Diário do Alentejo

A vida de Francisco Fanhais, o cantor de intervenção

03 de junho 2022 - 10:15
“Denunciávamos a guerra colonial, a ditadura, o fascismo, a PIDE, as prisões, as torturas…”
Foto | José SerranoFoto | José Serrano

Lutou, como cidadão e como padre, contra a ditaduta, denunciando a guerra colonial e a opressão do regime de Salazar. Tornou-se cantor revolucionário e tem por Zeca Afonso uma profunda admiração. Hoje, aos 81 anos, continua, através da música e da palavra, a perpetuar a memória do autor de "Grândola Vila Morena", canção maior da música portuguesa, na qual participou. Tem dois filhos e dois netos e vive em Alvito, terra alentejana que lhe dá sossego.

 

Texto José Serrano

 

A INFÂNCIA

 

No dia 17 de maio fez 81 anos. Qual a primeira recordação que guarda da infância?

Eu nasci em 1941, em plena Segunda Guerra Mundial, em Praia do Ribatejo, que fica ao lado da Base Aérea de Tancos. Uma das primeiras recordações que tenho é a de ver passar os tanques, na rua onde eu morava, e de as casas terem papéis colados janelas – para evitar que, com os estrondos, os vidros não se partissem, porque lá em baixo, junto à margem do Tejo, faziam-se exercícios de fogo real. Uma outra recordação é, curiosamente, musical: quando havia funerais, os sinos da igreja tocavam a finados… ainda hoje me lembro da dolência daquela melodia.

 

Viveu em Praia do Ribatejo até que idade?

Até aos nove anos. Fiz lá a primeira e a segunda classes. Depois fomos viver para o Entroncamento, para onde o meu pai, que era médico, regressou, para exercer a profissão. Fiz lá a terceira e a quarta classes.

 

Vai depois para o Seminário de Santarém, como aluno seminarista. Como foi tomada essa decisão?

Quando acabei a escola primária, disse aos meus pais que queria ser padre. Isto porque no Entroncamento havia um pároco, um rapaz novo, que nos dava catequese – muito amigo das crianças, muito brincalhão, muito simples, de quem nós gostávamos muito. Para mim ser padre, era ser como aquele homem. Foi, pois, um puro fenómeno de imitação. Não tinha, na altura, nenhuma outra razão mais profunda.

 

Como reagiram os seus pais a essa sua intenção?

Os meus pais eram católicos praticantes, muito religiosos, muito crentes, mas não estavam à espera de me verem, eu tão criança, vestido de fato preto. Ficaram muito surpreendidos, mas aceitaram. Um pouco contrariados, por não gostarem de me ver partir, tão pequenininho…

 

Já como seminarista, ia a casa com que assiduidade?

Nas férias grandes, de Natal e da Páscoa. Era esse o regime de internato dos seminários onde estive – o de Santarém, o de Almada e o dos Olivais.

 

Tem boas recordações desse tempo?

Sim, sim. Ainda que, quando cheguei, o Seminário de Santarém estava numa certa transição, do ponto de vista educacional, onde, por parte de certos padres, ainda vigorava a lei da palmatória e da bofetada. No fim dos quatro anos, em que eu lá estive, já se notava, por parte de padres recém-chegados ao seminário, uma certa tendência para inverter aquela “pedagogia” do rigor e da disciplina, com alguma violência associada. Da qual eu também não me livrava – uma vez entornei o tinteiro, com tinta-da-china, e o padre que lecionava desenho deu-me, de castigo, seis reguadas em cada mão. Andei três dias sem as sentir, parecia que eram de cortiça.

 

O SACERDÓCIO

 

Acabou o Curso de Teologia, no Seminário dos Olivais, e foi ordenado padre, em abril de 1965. Sentiu, de facto, esse apelo de Deus, em transmitir a palavra de Jesus?

As minhas razões para entrar para o seminário não tinham a ver, como já disse, com questões filosóficas ou teológicas. Mas à medida que ia, interiormente, evoluindo, que ia contactando, cada vez mais, com a figura de Jesus Cristo, fui entendendo e aprofundando as razões de ali permanecer, de dizer que sim, que era aquela a via que queria seguir. Mantive sempre o objetivo de ser ordenado padre e Jesus continua a ser, para mim, determinante.

 

De que forma acatou o peso da responsabilidade em transmitir a palavra de Jesus às populações?

