Diário do Alentejo

Um ano depois da cerca sanitária em Odemira

16 de maio 2022 - 10:25
Foto | Nuno Veiga/LusaFoto | Nuno Veiga/Lusa

 

Um ano após a entrada em vigor da cerca sanitária nas freguesias de São Teotónio e Longueira/Almograve (Odemira), medida que acabou por dar visibilidade às condições precárias em que viviam muitos trabalhadores imigrantes, o presidente da câmara municipal garante que foram dadas respostas “fortemente” transformadoras do território para melhorar a situação. Já Alberto Matos, da associação Solidariedade Imigrante, diz que “mudou muito pouco” e que é necessário “pôr fim” ao modelo de exploração agrícola intensiva “antes que ele nos destrua a vida”.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

Às 8 horas da manhã do dia 30 de abril de 2021, entrava em vigor a cerca sanitária decretada pelo Governo nas freguesias de São Teotónio e Longueira/Almograve, no concelho de Odemira, devido à elevada incidência de casos de covid-19, sobretudo entre trabalhadores do setor agrícola, muitos deles imigrantes.

 

A medida, que se prolongou até ao dia 12 de maio, acabaria por dar visibilidade às condições em que viviam muitos destes trabalhadores. No decorrer das ações de controlo e prevenção da pandemia então realizadas, foram identificadas situações de alojamento de trabalhadores agrícolas com deficiências, por falta de salubridade ou por sobrelotação.

 

Na véspera da entrada em vigor da cerca sanitária, o primeiro-ministro, António Costa, sublinhava que “alguma população” vivia “em situações de insalubridade habitacional inadmissível, com hipersobrelotação das habitações”, e relatava situações de “risco enorme para a saúde pública, para além de uma violação gritante dos direitos humanos”.

 

O então presidente da Câmara de Odemira, José Alberto Guerreiro, estimava que “no mínimo seis mil” dos 13 mil trabalhadores agrícolas do concelho, permanentes e temporários”, não tinham “condições de habitabilidade”. “Este ano, estamos a falar de seis mil, mas, mesmo que sejamos capazes de resolver dois mil, no próximo ano, estamos a falar de seis mil ou sete mil, outra vez”, alertava.

 

A direção da Associação dos Horticultores, Fruticultores e Floricultores dos Concelhos de Odemira e Aljezur (AHSA), afirmava, por sua, que a falta de habitação era “um problema crónico” que a curto/médio prazo só se conseguiria resolver “com a instalação de trabalhadores em habitações temporárias de qualidade, no interior das quintas” e atribuía a questão da sobrelotação “ao arrendamento abusivo por parte de proprietários locais”, resultado “da total ausência de investimento público sobre esta matéria, que resolva cabalmente o aumento da população registado nos últimos anos”.

 

Já o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, advertia que a mão-de-obra imigrante deveria ser tratada em termos humanos e com “dignidade, como vem na Constituição”. “Em relação a Odemira, começou por ser aos olhos dos portugueses um caso sanitário, um caso mais grave de saúde pública que exigia medidas graves e depois foi-se descobrindo que havia realidades sociais por baixo desse caso sanitário. Vale a pena desde já começar a refletir sobre algumas lições de Odemira”, afirmou então.

 

A 11 de maio, numa visita ao concelho de Odemira a fim de anunciar o fim da cerca sanitária e participar numa sessão em que foram assinados acordos entre associações representativas de empresas agrícolas, câmara e Governo para a criação de condições habitacionais para trabalhadores agrícolas, o primeiro-ministro reconhecia que a realidade dos imigrantes em Odemira não era nova e que havia trabalho feito na área da habitação, mas a pandemia “consumiu” recursos, energia e tempo.

 

“Nós sabemos que esta realidade não é nova, aqui em Odemira, nem nos era desconhecida”, afirmou António Costa, lembrando que, em outubro de 2019, “uns meses antes de aparecer” a covid-19, tinha sido aprovada uma resolução do Conselho de Ministros centrada nas questões da agricultura e dos trabalhadores deste setor em Odemira. A resolução estabeleceu, entre outras matérias, uma moratória de 10 anos que permite a manutenção de estruturas de habitação amovíveis (contentores) e 16 pessoas por unidade de alojamento, quatro por quatro e uma área de 3,4 metros quadrados para os trabalhadores.

 

Um dos memorandos assinados na referida sessão de 11 de maio envolveu a câmara e o Governo, tendo sido estabelecido o compromisso para a apresentação por parte da autarquia da Estratégia Local de Habitação, um instrumento que, considerou então o primeiro-ministro, iria permitir “saber onde é que deve ser construída, como é que deve ser construída, para quem deve ser construída essa habitação” e “tem que ser para aqueles que residem” em Odemira, “sem qualquer tipo de discriminação quanto à sua origem ou atividade”.

