Diário do Alentejo

A moda, a viola campaniça e as tradições do Alentejo

31 de maio 2022 - 12:00
Carlos Balbino, etnomusicólogo, tem-se dedicado nos últimos anos a estudar, e a compreender, os costumes e tradições alentejanas
Fotos | Simone CannovaFotos | Simone Cannova

Ao entrar pela porta da taberna, à famosa expressão “paga você ou pago eu a primeira?”, juntam-se agora o “deixe-me escrever o que acabou de dizer” e “quem me dera ter lido aquele livro” pela voz de Carlos Balbino, o etnomusicólogo que encontrou nas tradições do Alentejo um novo objeto de estudo e de vivências.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

Na taberna, o lenço ao pescoço, a taça de vinho na mão, o pão e o queijo em cima da mesa e o pensamento nas memórias de outrora, são um sinal de que dentro de segundos um dos compadres “vai puxar” uma moda. Não é necessário uma combinação prévia de qual parte da canção pertence a cada um ou quem faz o famoso “alto”. A moda segue leve, certeira e sempre harmoniosa até ao final. A simplicidade com que momentos desses acontecem, em cada tasca, traz ao cante alentejano um fascínio e uma particularidade distinta dos outros estilos musicais.

 

Dois anos após o Cante ter sido distinguido como Património Cultural Imaterial da Humanidade (2014) e sem nunca ter tido contacto com as planícies alentejanas, Carlos Balbino, etnomusicólogo e diretor artístico, descobriu-o enquanto “procurava um género de cante polifónico português para integrar na criação de um espetáculo teatral sobre os forcados, La Dernière Corrida”. Nesse mesmo ano, em 2016, rumou até à cidade de Beja à procura de duas das grandes tradições do Alentejo: o cante alentejano e as touradas, onde foi apresentado ao Grupo de Forcados Amadores de Cascais e ao grupo coral Cantadores do Desassossego.

 

“Para além da impressionante intensidade vocal deste grupo coral, fiquei fascinado pela forma como o ensaiador da altura, o Francisco Elias Torrão, trabalhava o som ao pormenor, orientando as várias subtilezas regionais presentes para o estilo de Serpa”, conta ao “Diário do Alentejo” (“DA”) o jovem de 34 anos que desconhecia a variedade musical dentro do cante.

 

Em 2018, optou por ingressar novamente nos estudos dedicando-se à etnomusicologia e antropologia da dança, onde viu na voz dos alentejanos o seu objeto de trabalho e mais tarde “no mistério da campaniça”, ou seja, na dimensão e volume sonoro das violas campaniças. Daqui em diante passou a ter os campos amarelados e as paredes caiadas de branco como uma das suas principais casas. Os convívios e aprendizagens, que, profissionalmente, chama de “experiências etnográficas” ajudaram-no a crescer e a compreender “os deveres e expetativas gerais” de um homem adulto na sociedade nesta zona do país característica.

 

“Como eu fui para o estrangeiro aos 19 anos, de uma forma geral, há muito sobre a vida social dos homens adultos que eu não cheguei a viver em Portugal: ir à caça, à pesca, pertencer a uma associação académica, consumir bebidas alcoólicas, ir de férias para o Algarve, etc. As experiências etnográficas permitiram-me viver no Alentejo, revelando-me os deveres e expectativas gerais do homem adulto na sociedade, numa área geográfica em que me sinto e considero estrangeiro. Isto tudo é facilitado simplesmente pelo facto de eu falar português, ter assimilado passivamente a pronúncia do Alentejo e poder acompanhar a cantoria dos meus interlocutores que, por momentos, devem esquecer-se, tal como eu aliás, que não sou alentejano”, confessa.

 

“A ETNOGRAFIA É UM ESTILO DE VIDA VIVIDO COM GRANDE PAIXÃO”

As artes foram o mote que conduziram Carlos Balbino até ao estudo do ser humano e da humanidade em todas as suas dimensões, onde os costumes, as tradições, a língua e a história dos povos o deslumbraram.

 

Nascido e criado em Cascais estudou durante oito anos na Escola Profissional de Teatro de Cascais, na Worcester Technology College e na East 15 Acting School (Essex University), em Inglaterra, e na École Internationale de Théâtre de Jacques Lecoq, em França. Aqui, fundou, em 2014, a associação cultural “Companhia dos Sonhos Lúcidos” (“Compagnie des Rêves Lucides”) e, paralelamente, dá voz à emissão mensal “Les Voix du Crépuscule” (“As Vozes do Crepúsculo”) na rádio Campus Paris. Ainda assim, desde que começou a sua aventura por caminhos e terras alentejanas, passou a levar também no coração o calor que se faz sentir por cá.

 

Para o etnomusicólogo este modo de vida “inquieta e até angustiante” em conhecer e relacionar-se pormenorizadamente com as “gentes” e as suas culturas obriga a “um estado de escuta constante que se ativa pela mais pequena informação” e que se torna quase impossível “desativar”.

 

“É um ofício que impõe um certo estilo de vida que pode ser vivido com grande paixão, mas no qual a vida pessoal pode confundir-se facilmente com a profissional, o que exige uma especial paciência e compreensão dos nossos familiares, amigos e interlocutores. A etnologia tem um efeito direto naqueles que a praticam mas, a meu ver, a habilidade do etnólogo expressa-se na sua capacidade em dispor do seu conhecimento, para provocar uma atitude reflexiva nos outros e dar as melhores ferramentas teóricas àqueles que tomam as decisões”, explica.

