Diário do Alentejo

O cante extraído da Mina

18 de junho 2022 - 14:50
A história do Grupo Coral de Cante Alentejano da Liga dos Amigos da Mina de São Domingos

Acaba de celebrar o 46.º aniversário com um “grande” encontro de grupos corais na sede da coletividade que lhe dá o nome, na Quinta de São José, em Sacavém. Único em todo o concelho de Loures, onde chegaram a existir 12, o Grupo Coral de Cante Alentejano da Liga dos Amigos da Mina de São Domingos mantém atividade permanente desde a sua fundação. Nasceu da vontade de um grupo de homens da Mina de São Domingos que o encerramento da exploração mineira, em 1968, fixou na periferia de Lisboa, e de outros alentejanos que já lá estavam. Uma viagem pela história da coletividade e do grupo. E de alguns dos seus protagonistas.

 

Texto Júlia Serrão

 

O encerramento das Minas de São Domingos, devido à falência da Mason and Barry, concessionária da exploração mineira por mais de um século, não foi propriamente uma novidade. Há muito que se previa o desfecho, o que levou muitas famílias a se anteciparem, procurando emprego noutras regiões do país, sobretudo na cintura industrial de Lisboa. Sacavém foi um dos polos de maior concentração, antes e depois do fecho da mina, já que ali existia a Fábrica da Loiça de Sacavém. Uma empresa também inglesa, com características muito semelhantes à Mason and Barry em estrutura social, que acabaria por dar emprego a muitas dessas pessoas.

 

Longe de casa, a população migrante procurava “espontaneamente conviver” e a catarse através do cante, “que é uma paixão e uma característica dos alentejanos”, observa Manuel Martins, sublinhando: “Tínhamos necessidade de nos encontrar, de beber uns copos e cantar umas modas”. Ao princípio cantarolavam nas ruas, nos cafés e nas tabernas de Sacavém. Mais tarde criaram espaço próprio de partilha, convívio e ensaio, formando a Liga dos Amigos da Mina de São Domingos. Uma coletividade com vista a desenvolver atividades que permitissem divulgar e preservar a cultura alentejana. Sensivelmente 12 meses depois, formaram o Grupo Coral Alentejano da Liga que, entretanto, passou a chamar-se Grupo Coral de Cante Alentejano da Liga dos Amigos da Mina de São Domingos. Inicialmente misto, o grupo de vozes era constituído por 30 elementos. Atualmente, conta com 22 masculinos.

 

Fernando Vaz, presidente da Direção da Liga, explica que, com “o crescimento das famílias, o trabalho doméstico era muito absorvente e as mulheres foram deixando de fazer parte do grupo coral”, que mantém uma atividade “sem interrupções, desde a sua formação”.

 

A CONSTITUIÇÃO DO GRUPO CORAL

Manuel Martins, 72 anos, foi um dos fundadores do grupo que agora ensaia, à época constituído exclusivamente por cantadores da Mina de São Domingos, sendo que alguns tinham feito parte do grupo coral local. Ele próprio integrou o grupo infantil a partir dos 8 anos. “Não foi fácil juntá-los pois estavam espalhados pelo Barreiro, Caxias e Sacavém, mas acabámos por conseguir”, comenta. Para dar conta de que, à medida que os mais velhos foram morrendo e houve necessidade de renovação, foram substituídos por pessoas de outras origens. Atualmente, tem elementos de Serpa, Viena do Alentejo e Portalegre, o que coloca uma “dificuldade” acrescida aos ensaiadores que é “harmonizar as vozes”, uma vez que o cante tem particularidades distintas de acordo com a proveniência dos cantadores.

 

Filho de um velho mineiro que o fecho da exploração lançou, doente, na reforma, foi viver para a casa de uma irmã, na zona de Lisboa, aos 12 anos. Esteve lá sete meses e voltou para Mina de São Domingos, de onde saiu definitivamente a dias de fazer os 15 anos, para seguir o “ofício serralheiro civil”. A mudança de residência de Sacavém para Paio Pires manteve- o afastado do grupo “quase 30 anos”. Durante esse tempo esteve noutros grupos e fundou um, o Em Cantos do Alentejo, com as duas filhas a quem passou o “amor pelo cante desde pequenas”, sublinha. Hoje, orgulha-se: uma está a fazer a licenciatura em Ciências Musicais “com teses sobre o cante alentejano, e é ensaiadora do grupo das Cantadeiras de Essência Alentejana, em Almada; a outra canta”. Há cerca de quatro anos, Manuel Martins regressou à casa da partida para ensaiar o Grupo que se junta uma vez por semana, à quarta-feira. Assegura que tem bons cantadores, só lamenta “não os ter apanhado há 20 anos, porque, agora, muitos estão a rondar os 80 anos”.

