Diário do Alentejo

Ser e amar, num mundo cheio de barreiras

03 de julho 2022 - 09:00
Sábado passado, Beja recebeu a 2.ª edição do Pride, um evento orgulhosamente LGBTQIA+
Foto | Ana Filipa Sousa de SousaFoto | Ana Filipa Sousa de Sousa

No Mês do Orgulho LGBTQIA+ o “Diário do Alentejo” foi conhecer as histórias por detrás dos rostos que diariamente lutam e são exemplo de como amar de forma simples, independentemente de quem o outro é e de quem eles próprios são. As vivências, as dores e os sorrisos daqueles que, em tempos, tiveram medo do mundo que os rodeava.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

Receios, ansiedades, incertezas, aceitações e, em muitos casos, dor são as memórias que vêm ao de cima ao recordar infâncias e, sobretudo, adolescências por quem, convivendo com o mundo, não se conhecia a si mesmo. Na escola, na rua e até em movimentos, como o escutismo, o medo de se ser diferente da norma, e de não corresponder às expectativas daqueles que os viram crescer, assustava. O assumir-se para consigo próprio e o revelar-se àqueles de quem precisavam do colo. Hoje, ao falarem com a maturidade característica da idade de cada um, o passado trémulo parece longínquo, ainda que não o seja.

 

A falta de representatividade que em meados dos anos 90 existia da comunidade LGBTQIA+ no Alentejo levou a que muitas crianças e adolescentes não compreendessem que “havia uma coisa como sentir atração por outros géneros” e que o “amor romântico” podia não ser compatível com o padrão imposto pela sociedade. Ofélia Rocha e Íris Lá Féria, apesar dos mais de 140 quilómetros que as separam, têm histórias semelhantes quanto às suas infâncias. Perceberam que não se enquadravam no modelo normativo imposto, ainda com tenra idade, e seguiram, pé ante pé a sua busca até saberem quem realmente eram.

 

“Eu desde muito pequenina que percebi que era diferente das outras pessoas, que havia qualquer coisa que não era igual aos outros, porque comecei a sentir atração pelas minhas amigas, algo que era completamente impensável, e na altura pensava que isso acontecia só porque eu gostava muito delas”, começa por contar ao “Diário do Alentejo” (“DA”), entre risos, Ofélia Rocha. Com identidade não-binária, ou seja, não se enquadrando exclusivamente em nenhum dos géneros e assumidamente pansexual, isto é, com uma orientação sexual focada nas pessoas e não no seu sexo ou na sua identidade de género, demorou alguns anos até compreender e se encaixar no vasto leque de conceitos da comunidade LGBTQIA+. Também a serpense Íris Lá Féria, de 24 anos, demorou a aceitar-se e a aprender quem era na sociedade. “Cresci numa comunidade pequena, em Serpa, onde toda a gente conhece toda a gente e dentro da Igreja Católica. Até aos 17 anos reprimi-me muito, tentei mudar e convencer-me que não era verdade, porque a minha crença em Deus e a minha prática religiosa não conciliavam com quem eu era. E isso não foi fácil”, recorda a jovem. O medo de reconhecer e de exteriorizar a sua orientação sexual foi penosa e demorada, porque o ideal vendido pela sociedade não lhe encaixava e o assumir-se perante o próprio espelho foi doloroso e excessivamente difícil. O pior viria depois, quando, já se conhecendo, teve que manter a ilusória imagem de quem não o era perante o seu grupo escutista, pois “os escuteiros eram uma coisa que me definia, com pessoas que me viram crescer e que eu conhecia desde os cinco anos e ouvi-las falar de pessoas como eu de maneira depreciativa e com desdém não foi propriamente positivo”, revela. O passo seguinte, e recente, foi o limite, mas revelador de um sentimento de honra e de uma autoestima que até então desconhecia. A fim de perder o medo,  de parar de se esconder e assumir-se abertamente atraída por mulheres, ou seja, lésbica,  decidiu não avançar com a condição necessária para continuar a fazer parte do escutismo católico: o envio de uma carta ao Bispo de Beja a expor a sua orientação sexual. Essa foi a gota de água. “Tinha de enviar uma carta ao Bispo de Beja a explicar a minha situação e a pedir autorização para continuar no escutismo católico. Felizmente, a minha dignidade e o meu amor-próprio estavam relativamente elevados na altura e decidi que não me iria submeter a essa humilhação. Tenho pena, mas acabei por sair dos escuteiros, mas há coisas às quais não me vou submeter”, lamenta a estudante do mestrado em Ciências Políticas.

