Diário do Alentejo

Aprender para lá da capa do livro

20 de junho 2022 - 11:30
“Entre Palavras 2022” destina-se às escolas primárias das freguesias rurais do concelho de Beja
Fotos | Ana FerreiraFotos | Ana Ferreira

Quase a terminar mais um ano lectivo, o “Diário do Alentejo” acompanhou o projeto “Entre Palavras 2022”, desenvolvido pela Biblioteca Municipal de Beja. Uma iniciativa que une a leitura, e o gosto de cuidar o livro, ao trabalho com a música, as expressões plásticas, o teatro e as ilustrações.

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

 A manhã começa silenciosa, calorenta e ansiosa na sala do 1.º, 2.º e 3.º ano da Escola Básica de Santa Vitória. À chegada da dinamizadora da sessão, Paula Martins, os olhos brilhantes e os sorrisos começam a aparecer e, em jeito de surpresa, as 14 crianças começam a declamar orgulhosamente o poema “Aranha, Anha”, que tinha ficado como trabalho de casa na última sessão de “Entre Palavras”. A essa atividade, em conjunto com a professora Tânia Rodrigues e os pais, juntaram a construção de pequenas aranhas com material reciclado, o que deixou visivelmente espantada e satisfeita a técnica da Biblioteca Municipal de Beja – José Saramago.

 

A sessão de hoje terá uma vertente artística e emocional com base nos livros “As preocupações do Billy” e “O encontro das Cores”. Segue-se a pergunta inicial que provoca apreensão: “o que deixará os alunos de Santa Vitória preocupados?”. A medo surgem alguns aventureiros: “quando alguém demora para fazer alguma coisa”, responde um, ou “quando há acidentes e eu não sei o que aconteceu”, revela outro. Aos poucos a dinâmica começa a acontecer na sala de aula e, sem darmos conta, estamos envolvidos em todas as preocupações do Billy, a personagem principal da história trazida.

 

Esta é uma das sessões que, de 15 em 15 dias, é desenvolvida pela Biblioteca Municipal de Beja nesta escola. A par desta, São Matias, São Brissos, Trigaches, Beringel, Mombeja, Albernoa, Trindade, Cabeça Gorda, Quintos, Baleizão, Nossa Senhora das Neves e Santa Clara do Louredo também recebem quinzenalmente, ou semanalmente quando existem duas salas de aula, o projeto “Entre Palavras” pelas mãos de Paula Martins ou de Luzia do Rosário.

 

Este projeto, inserido no Plano Local de Leitura e incrementado antes da pandemia pela Câmara Municipal e a Divisão de Educação da Biblioteca de Beja, consiste em criar “um plano mais alargado de tudo o que são atividades que podem contribuir para a promoção da leitura” junto da comunidade escolar. Após a interrupção por dois anos face à covid-19, a dinamização de sessões junto das escolas primárias das freguesias rurais regressou. “Estas sessões não são uma novidade. A biblioteca sempre fez este trabalho de promoção da leitura junto das escolas, que também foi interrompido durante a pandemia. Neste momento foi o retomar de um trabalho que já vinha a ser feito desde sempre. Neste contexto específico, em termos estratégicos, decidimos que as escolas das freguesias rurais eram a prioridade, porque são as que têm mais dificuldade de aceder àquilo que nós oferecemos na biblioteca”, começa por explicar a diretora da Biblioteca, Paula Santos.

 

O “Entre Palavras” apresenta às crianças duas intervenções complementares, estando sempre o livro no centro da dinâmica. Nas sessões trazidas pela técnica Luzia do Rosário, é trabalhado a componente oral e tradicional, tendo como intuito estimular e aumentar as competências da linguagem e da expressão. No caso de Paula Martins, existe uma ligação “muito específica” com o livro, a leitura, os autores, os textos, os motivadores e os alunos que se complementam com a componente artística.

