guerra Mundial, para com elas deixarmos hoje uma interrogação para a “maldita guerra” (título do seu texto) que os homens não conseguem parar … «Quem lucra com as guerras? Os grandes! Quem perde? Os pequenos! Os endinheirados, sócios de fábricas de canhões, de correame, de metralha varia, os fornecedores dos exércitos, são os parceiros que ficam sempre garantidos no jogo! Os pequenos ficam apodrecendo no campo negro das batalhas e agonizando dentro dos hospitais de feridos … Maldita guerra! Malditas guerras! Oxalá que esta seja a última e que os homens do futuro, as criancitas de hoje, quando lhes entreguem as armas da rapina e do incêndio, possam e saibam dizer ‘Este aço fabricou-se para o crime. Vai agora transformar-se em instrumentos agrícolas e industriais, coisas de que muito carecemos para a nossa felicidade…’». (4)

 

Aquela não foi a última guerra do século XX, e infelizmente há homens que continuam a promover guerras no século XXI.

 

Após este parêntesis, vamos recuar ao Jornal operário A Batalha (Nº. 1, Lisboa, 23 de Fevereiro de 1919), que refere em 1922 matéria sobre o V Congresso dos Trabalhadores Rurais realizado em Évora nesse ano e publica a 19 de Dezembro que Gonçalves Correia fez uma intervenção altamente revolucionária e aplaudida, tudo indicando que viria a ser uma boa semente.

 

Nessa Conferência que proferiu em 1922 (16/12/1922), exactamente há cem anos, então publicada, e mais tarde (1931) reeditada, Gonçalves Correia falou de A Felicidade de Todos os Seres na Sociedade Futura, e é do conteúdo dessa comunicação que pretendemos dar conta.

 

Em primeiro lugar, destaquemos que Cristiano Lima (no Prefácio da primeira edição, republicado na segunda) se pergunta sobre a exequibilidade dos ideais de Gonçalves Correia, e não tem dúvidas em considerar que sim, pois «(…) A ideia de que a felicidade aumenta entre os homens quando eles cessem de se explorar mutuamente, vai entrando, lentamente, mas profundamente, no espírito dos contemporâneos».

 

Passemos então a uma síntese sobre as palavras de Gonçalves Correia (segundo a edição de 1931), que são de uma extraordinária riqueza poética, que aliada à pertinência das ideias desenvolvidas, faz da sua intervenção no Congresso, já referido, um texto bastante interessante, podendo constituir, em alguns aspectos, matéria para reflectir nos nossos dias.

 

O autor dirige-se aos presentes, começando por se referir à infelicidade de todos os seres, para afirmar depois «(…) Que encantadora pode vir a ser a vida dos seres, logo que o homem se convença do papel que tem a desempenhar na sua curta existência!».

 

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Gonçalves Correia apresenta aos participantes uma reflexão sobre a sociedade de então, que caracteriza nos seus verdadeiros males e respectivas causas, enquanto paralelamente vai aludindo à sociedade do futuro, que perspectiva ser muito melhor, mais digna e portadora da felicidade para todos os seres, sob o «reinado pleno da anarquia».

 

A abordagem à sociedade do seu tempo leva-o a considerá-la marcada por injustiças, guerras, opressão do mais forte sobre o mais fraco, corrupção, tristeza e sofrimento, é, como refere «a sociedade burguesa (…) baseada no antagonismo de interesses».

 

Ora, face à «pobre humanidade sofredora» que analisa, Gonçalves Correia ‘imagina’ que só recuando à Pré-História será possível encontrar a felicidade, pois não existindo a propriedade privada e os males por ela gerados, tinha a humanidade condições para ser «relativamente feliz».

 

Com efeito, a propriedade individual é para Gonçalves Correia «mal de todos os males», fonte de egoísmo e razão da existência de uma pequena minoria privilegiada, que pela posse da terra produz uma «imensa maioria [que] não tem onde plante um bago sequer!», e pela imposição do trabalho cria a escravidão, torna o homem escravo sob a «tirania do salariato».