É óbvio que senti uma grande responsabilidade, no dever de dar o testemunho, nas homilias, nas aulas de Religião e Moral, sobre a figura de Jesus Cristo. O desígnio era anunciar a bondade intrínseca ao Cristianismo, a exigência de justiça, o amor ao próximo, o desejo do fim das guerras. Tudo isto faz parte do núcleo central da mensagem do Evangelho. Valores que têm de estar enraizados em quem transmite essa mensagem. O padre não se pode limitar a anunciar o que aprende nos livros – tem que sentir, ele próprio, o essencial do Cristianismo. Tem que viver aquilo que prega, para que o seu testemunho seja credível. Caso contrário soa a falso.

 

A MÚSICA

 

Nessa altura já a música o seguia, em paralelo com a sua devoção?

A música está em mim desde o princípio. Se calhar desde o tempo em que eu ouvia o sino da igreja, a anunciar que alguém tinha morrido. Sempre gostei de cantar. Um gosto ligado à família – o meu pai tocava piano e cantava muito bem. Quando fui para o seminário a música, o canto, foi sempre a minha componente artística preferida.

 

Ao que julgo saber, essa paixão musical terá adquirido ainda mais força, depois de escutar, pela primeira vez, a voz cantada de Zeca Afonso…

Estava eu ainda no Seminário dos Olivais, faltava-me um ano para acabar o curso de Teologia, quando um padre, professor, me dá a conhecer um disco – não sem antes me recomendar para o ouvir com o volume “baixinho”. O disco tinha, de um lado “Os Vampiros”, do outro “O Menino do Bairro Negro”. O que eu senti, ao ouvir aquelas duas canções, foi como um murro no estômago, uma relevação. Ainda guardo, em casa, esse disco…

 

Desde essa audição até conhecer pessoalmente Zeca Afonso, quantos anos passaram?

Em 1968, um padre meu amigo convidou-se a ir a uma sessão cultural, que ele estava a organizar, nas Grutas das Lapas, perto de Torres Novas, onde estaria presente o Zeca Afonso. Foi assim que o conheci.

 

Correu sem percalços de maior ou a sessão teve alguma presença indesejável?

O encontro tinha o patrocínio da Câmara de Torres Novas, cujo presidente, chamado Fernando Cunha, tinha uma dignidade enorme. Um homem do regime mas extremamente liberal e aberto. Quando se soube que a polícia política andava a tentar infiltrar-se, ele disse: “a PIDE só entra aqui por cima do meu cadáver”. Não tendo sido autorizado, o “pide” que estava em Torres Novas sentiu-se na obrigação de comunicar o facto aos seus superiores. O relatório, acerca do encontro que reuniu centenas de pessoas, só saiu dois meses depois, após terem sido “interrogadas várias pessoas presentes no local, no dia 28 de dezembro de 1968”. Esse é o único favor que devo à PIDE: saber o dia exato em que conheci o Zeca Afonso.

 

A sua consciência política, acerca do regime ditatorial, iniciou-se devido a algum destes episódios?

“Os Vampiros” fizeram soar sinos dentro do meu coração. A fabulosa letra da canção chamou-me a atenção para um problema social gravíssimo – “eles comem tudo e não deixam nada” –, que me pôs a refletir sobre as realidades dos que têm tudo e daqueles que passam uma vida inteira a mendigar as migalhas que caem da mesa dos ricos. Antes disso já me tinha dado, com certeza, conta de muita coisa, mas essa audição, fundamental na minha vida, foi um marco na minha consciencialização política.

 

Como sacerdote tentava elucidar os fiéis, acerca dessa injustiça?

Sim, sim. Como padre estava muito próximo de outros colegas meus que, nessa altura, finais dos anos 60, formávamos um grupo contestatário, dentro da Igreja, que se intitulou, até por influência da PIDE, “os padres progressistas”.

 

Como nasceu esse movimento?

Nasceu da motivação e impulso dados pelo padre Felicidade, um homem intelectualmente luminoso, fulminante. Depois de ter deixado de ser, no Seminário dos Olivais, professor de Teologia – cargo da máxima responsabilidade e da máxima confiança do bispo – passou para prior da Igreja do Mosteiro dos Jerónimos, o que lhe permitiu dar-se conta da situação política que estávamos a viver. E começou a denunciar, nas suas homilias, a Guerra Colonial, a falta de liberdade. Ao ponto de o Américo Tomás [Presidente da República], depois de ter ouvido tantas e tão poucas, ter deixado de ir à missa nos Jerónimos.