 

O outro acordo, envolvendo o Ministério da Agricultura e a Associação Horticultores, Fruticultores e Floricultores, Lusomorango (organização de produtores) e Portugalfresh – Associação para a Promoção das Frutas, Legumes e Flores de Portugal, visava, segundo António Costa, que os proprietários promovessem “a existência de condições de habitação condigna” para os trabalhadores sazonais, com apoio de verbas do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (Feder).

 

ALOJAMENTOS TEMPORÁRIOS "COM CAPACIDADE PARA 2000 PESSOAS" 

Um ano após ter sido decretada a cerca sanitária às duas freguesias do concelho de Odemira, o presidente da câmara municipal garante que foram dadas respostas “fortemente” transformadoras do território, no último ano, para melhorar as condições de vida e de habitabilidade dos trabalhadores imigrantes das explorações agrícolas.

 

“Do ponto de vista estrutural e relativamente à questão que tinha que ver com as condições de habitação dos trabalhadores nas explorações agrícolas, principalmente os trabalhadores temporários que vêm numa determinada altura do ano e que precisam de habitação condigna como todos nós, mudou muita coisa”, disse Hélder Guerreiro, em declarações à Lusa.

 

Segundo o autarca, “já existem aprovados e estão a ser implantados no território” alojamentos temporários em diferentes explorações agrícolas “com capacidade para 2000 pessoas”, o que “é fortemente transformador”. Esta medida, lembrou, era uma das previstas na “resolução do Conselho de Ministros” e nos acordos assinados, em maio de 2021, entre o Governo, “as explorações agrícolas e a câmara municipal para resolver a questão da habitação”.

 

Ainda de acordo com Hélder Guerreiro, “cerca de 80 por cento destes projetos são novos”, o que considera “muito importante, porque alivia, desde logo, aquilo que era a habitação nos aglomerados urbanos”.

 

O autarca reconhece, no entanto, que “há algumas coisas a limar, nomeadamente, alguns alojamentos que ainda não foram licenciados [e] precisam de uma resposta nos próximos dois meses”, e defendeu que “é preciso agir sobre esses processos” que não estejam licenciados. O município, alertou, está a preparar-se “do ponto de vista jurídico” para atuar.

 

O presidente da câmara disse ainda que, apesar de estar garantida habitação “para cerca de 2000 pessoas, na próxima campanha” agrícola, é necessário monitorizar as condições desses trabalhadores “dentro das explorações agrícolas”. Revelou também que a câmara, em articulação com as diferentes entidades que atuam no território, vai reforçar, a partir deste mês, as ações inspetivas às habitações nos aglomerados urbanos, para “garantir que não repetimos o cenário de 2021”. Vamos “tentar fazê-lo já, preventivamente, para tentar evitar chegar a situações, lá para junho, julho, em que as coisas estejam relativamente descontroladas”, disse.

 

Além destas vistorias, a autarquia está “a desenhar”, no âmbito de revisão do plano diretor municipal e da Estratégia Local de Habitação, “aquilo que serão os espaços/territórios, designadamente, os aglomerados urbanos, que podem vir a ser objeto de investimento por parte das empresas”, em termos de habitação.

 

Com esta medida, a autarquia tenciona “resolver aquilo que ficou definido na resolução de Conselho de Ministros”, permitindo que, no espaço “de 10 anos”, seja possível “encontrar as soluções definitivas para estes trabalhadores agrícolas”.

 

“GOVERNO E CÂMERA ESTÃO REFÉNS DOS GRANDES INTERESSES" 

Contrariamente ao presidente da Câmara de Odemira, Alberto Matos, membro da direção da associação Solidariedade Imigrante (Solim) e responsável pela delegação do Alentejo, com sede em Beja, afirma que a situação laborar e de vida dos trabalhadores imigrantes no concelho “mudou muito pouco”. “Aliás, num ano nada de essencial poderia mudar, uma vez que se mantém o modelo de exploração agrícola intensiva que maximiza o lucro à custa da predação ambiental e social. É o modelo californiano (…). Nos EUA os proprietários avisam abertamente o governo de que ‘sem imigrantes ilegais não há colheitas na Califórnia’, no Alentejo alimentam-se do trabalho escravo de milhares de imigrantes”, diz ao “Diário do Alentejo”.

 

O dirigente sublinha que neste modelo “pouco importam as condições laborais e habitacionais, nem os danos ambientais que provoca”, até ao dia “em que faltar água”. “A Associação de Beneficiários do Mira optou por cortar o abastecimento de água aos pequenos agricultores e quer aumentar o preço da água para abastecimento público; entre os próprios grandes proprietários já se negoceiam cotas de água, mas a barragem de Santa Clara não dá para tudo num cenário de alterações climáticas”, prossegue.