 

Na sala de aula de Santa Vitória, a atividade prática de hoje surge durante o primeiro livro. Após o Billy construir um “boneco das preocupações” para se acalmar, também os alunos põem mãos à obra para fazer os seus. Após o segundo livro, sobre as emoções, surge a última pergunta que servirá para rematar a sessão: “como é que os meninos de Santa Vitória se estão a sentir hoje?” Desta vez, um a um segue em direção à mesa central e coloca no pote o papelinho com a cor correspondente ao sentimento com o qual se identifica, predominando a felicidade e a calma. O intuito está muito para lá dos trabalhos manuais e das atividades lúdicas, o propósito desta sessão passa por colocar as crianças a exteriorizar as suas emoções de forma simples, mas com significado. Para a técnica Paula Martins, de 50 anos, cada turma exige uma preparação diferente, ainda que as mesmas sejam pensadas “um pouco por intuição” e rondando os poemas animados, as histórias e a “máquina da poesia” onde “eles constroem frases, poemas e histórias”.

 

 

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O DIREITO DAS CRIANÇAS AOS LIVROS  

Numa altura em que se explica às crianças, a propósito do dia 1 de junho, os seus direitos e deveres e que cada vez mais pais se preocupam com as atividades dos seus filhos, Carla Lopes, coordenadora do setor infantil da Biblioteca de Beja, reforça o valor que os livros devem ter na vida infantil. “Sabemos que o livro hoje em dia tem concorrentes que são muito difíceis de combater, que são todas as tecnologias que as crianças têm ao seu dispor. E o papel da biblioteca é também esse, mostrar que há outras coisas para além das tecnologias e das coisas que eles veem nos vídeos e na televisão. Mostrar também que há outra maneira de ver o livro, porque este não é só um instrumento pedagógico, é um instrumento de lazer também”, realça.

 

À semelhança destas sessões, através das quais a biblioteca se dirige às escolas, também têm sido implementadas diversas atividades de âmbito educativo, lúdico e artístico no espaço bibliotecário, com vista a que os mais novos e os seus cuidadores procurem o espaço e cultivem o espírito leitor e ativo em volta da literatura e de todas as suas componentes. Para Paula Santos e Carla Lopes é preciso “fazer parte do equilíbrio e que a par de uma coisa que entra pelas mãos e olhos dentro, haja outros universos que as crianças têm o direito de ter acesso”. “É neste direito que nós nos situamos. As crianças têm o direito a ter a oportunidade de conhecer os universos das pessoas que escrevem e o porquê de escreverem e nos deixarem livros. Elas devem ter a liberdade de contactar com os olhares de quem escreve, de quem tem novas formas de ver o mundo e perceberem a diversidade e a compreensão do outro”, explica Paula Santos. Assim, a atividade desenvolvida pela Biblioteca não serve de substituição ao que é feito pelas equipas pedagógicas das escolas, serve sim como complemento “para a sensibilização e o reconhecimento do indivíduo e de como ele se deve expressar, para o conhecimento do que está à sua volta com o auxílio dos livros, das palavras e dos mediadores”.

 

Atualmente, o trabalho desenvolvido na biblioteca conta com quatro grupos de crianças entre até aos 11 anos de idade, acompanhados pelos seus pais, que visa complementar as ações das escolas e fomentar o gosto e facilitar o acesso aos livros. Desde os anos 90 que a Biblioteca Municipal de Beja implementa “uma oferta de atividades para pais e filhos” que pretende, “num espaço diferente e alheio à escola e à casa, com outras crianças, criar e construir instrumentos e capacidades de nos conhecermos a nós e aos outros e portanto interagirmos numa sociedade saudável”. Para tal, pelo menos num sábado por mês, a Biblioteca recebe um mediador de leitura “de fora” que traz outras linguagens e ligações “à música, ao teatro, à palavra, ao conto, ao dizer e à memória” que abre “horizontes e outras possibilidades que a comunidade pode usufruir”. O também chamado “contrato de leitura”, que segundo Paula Santos marcou a evolução do trabalho na Biblioteca de Beja, é o projeto responsável por manter “o triângulo” entre a escola, a biblioteca e os pais com o fim de “educar a criança”. Este implica “que as escolas tenham os livros e deem oportunidade aos alunos de os trabalharem de formas diferentes e que os pais se comprometam a todas as noites lerem antes de dormir para os seus filhos”, sendo o papel da Biblioteca manter esta dinâmica ativa.