 

INFÂNCIAS INTERROMPIDAS

O tesoureiro da Liga compõe também o coro do grupo coral, e está na sua organização. Por motivos “profissionais” só começou a frequentar a coletividade em 1980. Mas, agora, não tem como cortar este laço. Já pensou em sair, “por causa de problemas de saúde” que surgiram, mas não tem “coragem”.

 

“Sei que se o fizer, vou sentir um grande vazio. Vai ficar a fazer-me falta qualquer coisa”. Artur Horta, 73 anos, nascido na Moitinha, freguesia de Santana de Cambas, foi fazer os 14 anos a Camarate, levado por uma irmã que ali vivia. Os pais ainda ficaram na aldeia mineira do concelho de Mértola porque, “embora a mina estivesse já em decadência”, só encerraria quatro anos depois. O pai trabalhou na empresa 40 anos, e porque “sabia ler e escrever”, o que era raro naquele tempo, tinha como função “recolher pedras do minério, que eram levadas para o laboratório para análise”. No fim, “saiu sem indemnização, com uma reforma de miséria”. Para ele, os tempos no Alentejo também não foram fáceis. “Assim que fiz a 4.ª classe, o meu estágio foi guardar porcos em Espanha. Estive lá um ano, não gostei e voltei para casa”, conta. Mas a vida de guardador de rebanhos continuou, então na Mina de São Domingos. Apesar da dureza dos dias, foi difícil deixar “a terra”. Refere que as primeiras semanas na capital foram um inferno: “chorava e só pensava fugir, voltar… foi como se tivesse perdido uma parte de mim.”

 

A adaptação não foi fácil, nem tão pouco fazer amigos “com hábitos tão diferentes”. Manuel Martins também refere uma integração difícil na cidade, contando que aos 15 anos “cantava sozinho, às escondidas da malta com quem brincava”, porque o cante alentejano “não era bem visto”, e até gozado. “Diziam que parecíamos padres a rezar”. Apesar da resistência ao novo lugar e às rotinas que lhe eram próprias, Artur Horta acabou por ceder, mantendo-se longe do seu Alentejo por muitos anos. Na cidade industrial foi aprendiz de galvanoplastia e fiel de armazém, e quando foi despedido no âmbito de uma restruturação da empresa onde esteve 40 anos, trabalhava no setor da produção fabril. Pelo meio ficaram três anos de tropa.

 

REENCONTRAR O SENTIDO DE SER ALENTEJANO

A progressão profissional só foi possível pelo tempo que lhe dedicou, instruindo-se num curso noturno aos 30 anos, que lhe trouxe mais do que saber. Durante uma aula, dando “exemplos de energia movida a água”, o professor falava de lugares que ele conhecia de cor. Concluíram que vinham do mesmo lugar. António Batista, que está na Liga praticamente desde o início, e tinha saído da Mina de São Domingos quando o fim da exploração se avizinhava, conhecia os pais de Horta e conhecera- o em pequeno. Convidou-o para fazer parte dos órgãos sociais e do grupo coral e ele aceitou.

 

Logo nesse ano, Horta foi à Mina de São Domingos mais vezes do que na soma dos anos anteriores. “A partir daí comecei a reencontrar homens e mulheres que não via desde a escola primária, nos lugares onde íamos cantar”, observa, explicando que até recuperou o sotaque. “Através desta coletividade, sou outra vez alentejano.”

 

Aos 87 anos, António Batista é um dos elementos mais velhos do grupo. Trabalhou na Mason and Barry entre os 16 e os 22 anos, com interrupção dos meses em que cumpriu tropa. Nasceu na Achada do Gamo, uma povoação que fazia parte do coto mineiro, “onde se encontrava a fabrica de exploração da pirite”, e trabalhou no laboratório ligado à colheita de amostras. Recorda que a falência da empresa foi um acontecimento “brutal, um terramoto que aconteceu”, já que praticamente todo o concelho de Mértola, então com uma população na ordem dos 32 mil habitantes, “vivia dela: ganhava-se pouco, mas havia trabalho e era certo”. O resto era trabalho sazonal, as ceifas e a monda.

