Diário do Alentejo

Sindicato diz que faltam “pelo menos 30 profissionais” na ULSBA

31 de maio 2022 - 13:00

Segundo o Estudo Nacional sobre as Condições de Vida e de Trabalho dos Enfermeiros em Portugal, apresentado recentemente, 55 por cento dos enfermeiros deseja a reforma antes do tempo, 65 por cento já pensou em mudar de profissão e 67 por cento não gostava que o filho fosse enfermeiro. O coordenador da Direção Regional do Alentejo e dirigente nacional do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses diz que os dados, que não constituem surpresa, são explicados por questões como a não progressão na carreira, as baixas remunerações e a carência de profissionais, o que leva à sobrecarga de trabalho e à exaustão.

 

Texto  Nélia Pedrosa

 

Até há relativamente pouco tempo, admite, nunca lhe “passaria pela cabeça”, um dia, deixar de ser enfermeira. Porque gosta muito do que faz. Porque a profissão acaba por lhe dar “alguma estabilidade social e financeira”. A ideia de mudar de área “é assustadora, desconfortável”, confessa, mas a não progressão na carreira, as baixas remunerações e as constantes pressões a que os enfermeiros estão sujeitos são fatores que levam “a que a determinada altura se perca a motivação e um bocadinho o amor à camisola”.

 

“Os anos passam e em relação à nossa carreira mantém-se tudo igual. Sou enfermeira de cuidados gerais, não tirei mestrado nem uma especialidade porque sinto que vou estar a despender tempo meu, dinheiro meu e depois não vou ser reconhecida profissionalmente. O único benefício seria pessoal, porque não nos valorizam, mesmo adquirindo mais conhecimentos. Por isso não sei até que ponto, daqui a uns anos, a possibilidade de deixar a enfermagem não se colocará. Pode surgir uma outra coisa no caminho que me leve a ponderar isso, com muita pena minha, porque gosto mesmo muito da minha profissão, não gosto é das condições”, diz P. de 37 anos e quase 13 de profissão.

 

Segundo o Estudo Nacional sobre as Condições de Vida e de Trabalho dos Enfermeiros em Portugal, apresentado recentemente a pelo matemático Henrique Oliveira no decorrer do congresso da Ordem dos Enfermeiros, “55 por cento dos enfermeiros deseja a reforma antes do tempo, 65 por cento já pensou em mudar de profissão – o que é revelador – e 67 por cento não gostava que o filho fosse enfermeiro”.

 

Ainda de acordo com o estudo, que foi desenvolvido pela Universidade Nova, Instituto Superior Técnico e Observatório para as Condições de Vida e Trabalho para a Ordem dos Enfermeiros, “um quarto dos enfermeiros trabalha mais de 55 horas semanais” e “mais de 16 por cento dos enfermeiros trabalham mais de 70 horas”. “É muito elevado”, salientou Henrique Oliveira, citado pela Lusa, referindo ainda que 23 por cento dos inquiridos relevou ter mais de uma actividade.

 

O estudo, que contou com 7602 respostas, recolhidas entre 17 de julho e 16 de novembro de 2020, mostra ainda que a maioria dos enfermeiros trabalha no setor público e em hospitais, 57 por cento tem horário rotativo e 74 por cento trabalha por turnos. A maioria recebe 1500 euros brutos de ordenado.

 

Na apresentação das conclusões, Henrique Oliveira salientou que 65 por cento dos enfermeiros afirma sentir-se sempre ou várias vezes por semana fisicamente exausto, 76 por cento sentem falta de mais intervalos, 71 por cento não conseguem descansar nas folgas e 97,2 por cento não gozam sete dias seguidos de férias há mais de 350 dias.

 

Raquel Varela, historiadora e membro do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho, também citada pela Lusa, considera que “estamos perante horários de trabalho do século XIX”, que são “uma resposta fundamentalmente aos baixos salários”. “A maioria dos enfermeiros não recebe um salário que permite reproduzir a força de trabalho. Com um horário de 35 ou 40 horas [semanais] não permite pagar as contas essenciais”, referiu a coordenadora do estudo durante a apresentação, acrescentando que a resposta tem sido o aumento das horas extraordinárias ou a existência de uma dupla ou tripla jornada.

 

P., que trabalha num dos serviços da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba), reconhece que se não fosse mãe, “provavelmente” também teria mais de uma atividade, dentro da área da enfermagem, “por razões económicas”. “Estou a trabalhar há 13 anos e estou na mesma posição inicial. E depois tenho colegas que entram agora e vão ganhar exactamente o mesmo do que eu que já tenho alguns anos de experiência”, lamenta.