 

Para a diretora da biblioteca esta “presença dos pais é fundamental, pois só é possível construir bons leitores com a família a acompanhar a evolução da criança e a partilhar daqueles momentos”, ao mesmo tempo que a participação destes, nas escolhas das leituras em conjunto com os seus filhos, é primordial para o êxito da literacia. O desenvolvimento das competências leitoras é, indubitavelmente, um reflexo das ações da escola, da educação na sua família e da oportunidade de contactar com o mundo na biblioteca.

 

Desde 2009 que se iniciou um dos projetos inovadores de levar a Biblioteca até às freguesias rurais com a possibilidade de requisição de livros, documentos, CD’S e DVD’S quinzenalmente. A Biblioteca Andarilha, inicialmente tendo como público-alvo a população geral, facilmente foi conquistada pelos mais novos, sendo nos dias de hoje um dos momentos mais aguardados nas salas de aula. Luís Murteira, assistente técnico da Biblioteca de Beja e “quem anda com a Biblioteca Andarilha desde o início” conduziu o “DA” por uma visita à pequena e acolhedora “transportadora de histórias”. Aqui facilmente se encontram as prateleiras da literatura inglesa e portuguesa, dos testemunhos de uma vida, da poesia regional, dos temáticos e das novidades mensais. Seguem-se as estantes dos DVD’S e CD’S dos cantares alentejanos, da música popular portuguesa e do pop. Mais desorganizada, e após os alunos da primária de Santa Vitória a terem remexido, está a secção infantil dividida por faixas etárias, dos zero aos 15 anos. À parte, guardados dentro de duas singelas caixinhas de madeira castanha, estão as bandas desenhadas que são o sucesso entre miúdos e graúdos.

 

A professora do 1º ciclo da Escola Básica de Santa Vitória, Tânia Rodrigues, compreende o peso destas ações, principalmente nos meios rurais. A falta de criatividade é a dificuldade mais percetível nas crianças de hoje em dia e a falta de estimulação leitora é a sua principal causa. “Atualmente, as crianças têm de ser muito estimuladas, precisam de contactar com bibliotecas e histórias, porque uma criança que não tem contacto com os livros não consegue ter criatividade. É simples, quem bem lê, bem escreve”, elucida.

 

“ESTE É UM TRABALHO QUE NÃO SE VÊ, QUE NÃO É ESPETÁCULO”

As sessões de “Entre Palavras” apresentam uma particularidade imprescindível para o sucesso do projeto, ou seja, a obrigatoriedade de haver uma continuação e um prolongamento deste trabalho por vários anos. Assim, o compromisso da biblioteca é acompanhar cada criança até esta sair do ciclo escolar dando-lhe, ao longo do tempo, as ferramentas necessárias para a participação consciente e proveitosa dos livros e das suas componentes. “O que nós fazemos não são atividades, mas sim um trabalho de continuidade durante um ano que se prolonga. Nós começamos com estes miúdos e vamos acompanhá-los até eles saírem deste ciclo escolar. Por este motivo, [o projeto] exige muito esforço porque são duas pessoas que o colocam em prática e estamos a falar de cerca de 20 turmas em pontos diferentes do concelho. Este é um trabalho que não se vê, que não é espetáculo”, afirma Paula Santos.

 

Este ano letivo encontra-se implementado apenas no 1.º ciclo das freguesias rurais do concelho de Beja, sendo que nos próximos anos o foco está no seu alargamento até ao pré-escolar. A sua ação é bem mais do que treinar a leitura é, essencialmente, mostrar aos mais novos a importância dos escritores, das obras, das personagens, das artes e da forma como estas mudam a visão que se tem sobre o mundo. É dar a conhecer por outro olhar e fazer pensar. É aprender, viajar e conhecer sem sair do mesmo lugar.

 

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