 

Se, para uns, o revelar a sua orientação sexual foi aflitivo, ansioso e conturbado, para outros, o naturalismo e o tempo ajudaram com as inseguranças. Bruno Guerreiro e Luís Barriga, juntos há 10 anos, descrevem ao “DA” que o assumir perante o seu núcleo familiar e de amigos aconteceu espontaneamente e sem “conversas transcendentais”. Bruno, natural de Setúbal e a viver na freguesia de Torrão (Alcácer do Sal), menciona que sentiu “necessidade de contar [aos pais], talvez por todo o preconceito que existe na sociedade ou para não magoar ninguém posteriormente, mas vi que foi um confirmar de algo que eles já sabiam, porque os pais sabem bem os filhos que têm, conhecem-nos e gostam deles de qualquer das formas”. Em relação ao resto da família e amigos não existiu qualquer tipo de assumir, porque “fui tendo relações e apresentando naturalmente, sem ter que dizer que sou isto ou aquilo, porque na realidade ninguém diz aos pais que é heterossexual”, explica.

 

Para Íris Lá Féria o medo de se expor perante a sua família mudou a partir do momento em que se sentiu segura no seu grupo de amigos, “apesar dos comentários homofóbicos que ouvia na escola ou nas ruas”. Deixou de se esconder e, inevitavelmente, “os meus pais descobriram, aliás eles já sabiam porque era impossível não o saber”. Ainda assim, a jovem que já foi candidata pelo partido politico Volt Portugal a Beja, confessa que “na altura preferia que tivessem sido os meus pais a perguntar-me diretamente do que ser eu, por iniciativa própria, a dizer-lhes”.

 

Bruno Guerreiro e Luís Barriga têm uma opinião muito pessoal quanto ao se assumir que se faz parte da comunidade LGBTQIA+. Para o casal, não existe de todo uma obrigatoriedade em dizer aos outros, porque “apenas temos de ser nós próprios e fazer as coisas com o maior amor”, uma vez que o que interessa “não é nós assumirmos se somos heterossexuais ou homossexuais, mas sim se estamos bem”.

 

“AS PESSOAS VEEM EM NÓS UMA VIDA SIMPLES, FÁCIL E SEM MEDOS”

Se, em tempos, as horas de um dia custavam a passar pelos inúmeros comentários ditos “para o ar com nojo e desdém” e pela invisibilização sentida, a vivência da aceitação e da compreensão que a sua identidade de género  ou orientação sexual não tinha de depender da aprovação da sociedade permitiu atenuar o trauma passado. Consequentemente, a liberdade e a coragem que aos poucos cada um começou a transparecer levou a que, inconscientemente, passassem, em várias situações, a ser exemplos para quem estava à sua volta ou para quem se cruzava ocasionalmente no seu caminho.

 

Ao “DA”, a maquilhadora Ofélia Rocha conta que, já adulta, teve antigas colegas que lhe deram “os parabéns por ser tão visível quanto era no liceu, porque deu-lhes coragem para serem também elas próprias”.

 

Ao longo dos vários anos, Bruno e Luís falam orgulhosamente das inúmeras pessoas que, após os conhecerem, pensaram e questionaram a sua sexualidade e assumiram-se homossexuais, percebendo “que qualquer um pode ser um casal, com uma vida normal, livre, cheia de amor, com amigos, família e gente bonita à volta”. Também a desconstrução de preconceitos é um dos motivos que faz o casal esboçar sorrisos e gargalhadas, onde “as pessoas veem em nós uma vida simples, fácil e sem medos”, sendo uma “esperança” e um ponto de partida para quebrar barreias preconceituosas.

 

Atualmente, sabem que os comentários homofóbicos continuam a surgir em cada esquina, proferidos ou pensados, de forma mais discreta do que acontecia nos tempos de escola. Nem todos conseguem manter a frieza de não se importar com o que é ouvido, mas Bruno Guerreiro e Luís Barriga garantem que quando não existe a preocupação para com a opinião da sociedade é mais fácil e instantâneo não “reparar nessas situações”.

 

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“O SENTIMENTO DE FAMÍLIA QUE SENTI NESSE DIA FOI AQUILO QUE EU SEMPRE QUIS E QUE NÃO TINHA CONSEGUIDO ENCONTRAR”

Após algum tempo condicionadas pela pandemia da covid-19, este ano as Marchas do Orgulho, que visam promover a igualdade de direitos para as pessoas que fazem parte da comunidade LGBTQIA+, regressaram em força. No passado dia 18 de junho, em Lisboa, ocorreu aquela que é a marcha mais acarinhada pela comunidade, que junta há 22 anos vários membros em prol do amor por quem são.