 

Que consequências lhe trouxe, ao padre Felicidade, essa ação?

O Cardeal Cerejeira chamou-o à atenção. O padre Felicidade justificou que a sua ação estava ao serviço do Evangelho. Mas acabou por ser preso.

 

Uma prisão que espoletou a reação dos ditos “padres progressistas”?

Sim. Desde a sua prisão, começámos a manifestar, publicamente, a nossa solidariedade para com o padre Felicidade. Sentíamos que estávamos unidos na denúncia da enorme cumplicidade que havia entre a Igreja e o Estado. Denunciávamos, enquanto cidadão e sacerdotes cristãos, a guerra colonial, a ditadura, o fascismo, a PIDE, as prisões, as torturas…

 

Sentia a presença de elementos da PIDE nas suas homilias?

Eu sabia que eles estavam lá. Nós, que pertencíamos a esse grupo de padres, solidários com o padre Felicidade, éramos seguidos e espiados. Quando tínhamos reuniões, para combinarmos estratégias de denúncia, estavam sempre tipos, de gabardina e de óculos escuros, à porta da igreja. Para ver quem é que entrava e para intimidar. Uma vez, estávamos nós reunidos – julgo que na igreja da Madre de Deus, em Xabregas – entraram três “pides”, de repente, pela porta adentro, obrigando toda a gente a identificar-se.

 

 A sua amizade com Zeca Afonso iniciou-se no dia da sessão cultural nas Grutas das Lapas?

Nesse encontro conversámos os dois. Mas só algum tempo depois, acompanhando uns amigos que pertenciam a um grupo cultural – eu na altura já cantava em algumas coletividades – tive oportunidade de falar com ele, longamente, na sua casa, em Setúbal. Percebemos, mutuamente, que existia uma grande sintonia, sobre aquilo que ambos pretendíamos desenvolver, através da música – despertar algo, em plena ditadura e guerra colonial, nas pessoas para quem nós cantávamos.

 

Um momento importante…

Muito importante. Ao ponto de, pouco tempo depois, o Zeca me ter sugerido ir ao Zip-Zip [programa icónico da RTP, de 1969, gravado no Teatro Villaret, em Lisboa, e apresentado por Raul Solnado, Fialho Gouveia e Carlos Cruz]. Foi o Zeca que me “levou” ao Zip-Zip.

 

Cantou, presumo, canções de protesto…

Sim, gravei quatro músicas de protesto, mas na segunda-feira a seguir, no dia do programa, só passaram duas, as restantes foram censuradas. Ainda assim foi uma sorte, porque os censores queriam cortar tudo. Só que encontraram a determinação dos apresentadores do programa, que lhes disseram: “o padre não passa e o programa acaba”. E como Portugal parava para assistir ao programa, isso seria uma bronca de todo o tamanho… sei que esse tipo de situações não se passou só comigo – o pessoal do Zip-Zip era gente muito firme.

 

Na sequência da sua passagem pelo programa, foi-lhe proposto gravar um disco…

Imediatamente a seguir à minha presença na televisão, o Arnaldo Trindade, da etiqueta Orfeu, para a qual gravava o Zeca Afonso, quis gravar comigo. Gravei então, ainda em 1969, o “Cantilena”, um EP, que tem na capa uma fotografia da autoria do fotógrafo, e meu amigo, Augusto Cabrita. Em 1970 gravei um LP, com etiqueta Zip-Zip (depois do programa acabar foi constituída uma editora, homónima), intitulado “Canções da Cidade Nova” [com músicas de Francisco Fanhais e letras de poetas como Sophia de Mello Breyner, Manuel Alegre e António Aleixo]. 

 

Que impacto tiveram estas duas gravações, no rumo da sua vida?