 

Para além das questões ligadas à progressão da carreira e às remunerações, P. sublinha que os enfermeiros “trabalham sempre muito no limite”, com “um número muito elevado de doentes a seu cargo”, porque há falta de profissionais, situação que acaba por “levar à exaustão, à sobrecarga de trabalho”. No seu caso, sente que o “grau de exigência tem vindo a aumentar” ao longo dos anos e que a pandemia de covid-19 acabou por agravar as condições que já eram más. “Acho que a longo prazo vou sentir o impacto da pandemia”.

 

“Falta vontade política”

Enfermeiro há 25 anos, Sérgio Rita, de 46, subiu de escalão uma única vez, no ano passado. “Temos uma carreira completamente vergonhosa, e foi feita com intenção. Temos tantos escalões e o tempo para passarmos de escalão é tão prolongado, chega a rondar os 10 anos, que precisamos de trabalhar até aos cento e muitos anos para chegar a um topo de carreira que acaba por não existir”, diz o enfermeiro da Unidade de Cuidados na Comunidade do Centro de Saúde de Ourique, adiantando que “os governos passam e não fazem nada”.

 

Sérgio Rita lembra que com a pandemia “se pediu tudo e mais alguma coisa aos enfermeiros” e que estes “fizeram o que tinham de fazer, assim como os restantes técnicos, e que se fosse necessário voltariam a fazer”, no entanto, considera que “basta de palminhas e mais do mesmo”, porque se chegou a um ponto “em que até já é desconfortável, é quase uma afronta”.

 

O enfermeiro reforça que “falta vontade política” para resolver os problemas da classe e frisa que “pior do que isto, só se não nos pagarem”, contudo, reconhece que “a situação é transversal [a outras profissões]”. “É uma questão de escolhas, e a escolha [dos governos] tem sido sempre no sentido de não responder às necessidades dos enfermeiros. Quer-se, essencialmente, poupar dinheiro”.

 

As baixas remunerações, sublinha, acabam por obrigar os enfermeiros, “os que querem e os que podem”, a procurar outras respostas, “porque têm de viver, de pagar contas”. “Andamos aqui nos [turnos] duplos, a fazer mais umas horinhas aqui, a correr constantemente. É a minha realidade”.

 

Para além das 35 horas semanais e do trabalho extraordinário no centro de saúde, o enfermeiro faz mais oito horas por semana num lar de terceira idade e colabora “pontualmente” com uma cooperativa para a educação, reabilitação e capacitação para a inclusão. “Como qualquer pessoa, o que precisamos não é de mais trabalho, precisamos é de algum bem-estar e aí entra a saúde, acima de tudo, e depois o dinheiro e tempo para outras actividades quer em família, quer de lazer, mas isso é complicado. A vida está difícil para todos”.

 

Ao nível das condições de trabalho, frisa, não tem queixas. Mas também admite que tal se deverá ao facto de trabalhar “nos cuidados de saúde primários, no Alentejo, num concelho mais pequeno”. “Não me falta material para trabalhar, damos respostas às pessoas, claro que se pode sempre fazer melhor, mas há qualidade no que fazemos. Será pior num hospital, porque não há profissionais suficientes”.

 

Quanto ao futuro, embora “a esperança seja a última morrer”, antevê “mais do mesmo, mais desgaste”.

 

Ao contrário de Sérgio Rita, a mulher, também enfermeira, acredita que a “enfermagem vai ter dias risonhos”. “Haveremos de conseguir chegar à nossa valorização enquanto enfermeiros, haveremos de lá chegar”, reforça Marisol Afonso, de 49 anos e quase 27 de profissão.

 

Atualmente trabalha na Unidade de Cuidados na Comunidade do Centro de Saúde de Almodôvar, depois de ter regressado há cerca de quatro anos ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) após um interregno de cinco para exercer funções de coordenação numa unidade de cuidados continuados. A enfermeira admite que foi “a pouca valorização” da carreira que a levou a trocar, em 2012, o Centro de Saúde de Ourique pela unidade de cuidados continuados, contudo, chegou à conclusão que “o privado não é melhor, é tudo muito semelhante [ao público]”. O problema “é sermos enfermeiros, é a questão da carreira”, afirma.

 

Marisol Afonso sublinha que a enfermagem tem sido, ao logo dos anos, “se calhar das áreas mais importantes na saúde” e defende que questões como “valorização, progressão, remuneração” devem ser alvo de uma reflexão profunda. “A carreira tem de ser valorizada, temos de criar condições de vida e de trabalho para os enfermeiros. Mas isto não é só de agora, é uma questão estrutural. A remuneração não é adequada para o trabalho que executamos e isso tudo leva a que haja muita desmotivação e esgotamento psicológico. Há pessoas com 10, 15, 20 anos de trabalho que estão a ganhar o mesmo que um recém-cursado”.

 

Lembra, ainda, que os enfermeiros “estão 24 horas com os utentes”, que a pandemia teve um “impacto brutal” na classe e que foram estes profissionais os responsáveis pela vacinação da covid-19, “por todos os números” que são divulgados.