 

No Alentejo tem dedicado os seus dias ao estudo das raízes do cante alentejano e dos seus acompanhantes, particularmente a viola campaniça. Primeiro, empenhou-se em compreender o “cante espontâneo” aquele cantado pelos “cantadores de taberna” em torno de um balcão. Percebeu que neste existem “regras próprias” que divergem “ligeiramente, consoante as pessoas presentes”, e chegou à conclusão que a maior parte “fazem ou fizeram parte de um grupo coral, com quem consolidam os seus conhecimentos”. Constatou também que a “lentidão e a demora” do “cantar à Cuba”, com o prolongamento dos versos, deu-se, independentemente da região, nos anos 90.

 

Recentemente, em abril, terminou a sua primeira experiência etnográfica no estudo da viola campaniça, onde durante 37 dias, espalhados por cerca de dois meses, acompanhou a produção de uma  campaniça com o construtor José Abreu. “Filmei todas as etapas do processo de construção. Aproveitei esta fase inicial do estudo para questionar muitas das escolhas do José Abreu, e comecei a comparar conhecimentos com outros entendidos que passavam pela oficina. Também pude experimentar outras violas, antigas e novas, e ir ao encontro de outros construtores, ver com que máquinas trabalham, perguntar-lhes como se formaram/formam e de que forma fazem os seus instrumentos”, descreve o também ensaiador.

 

Nesta temática descobriu que a maioria dos construtores ativos de violas campaniças no Alentejo são “autodidatas” e que, independentemente “das variações de qualidade, ou seja, a estética e a acústica, as violas modernas são superiores às velhas”. Para Carlos Balbino, esta característica “é extremamente interessante porque os construtores ativos vão inspirar-se nos modelos antigos, mas todos eles, mesmo os portadores de um discurso mais património-conservador, acabam por inovar certos elementos do instrumento para o tornarem mais ergonómico, elegante e resistente”, confessa.

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O FUTURO DAS TRADIÇÕES ALENTEJANAS

Enquanto historiador das práticas culturais de um povo, Carlos Balbino acredita que a “tradição é uma coisa viva, que passa por processos de seleção e exclusão de elementos para continuar a existir” e que em grande parte a sua conservação depende “da forma como os agentes locais promovem a sua própria cultura”. No seu ponto de vista, estas “práticas antigas subsistem nos dias de hoje quando são formalizadas ou transformadas em emblemas culturais”, havendo consequentemente “um interesse institucional particular por aquelas que podem ser utilizadas como produtos turísticos”.

 

“Outro fenómeno que pude observar [enquanto estive em campo]   é a estratégia assumida de patrimonialização do cante espontâneo pelo Município de Cuba, e até a formalização deste, como complemento ao turismo local, ao enoturismo, e ao processo de patrimonialização do vinho de talha por Vidigueira e Cuba”, exemplifica ao “DA”.

 

Desta forma, a antropologia acaba por ser uma área imprescindível para a agregação de costumes, historias e tradições de um povo que permite evitar uma “desfragmentação social” e mudar “estruturas sociais”. No entanto, o seu maior receio é a “supressão cultural”, ou seja, o fim propositado de determinada prática social e cultural, “contrariamente a uma lenta evolução das expressões culturais”. Carlos Balbino afirma ainda que se entristece “por ver certas práticas seculares desaparecerem de um dia para o outro por imposição legislativa”.

 

AS MEMÓRIAS E O FUTURO

As “gentes” do Alentejo, conhecidas pela sua característica acolhedora, já proporcionaram “uma mão cheia” de momentos marcantes, emblemáticos e comoventes na vida de Carlos Balbino. Desde a participação de 16 artistas e grupos corais na gravação do primeiro disco do Rancho de Cantadores de Paris, grupo coral que ensaia em França, a almoços de despedidas que encheram pequenas tabernas, até a subidas a palco para, junto com os seus compadres, puxar uma moda.

 

“Um dos momentos mais emocionantes em etnografia aconteceu há um mês, no Festival dos Sabores do Borrego de Castro Verde, quando o coordenador Filipe Pratas convidou-me para subir ao palco com os Ganhões. Apenas dois dias depois, ainda no mesmo evento, o ensaiador Jil Galinha trouxe uma farda antiga para eu poder cantar com os Ceifeiros de Cuba. Destes momentos, felizmente tenho uma mão cheia deles”, assume orgulhoso.

 

Com o pensamento nas memórias felizes do passado, Carlos Balbino coloca agora os olhos nos projetos que tem pela frente. Enquanto prepara quatro colóquios para os próximos dias e aguarda a aprovação de uma nova emissão de rádio, em podcast, dedicada à etnomusicologia onde divulgará o trabalho desenvolvido no Alentejo e contará com a presença de outros investigadores, ensaia os membros da oficina semanal de Cante da associação cultural “Companhia dos Sonhos Lúcidos”, com o objetivo de vir a apresentar o seu mais recente álbum “Alentejo ensemble” nos municípios alentejanos. Mais tarde, por volta de 2026 e depois de defendida a sua tese de doutoramento, ambiciona começar as gravações de um filme etnográfico sobre a viola campaniça, projeto que retomará brevemente para a sua segunda experiência.

 

O jovem cascalense, que deixou Portugal ainda muito novo, encontrou agora nas planícies, no calor, na calma, nos costumes e tradições do Alentejo uma nova paixão e forma de ver a vida. Por aí, entre campos, oficinas e tabernas, continuará ele de caderno, lápis e máquina de filmar na mão com o forte desejo de continuar a colecionar os tempos de outrora.

 

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