 

António Batista não esperou pela última descida às entranhas do solo. “Só tinha duas alterativas: ou ia para o fundo da mina trabalhar mais uns meses, ou fazia o que fiz. Entendi que era muito novo para morrer debaixo da terra”. Diz que saiu mas nunca deixou a sua terra-natal, mantendo com ela “uma ligação profunda sempre”.

 

CANTAR PARA PRESERVAR O CANTE

Em Lisboa, António Batista começou por trabalhar no Laboratório de Investigação de Mineralogia e Cristalografia, ligado à antiga Junta de Investigação do Ultramar, criado “por uma pessoa que tinha conhecido no laboratório das Minas de São Domingos e fazia parte da empresa mineira”. Como tinha apenas o ensino primário, sentiu “necessidade de ir estudar”, concluindo um “curso de laboratório em regime noturno na antiga Escola de Fonseca Benevides”. Mais tarde mudou-se para um laboratório de produtos petrolíferos, onde ficou 48 anos, até à reforma. Desde então vive no Monte da Caparica, há 15, depois de 50 a morar em Sacavém.

 

Todas as quartas-feiras atravessa o Tejo para os ensaios, já que faz parte do coro do grupo coral – sendo também o seu “porta-voz”. Integrar o grupo é uma experiência nova, “embora tivesse cantarolado sempre”, adianta, explicando:

 

“Uma das culturas fundamentais do Alentejo é o cante. Para onde quer que vão, os alentejanos levam-no e quando se encontram cantam”. Refere que o grupo de raízes mineiras canta não só pelo “prazer”, mas também por um compromisso dos elementos com o cante, “que é património a salvaguardar”.

 

A Liga tem vindo a tomar outras medidas no sentido de preservar e divulgar o cante, acrescenta o presidente da direção. Fernando Vaz dá conta de uma proposta levada à Câmara de Loures, para um acordo entre o grupo e o Agrupamento de Escolas Eduardo Gageiro, em Sacavém, para divulgá-lo entre os jovens que, entretanto, já deu ‘frutos’: “Em 2018, criámos um grupo juvenil de cantares alentejanos” constituídos por 20 miúdos – o Grupo Juvenil Já Cá Cante do Agrupamento de Escolas Eduardo Gageiro, que também é ensaiado por Manuel Martins.

 

A história de Fernando Vaz cruza-se com a dos amigos: também era adolescente quando foi para Sacavém, levado por as irmãs que lá trabalhavam. Tinha 16 anos, e empregou-se numa mercearia em Campolide. Mas, pouco tempo depois fugiu rumo a sul, “porque quem nos tirava a terra tirava-nos tudo”, justifica. Voltou definitivamente com 18.

 

ESPAÇO DE CONVÍVIO E PARTILHA

Nasceu há 73 anos em Moreanes. No dia em que fez 15 anos, o presidente da Direção da Liga entrava em Portugal com “uma carga às costas” vindo de Espanha. “Andava” no contrabando! Também guardou toda a espécie de gado, desde ovelhas aos cavalos dos lavradores da zona, logo depois de concluir a 4.ª classe. Lembra-se bem desse dia, em que calçou os primeiros sapatos. Tem muitas outras memórias da juventude, “que marca uma pessoa para a vida, para o bem e para o mal”, desabafa. Em casa, eram 13: o casal e 11 filhos que esperavam ansiosamente o regresso do progenitor que, “ao fim do dia de trabalho, trazia o ‘avio’, pão e umas azeitonas e um bocado de toucinho”. Era a realidade do Alentejo profundo. O pai também era mineiro. “Andava nas profundezas da terra, por isso é que ficou com os pulmões cheios daquele pó, que morreu disso já aqui em Sacavém”, adianta. Os filhos saíram antes da exploração mineira encerrar e, quando isso aconteceu, foram apoio incondicional dos pais que vieram juntar-se a eles, ajudando-os a “ultrapassar o trauma” de terem de deixar o meio onde sempre tinham vivido.

 

Fernando Vaz não foi um dos fundadores da Liga, mas está nos órgãos socias desde 1979. Recorda que a coletividade nasceu “para criar um lugar de convívio e partilha dos alentejanos que tinham necessidade de se unir”, tornando-se, então, uma espécie de símbolo. Ainda é sinónimo de união. E de amor à terra que os viu nascer.

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