 

O trabalho é verdadeiramente exaltado por Gonçalves Correia, que afirma mesmo amar o trabalho, reconhecendo a «santa e adorada religião, a do trabalho», desde que este venha a ser desenvolvido pela vontade de cada um, no sentido criativo, sem a pressão da sociedade burguesa, numa verdadeira colaboração entre trabalho braçal e trabalho intelectual; e nessa linha, preconiza ainda o conceito de trabalho moderno, científico, no quadro de um papel fundamental a desempenhar pela máquina, e com a mecânica ao «serviço da felicidade dos seres».

 

A máquina, segundo Gonçalves Correia, liberta do trabalho escravo e pode trazer fartura, prazer e felicidade à humanidade, enquanto a cooperação entre «proletariado braçal e proletariado do cérebro» contribuiria para a realização dessa forte aspiração de destruir o capitalismo e criar a «sociedade dos produtores livres na terra livre!».

 

Para fundamentar as suas afirmações em torno do trabalho, da máquina, e da relação entre esses dois tipos de proletariado que define, Gonçalves Correia refere-se por exemplo ao importante trabalho intelectual do engenheiro, médico, enfermeiro, agrónomo, mas também ao escultor, pintor, músico, e ainda ao professor, considerando inadmissível que «o professor, entidade útil, agonize com miséria, ao lado do parasita inútil, zangão odiado da colmeia social».

 

Na sua perspectiva, os professores são muito importantes para «instruir convenientemente 600 milhões de crianças espalhadas por todo o vasto globo», pois para os «trabalhadores do século XX [não interessa] o triunfo da estupidez e da maldade».

 

Portanto, ao analisar a sociedade burguesa e o capitalismo, e identificada a «fórmula iníqua da propriedade individual» como a origem das desigualdades, injustiças, fome, etc, Gonçalves Correia proclama a sua extinção, e aponta para a sociedade futura, aquela em que «tudo é de todos», a «possível sociedade onde todos possam amplamente satisfazer as suas necessidades, produzindo honestamente segundo as suas forças».

 

Trata-se de repudiar, em absoluto, a «chaga» do capitalismo, e na sua condição de idealista, Gonçalves Correia acredita plenamente numa sociedade em que reine a Alegria, Felicidade e Fraternidade resultantes da abundância do pão e da luz do amor, que substituirá o egoísmo e a injustiça, a sociedade nova que só as «criancinhas de todo o mundo» podem constituir, a «brilhante sociedade de amigos, a sociedade igualitária, a brilhante, a moralizadora sociedade anarquista!».

 

Gonçalves Correia era um Anarquista, e as suas palavras que vimos seguindo, proferidas num Congresso de Trabalhadores Rurais em 1922, são as de um homem de enorme sabedoria, amante da liberdade, convicto da força da comunidade organizada com vista à Felicidade de todos, incluindo a dos animais, que não devem ser torturados pelos humanos. G. C. defendia «intensamente [que] a anarquia é a luz que deslumbra, o pão que consola, a água cristalina que refrigera, o beijo santificado que eleva!».

 

Em síntese, a sua «alma de idealista» via antecipadamente a sociedade futura, a «síntese da elevada, da dignificante moral anarquista» que permitiria a Felicidade de todos, a sociedade construída pelos homens em que se haviam transformado as crianças de então, educadas para o amor, justiça, bondade, verdade, beleza, dignidade, igualdade, abundância, esses valores proclamados pelos libertários como Gonçalves Correia.

 

Decorridos cem anos, muito pouco mudaram as sociedades deste nosso mundo, e tão longe estamos de que sejam menos desiguais!

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

 

Notas bibliográficas

(1) CORREIA, Gonçalves (1931). A Felicidade de Todos os Seres na Sociedade Futura: Beja, Tipografia Porvir.

(2) CORREIA, Gonçalves (1931). Prefácio da segunda edição de A Felicidade de Todos os Seres na Sociedade Futura: Beja, Tipografia Porvir.

(3) BRANDÃO, Raul. (1984). Os Operários - Fixação do texto, introdução e notas por Túlio Ramires Ferro. Lisboa: Biblioteca Nacioal, Autores dos Séculos X1X e XX.

(4) CORREIA, Gonçalves (1916). A Questão Social, Cuba, Ano 1º, Nº. 6, 6/2/1916

 

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