 

Apesar dos problemas que a classe enfrenta, e de a questão monetária “ser muito importante”, Marisol Afonso revela que acaba por ir buscar o seu “bem-estar”, a sua “força”, ao feedback que recebe dos utentes e familiares.

 

Ulsba necessita de “pelo menos mais 30 enfermeiros”

Para o coordenador da Direção Regional do Alentejo e dirigente nacional do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP), os dados revelados pelo estudo “eram os esperados”, nomeadamente, quanto ao desejo de abandonar a profissão. “Se tivermos em conta um colega que trabalha desde 2000, com um vínculo de contrato individual de trabalho, no SNS, que, volvidos estes anos todos, continua a ganhar o mesmo, esse colega não pode sentir-se satisfeito. Quando se faz uma especialidade, se investiu na profissão, e não se é promovido porque há quotas – e como já estão ocupadas não se pode abrir concursos –, e fica-se à espera, três, quatro, seis anos, até ser promovido, a pessoa começa a perguntar por que razão é que investiu na profissão. Isto leva ao desânimo e à saída mais tarde ou mais cedo”, afirma Edgar Santos.

 

De acordo com o sindicalista, o não reconhecimento destes especialistas “é um mau investimento” por parte do ministério, uma vez que “a população iria beneficiar da atuação especializada”, quer ao nível hospitalar, quer dos cuidados de saúde primários.

 

O dirigente chama ainda a atenção para a carência de enfermeiros e para o facto de haver  profissionais “a fazer dois turnos por dia, 16 horas, quando a lei fala em oito de serviço, o que quer dizer que entre um turno e outro não têm tempo de repouso e isso é cansativo”.

 

Ao nível da Ulsba, diz Edgar Santos, “seriam necessários pelo menos 30 enfermeiros para dotar os serviços com um número razoável de profissionais para que gozem, por exemplo, os seus direitos de parentalidade, de feriados e tempo de formação”.

 

O coordenador admite que foi feito “um esforço enorme” durante a pandemia ao nível das constatações, “mas continua a haver carência”. “Temos enfermeiros que estão a poucos meses de terminar os seus contratos, é necessário renová-los”, adverte. “Reconhecemos que a situação covid trouxe ao Ministério da Saúde vontade de contratar, alguns a título precário, mas contrataram-se mais enfermeiros. É importante, agora, que se mantenham esses enfermeiros com vínculo estável e que se contrate mais para se dotar [os serviços] de um número que venha a colmatar essa carência”, reforça.

 

Perante este cenário, o SPE exige ao governo “a revogação do decreto-lei n.º 71/2019”, que estabelece o regime da carreira de enfermagem, uma vez que “esta carreira não serve aos interesses dos enfermeiros, serve os interesses do Ministério da Saúde, para poupar dinheiro”, diz Edgar Santos.

 

O dirigente lembra que da reunião realizada, na semana passada, entre os sindicatos dos enfermeiros e o Ministério da Saúde, ficou “o compromisso” de se estabelecer “uma calendarização de negociações” e que o SEP já apresentou ao ministério “um caderno reivindicativo” que entende “ser a solução para colmatar a carência de enfermeiros”. “Passa pela revisão salarial, por uma nova carreira que não dificulte a promoção e a progressão dos enfermeiros, que reconheça quando fazem um esforço em fazer uma formação acrescida, que haja uma correta contagem de pontos para efeitos de progressão. Há colegas a trabalhar desde 2000 que já deviam estar na terceira ou quarta posição remuneratória e estão na primeira, 22 anos depois, isto é quase um crime”, sintetiza, sublinhado que é necessário oferecer “melhores condições aos enfermeiros para que deixem também de ir para o estrangeiro”. “Nós formamos enfermeiros, o Estado investe, as famílias investem e depois têm de sair porque aqui não ganham para comer”.

 

Edgar Santos realça, ainda, que os enfermeiros “foram muito compreensivos durante a pandemia” e não fizeram exigências, mas “chegou o momento” de atribuir “o tempo de descanso” acumulado, “sob pena de um dia destes terem de ser tratados, de ser internados porque estão em exaustão”. Aliás, frisa, “já há muitos enfermeiros de baixa porque estão exaustos, e outros trabalhadores também”.

 

Escolas querem debater “problemas” da formação de enfermagem

Dezoito escolas superiores, entre elas a de Beja, criaram recentemente o Conselho Nacional do Ensino Público de Enfermagem, que pretende promover a discussão pública sobre matérias como a necessidade de renovação dos docentes e a articulação formativa com as unidades de saúde. No final de 2021, realizaram-se as primeiras reuniões por um grupo de trabalho constituído por responsáveis pela formação em enfermagem de todas as escolas públicas do País, que culminaram com a formalização do conselho nacional, através de uma Carta de Princípios assinada recentemente.

 

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