A partir do momento que comecei a ficar conhecido, publicamente, entrei no “comboio dos cantores revolucionários” e passei a integrar o elenco das pessoas que, através da música e dos poemas, tentavam, em coro, denunciar a situação que se vivia em Portugal. Esse comboio levava, na primeira carruagem, o Zeca Afonso e o Adriano Correia de Oliveira, e nas carruagens seguintes uma série de outros – o Manuel Freire, o José Jorge Letria, o José Barata-Moura, o Ruy Mingas, o António Macedo, eu próprio…

 

Ser passageiro desse “comboio”, contestatário ao regime, acarretava perigos, presumo…

Claro. Quando apanhei o comboio, em andamento, pôs-se-me a dúvida se era um caminho que eu devia seguir – porque era um risco. E lembro-me de ter feito esta reflexão: “se os outros meus companheiros de cantigas, que têm mulher e filhos, arriscam e não se acobardam, não se põem nas encolhas, que razões tenho eu, que não tenho família constituída, para deixar a carruagem?”. Foi o exemplo de coragem deles que me motivou a não desistir, a assumir que tinha de contribuir com a minha música, para tentar que as coisas, em grupo, se modificassem, em Portugal.

 

Que consequências teve o assumir dessa posição de confronto público à ditadura, como cidadão, através da música, e como padre, através das homilias?

Comecei, obviamente, a criar, e a ter, problemas. Tanto com as cantigas – muitas vezes censuradas e impossibilitadas de serem ouvidas – como com o meu trabalho eclesiástico, pois ao denunciar a situação política que se vivia eu também denunciava, simultaneamente, a cumplicidade da própria Igreja neste processo. Para além do grupo de padres contestatários, havia um grupo de cristãos também muito forte nessa oposição, pois não se conformavam com a situação de ser a Igreja o mais forte apoio moral da ditadura – que era.

 

Foi, nessa altura, que o regime o impediu de exercer o sacerdócio?

O crivo era cada vez mais apertado e a certa altura tinha três proibições, juntas, na minha vida: Fui proibido de cantar (eu e todos os meus colegas), de dar aulas de Religião e Moral, que lecionava no Liceu do Barreiro, e fiquei suspenso das minhas funções de padre. Comecei então a colaborar com a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos – a Sophia de Mello Breyner pertencia a essa comissão – que tratava de assuntos jurídicos e sociais, porque muitas das famílias dos presos políticos eram extremamente pobres e, estando o marido preso, faltava-lhes o essencial em casa.

 

Verdadeiros dramas sociais, suponho…

Nesse âmbito, passei por um dos episódios mais marcantes da minha vida. Fui, com duas pessoas amigas, visitar uma família, a mãe e dois filhos, um rapaz e uma rapariga, que moravam ao pé da Costa da Caparica, numa barraca de madeira. A senhora trabalhava numa fábrica de camisas. Perguntamos-lhe se a menina, que estava a acabar a quarta classe, iria prosseguir os estudos. E ela respondeu-nos: “como é que vocês querem que eu a ponha a estudar, se o que ganho mal dá para ir ver o meu marido à prisão de Peniche, tendo ainda que pagar a renda da barraca, o petróleo para o candeeiro e comidinha para os miúdos? Quando acabar a quarta classe ela vai trabalhar comigo”. Ao ouvir a mãe dizer isto, a miúda, que até então parecia distraída, nas suas brincadeiras, com uma boneca que lhe tínhamos levado de presente, respondeu, num berro: “ó mãe, mas eu sou inteligente!”. Ainda hoje me emociona muito essa recordação. Eu nunca tinha ouvido ninguém, tão pequenino, a gritar por justiça…

 

A VIDA EM PARIS

 

Foi, por essa altura, que foi para Paris?

Sim. O Zeca ia a França, ter com o José Mário Branco, e resolvi ir com ele e com a Zélia Afonso, que conduzia o carro. Pelo caminho parámos em Valência, onde o Zeca atuou no Festival da Canção Ibérica. Acabada a sua participação seguimos para França. Primeiro fiquei em Lyon, na casa de uns amigos e depois segui para Paris. Lá, o primeiro sítio onde aportei foi na casa de um antigo colega de seminário, o Fernando Belo.

 

A decisão de ir para um outro país foi tomada de rompante? Um ímpeto?

Eu tinha de dar um rumo à minha vida. Antes de ir para Paris, escrevi uma carta a um amigo meu, o padre Jorge, que estava em Estrasburgo, a falar-lhe das minhas aflições e a perguntar-lhe se ele me podia ajudar. Nunca me respondeu, e eu fiquei desiludido. Mas ele não me respondeu pelo simples facto da carta ter sido intercetada pela PIDE – encontrei-a, depois do 25 de Abril, na Torre do Tombo. As consequências das ações da PIDE são indescritíveis, levando-nos mesmo a pensar mal dos amigos…

 

Já em Paris, como iniciou esta nova fase da sua vida?