 

Íris Lá Féria, em jeito nostálgico, recorda a sua primeira participação numa Marcha do Orgulho, com 18 anos e “completamente sozinha e perdida”. Rumou a Lisboa com esse propósito, ainda que tenha dito à mãe que iria apenas visitar umas amigas, e no meio de toda aquela multidão foi nos braços “de pessoas mais velhas da comunidade” que viveu um dos melhores dias da sua vida.

 

“O sentimento de família que senti nesse dia foi aquilo que eu sempre quis e procurei, em termos de comunidade Queer ou LGBT, e que infelizmente em Serpa não tinha conseguido encontrar”, revela. 

 

Nesta última, agora com 24 anos, decidiu refletir nas suas redes sociais quanto ao seu significado antes mesmo de esta começar. Publicou e “inadvertidamente aquilo foi um caminho” para inúmeros “comentários a dar-me as felicidades e a aplaudir a minha coragem, onde na realidade eu não precisei de ousadia nenhuma para aquilo, porque essa parte já passou”, conta entre risos. Ainda que este apoio tenha aquecido o seu coração, não conseguiu deixar de pensar “na Íris mais nova” e do quanto aquelas palavras faltaram na altura, pois há uns anos “esse apoio tinham-me poupado imensa dor”.

 

“HÁ QUEM NÃO PERCEBA A NECESSIDADE DE EVENTOS COMO O PRIDE BEJA”

À semelhança das Marchas do Orgulho, a importância de eventos como o Pride Beja que promovem o respeito, a inclusão e a diversidade são necessárias para “arranjar um espaço e um lugar” para a temática e a própria comunidade LGBTQIA+.

 

“Até há pouco tempo não havia uma estrutura de representação LGBTQIA+ no Alentejo e isso conduzia a uma falta de visibilidade e representatividade que temos de combater. A Arruaça, promotora do Beja Pride, não é uma associação LGBTQIA+, mas sim uma instituição que tem preocupações a esse nível e que quer dar resposta a uma série de problemas com que as pessoas se deparam no seu a dia-a-dia”, começa por explicar, ao “DA”, a presidente da direção, Nádia Mira.

 

O Beja Pride, nasceu o ano passado pela vontade de criar um “evento declaradamente de orgulho LGBTQIA+” no Alentejo, com o intuito de “ajudar a ultrapassar dúvidas, tristezas, medos” com um sentimento de comunidade, sobretudo nos mais jovens.  Para Ofélia Rocha, numa região envelhecida como o Alentejo a urgência deste tipo de eventos é crucial para “envolver as pessoas, falar com elas e ter uma porta aberta para as perguntas, dúvidas e mobilizações”, sendo um ponto de partida para interromper o ciclo de estigmas existentes. Também Bruno Guerreiro vê no Beja Pride uma “força” para todos “serem quem são” e “unirmo-nos enquanto seres humanos”.

 

A 2.ª edição do Beja Pride decorreu no sábado, 2 de julho, no Jardim Público de Beja e pretendia “mostrar que há diferenças e diversidades” através da música, do diálogo e do convívio. “Na verdade o que nós esperamos mesmo é que, no final, todas as pessoas voltem para casa sem qualquer ponta de medo ou vergonha de serem quem são ou de amarem quem amam”, relembra Nádia Mira.

 

O QUE JÁ FOI FEITO E O QUE FALTA CONQUISTAR

Eventos como o Beja Pride colocam na ordem do dia as diferentes problemáticas ainda existentes quanto à comunidade LGBTQIA+. A falta de conhecimento histórico sobre a comunidade, a ausência nas escolas da temática da educação sexual fora da heteronormatividade, a inexistência de projetos de apoio por parte dos municípios, a insuficiente consciencialização em desconstruir palavras e compreender conceitos, a falha em olhar para a saúde mental inclusiva ligada às minorias ou, por exemplo, a escassez da representação a nível local e nacional em termos de música, televisão e teatro.

 

Ainda que a mentalidade da sociedade tenha sofrido alterações “falta fazer um caminho”, porque “enquanto houver crianças a ser ofendidas nas escolas porque têm uma orientação sexual diferente ou porque têm uma identidade de género que também não é aquilo com que nasceram, é demais e é preconceito a mais”, refere Nádia Mira, também ela pertencente à comunidade LGBTQIA+. Ofélia Rocha conclui que é necessário, principalmente nas crianças e jovens, “fazê-los entender quem eles são e que há espaços, descrições e comunidades onde se podem inserir” e que através de “perguntas e esclarecimentos de dúvidas perceberem que isto é só mais uma diversidade como há tantas no nosso planeta”.

 

 

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