O primeiro contacto que eu estabeleci, quando lá cheguei, foi precisamente com o José Mário Branco, que me começou a convidar para cantar com ele, em sessões musicais para os emigrantes portugueses. No fundo era aquilo que fazia cá em Portugal, quando podia, que era cantar.

 

Na capital francesa, o seu sustento vinha exclusivamente dos espetáculos?

Não só. Fiz também, na televisão francesa, locução de textos em português. E cheguei a ir a Inglaterra fazer o mesmo trabalho, convidado pelo Joaquim Letria, que trabalhava na BBC.

 

Estamos em 1971, ano da gravação do “Cantigas de Maio”, disco do Zeca Afonso e obra incontornável da música portuguesa, no qual participou…

Na altura da gravação do “Cantigas de Maio”, que ocorreu em outubro e novembro, o José Mário Branco disse-me que havia trabalho a fazer, solicitando a minha participação. E assim foi. Assisti à gravação integral do disco, gravado na capital francesa, no qual participei a cantar no “Coro da Primavera”, onde eu apareço “lá em cima”, a fazer a voz de tenor, e no coro do “Grândola, Vila Morena”.

 

“Grândola”, cujo início foi gravado à entrada do estúdio…

Foi gravado numa zona exterior ao estúdio, sim, onde havia gravilha para arrastarmos os pés, com o som produzido a fazer lembrar os grupos corais alentejanos, quando desfilam pelas ruas. Depois, lá dentro, gravámos as vozes – o Zeca, o José Mário, o Carlos Correia e eu. Foi tudo muito bonito.

 

O que sentiu a participar naquele que viria a ser um dos discos “fundamentais”, histórico, da música portuguesa?

Senti que tinha colaborado em algo muito importante, sem nenhum de nós vislumbrar, obviamente, a importância que o disco, particularmente o “Grândola”, viria a ter na Revolução [a canção foi uma das duas senhas escolhidas, pelos Capitães de Abril e pelo Movimento das Forças Armadas, para desencadear as operações militares que deram origem ao 25 de Abril, a outra canção/senha foi “E depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho].

 

É uma alegria, imagino, ter participado nesse episódio musical da história do Portugal contemporâneo…

Não tenho mérito nenhum, mas é uma satisfação pessoal muito grande, um orgulho, saber que também foi ao som da minha voz, juntamente com a voz dos meus companheiros, que a Revolução avançou. Quando, em 1986, dei aulas de Educação Musical nas escolas de Santiago Maior e Mário Beirão, em Beja, os alunos perguntavam-me se o início do “Grândola” era o som da tropa a marchar. E eu dizia-lhes: “é o povo. A tropa marchou ao som dos passos do povo”.

 

A REVOLUÇÃO E O REGRESSO

 

Quando a Revolução aconteceu, encontrava-se ainda em Paris. Quando regressou a Portugal?

Assim que soube que as fronteiras estavam abertas, regressei ao meu país. Meti-me no comboio, dia 29 de abril de 1974, e cheguei a Vilar Formoso dia 30. Eram sete da manhã e eu e um rapaz amigo, que regressava também, abrimos a janela para respirar, pela primeira vez, o ar puro do Portugal novo, sem haver autorização para sair, de imediato, das carruagens. A estação estava praticamente deserta, à exceção de um soldado, de espingarda a tiracolo, que andava de um lado para o outro, ao comprimento do comboio, batendo os pés no chão para se aquecer do frio que fazia. Quando passou por nós, debaixo da janela, esse meu amigo disse-lhe, por brincadeira, entre dentes, a imitar o tempo em que tínhamos de falar baixinho: “ó nosso cabo, diga-me lá onde é que estão os ‘pides’?”. O soldado, ou porque não percebeu a ironia ou porque não estava para brincadeiras, levantou a espingarda ao alto e exclamou, em boa voz: “ó amigo, fale alto, que isto agora é um país livre”. Um momento lindíssimo, a confirmar que algo muito importante tinha acontecido.

 

A seguir, em 1975, colaborou nas campanhas de dinamização cultural do Movimento das Forças Armadas e de apoio a cooperativas, juntamente com Zeca Afonso e tantos outros cantores. Como foi essa experiência?

Com os companheiros cantores, sobretudo com o Zeca, com o Adriano Correia de Oliveira, com o Vitorino, com o José Jorge Letria, o José Barata-Moura, enfim…todo um grupo de amigos, cúmplices das cantigas, cantávamos em todo o lado. Sobretudo onde havia lutas populares que era preciso apoiar, cooperativas que era preciso ajudar.

 

Foi um tempo de “dias cheios”?

Sem dúvida. Mas também foi um tempo de luta, de confrontação e de alguns percalços, porque em certos pontos do país, particularmente no Norte, era conhecida a resistência organizada, sobretudo, pela parte da extrema-direita, com a colaboração ativa, militante, tal como antes do 25 de Abril, de muitos elementos da Igreja. Mas onde nos solicitavam, nos íamos. Éramos uns andarilhos.

 

Em 1983, volta a participar num disco do Zeca Afonso, gravado ao vivo no Coliseu dos Recreios, em Lisboa…

Sim, é verdade. O espetáculo do Zeca, no Coliseu, foi organizado pela Cooperativa Era Nova, que tinha sido criada, uns anos antes, por malta ligada à música, ao cinema, ao teatro, a várias artes. O Zeca, na altura, já estava muito doente. Nós tememos que ele não aguentasse, mas ele superou-se e foi um espetáculo inesquecível. Quando ele começa a cantar a “Balada do Outono” – “águas das fontes calai, ó ribeiras chorai, que eu não volto a cantar” – houve como que um soluço coletivo no Coliseu, uma emoção espantosa. Todos a pressentirmos que aquela voz, que nos iluminou tanto tempo, estava prestes a calar-se…

 

No ano seguinte, em 1984, veio viver para o Alvito e por cá continua. O que é que esta terra lhe proporciona?

Uma vida de sossego. Daqui, de onde estamos [Praça da República de Alvito], conseguimos ver a padaria, os correios, a farmácia, uma mercearia, o multibanco, a câmara, um café – tudo o que necessitamos está num raio de 200 metros. Alvito é uma terra onde não há uma rotunda, um semáforo, é fantástico – quando digo isto aos meus amigos, que aqui não vivem, nem querem acreditar. E espero bem que ninguém se lembre de instalar aqui qualquer dessas coisas, que o desenvolvimento não é isso.

 

OS DIAS QUE CORREM 

 

Como é que olha para o Portugal de hoje?

Há tanta coisa para fazer. Preocupam-me os movimentos populistas, preocupa-me saber que ainda há gente que pugna por um retrocesso civilizacional, em que as minorias são esmagadas, não são tidas em conta, em que pelo facto de ter outra condição social ou de pertencer a outro grupo étnico se é completamente desprezado. Isso choca-me imenso. E choca-me também a ineficácia, ou inércia, dos governantes, em relação a tantas situações dramáticas que se vivem no nosso país – tal como as condições de escravatura a que estão reduzidos, no Alentejo, muitos milhares de trabalhadores agrícolas, imigrantes. Isso não tem explicação, tanto que, quanto mais se conhece, mais se firma em nós a certeza que há trabalho escravo, em Portugal. Diante da passividade, quase absoluta, das entidades a quem caberia resolver a situação, denunciá-la ou evitar que se mantivesse. É um escândalo.

 

Continua a cantar, a dar espetáculos. Fá-lo por prazer ou de forma a alertar a estarmos atentos para situações de injustiças, tal como esta que acabou de referir, e de nos insurgirmos, de termos coragem para as denunciar e combater?

Faço-o por tudo isso. Um trabalho que eu gosto de fazer é ir às escolas, transmitir aquilo que vivi e, sobretudo, alertar a malta nova, que já nasceu em liberdade e não sabe como é viver na falta dela, do que era Portugal, antes do 25 de Abril. E digo-lhes que estudem, que aproveitem a sua inteligência e a coloquem ao serviço das causas de transformação do País.

 

Nesse sentido de alerta, a cantiga ainda é uma arma?

Continua a ser uma arma fundamental, que ajuda a manter vivo, em nós, o desejo de liberdade e de justiça.

 

Quais são as suas principais conquistas, deste tempo que já viveu?

A descendência que deixo, os meus dois filhos e os meus dois netos, que amo muito. Das tarefas, a que mais me satisfaz, e que me dá uma responsabilidade acrescida, é ajudar a manter viva, através da música e da palavra, a memória do Zeca. Esse tem sido, na minha vida, um ponto fundamental – contribuir para perpetuar a recordação deste homem, um artista fabuloso, que pôs toda a sua arte ao serviço da cidadania.

 

 

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