 

Segundo Alberto Matos, o Governo e a Câmara de Odemira “estão reféns dos grandes interesses da agricultura intensiva e superintensiva, no perímetro de rega do Mira, como no de Alqueva, onde os problemas da sobre exploração do trabalho e dos recursos naturais são semelhantes. É essa captura pelos grandes interesses transnacionais que embota a vontade política de governantes e autarcas, rendidos aos milhões para exportação, mesmo à custa da miséria de dezenas de milhares de imigrantes e das populações locais”. “Há que pôr fim a este modelo, antes que ele nos destrua a vida”, reforça.

 

O dirigente da Solim considera ainda que “neste sistema não há fiscalização que valha”, seja do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras ou da Autoridade para as Condições de Trabalho, “apesar da boa vontade dos seus efetivos”. “É verdade que estes são reforçados durante umas semanas, com inspetores de todo o País, quando os holofotes da comunicação social se acendem. Mas depois tudo volta ao mesmo…”, diz. A GNR, frisa, “mantém uma presença permanente no território, mas as questões sociais não são casos de polícia”. Para além disso, “a sua atuação tem sido manchada por comportamentos individuais e de grupo inaceitáveis, como a tortura e a humilhação de imigrantes, que já levaram a penas de prisão efetiva e à suspensão de militares do posto de Vila Nova de Milfontes”.

 

Perante o anúncio da intensificação de ações inspetivas por parte da câmara, Alberto Matos afirma que as “ações inspetivas sérias têm dois pressupostos: a sua regularidade e o efeito surpresa”, sendo que “inspeções com pré-aviso não passam de mera propaganda e servem de alerta aos prevaricadores”.

 

Já em relação aos alojamentos temporários que estão a ser implementados no território, o dirigente da Solim diz que isso significa que está em marcha o processo “simplex contentores”, previsto na Resolução do Conselho de Ministros 69/2021, “que a Solim denunciou há um ano e que vai permitir a disseminação no território do parque natural de ‘aldeias de contentores’, alegadamente a título provisório, mas que em Portugal costumam tornar-se definitivas”.

 

“As instalações de alojamento temporário amovíveis (IATA) de trabalhadores agrícolas são uma exigência da Confederação dos Agricultores de Portugal e da AHSA, contrária à socialização e integração dos imigrantes, confinados no interior das explorações agrícolas e ‘sempre ao dispor’ dos patrões”, diz o responsável, lembrando que “esta solução sempre foi criticada pelos órgãos autárquicos de Odemira, aliás, todos os pedidos de instalação de IATA foram recusados pelo anterior presidente da Câmara”.

 

Dos projetos já aprovados, e que permitirão criar 2000 mil camas em diferentes explorações agrícolas, Alberto Matos salienta que “apenas 200” estarão em execução – “e mesmo essas ninguém as viu” –, o que “é uma gota de água no oceano”, considerando que “o acréscimo de trabalhadores sazonais na época alta da apanha de frutos nas estufas ronda os oito a 10 mil”.

 

O dirigente defende que, na área laboral, “no mínimo, há que responsabilizar as empresas agrícolas não só pelas infrações que cometem diretamente, mas também por todas as outras – incluindo o não pagamento de descontos à Segurança Social e das retenções de IRS às Finanças e o não pagamento total ou parcial de salários – cometidas ao longo da cadeia de contratação que opera nas suas estufas e outras instalações”. 

 

Na área habitacional, “há que adaptar a estratégia local de habitação, recentemente aprovada, a esta nova realidade social e demográfica”. Para Alberto Matos, “não é sustentável alojar toda esta população na estreita faixa litoral de cinco quilómetros, de Milfontes a Odeceixe. Há que olhar para o vasto interior do concelho de Odemira, o maior da Europa em área, apostando na requalificação das aldeias despovoadas e com inúmeras casas abandonadas. As deslocações pendulares casa-trabalho exigirão uma rede eficiente de transportes a ser financiada por uma fatia dos super lucros dos donos da agricultura intensiva”.

 

O “Diário do Alentejo” tentou ainda obter um comentário do Alto Comissariado para as Migrações (ACM) sobre as atuais condições de vida e laborais dos trabalhadores agrícolas no concelho, mas tal não foi possível em tempo útil.

 

 

REALOJAMENTO DE IMIGRANTES NO ZMAR GEROU PROTESTO 

Na sequência da cerca sanitária decretada em abril do ano passado nas duas freguesias do concelho de Odemira, os trabalhadores agrícolas com teste positivo à covid-19 foram colocados na pousada de Almograve. Quem se encontrava em isolamento profilático ou sem condições de habitabilidade foi realojado no complexo turístico Zmar, cuja “requisição temporária, por motivos de urgência e de interesse público e nacional”, foi decidida pelo Governo. Uma decisão que acabou por ser contestada judicialmente pelos proprietários por via da apresentação de uma providência cautelar, que foi aceite pelo Supremo Tribunal Administrativo. Os primeiros imigrantes chegaram ao Zmar na madrugada do dia 6 de maio sob forte aparato policial. No início de junho o Governo acabaria por chegar a acordo com o Zmar através da assinatura de um acordo que definia o pagamento de 100 euros por dia por cedência temporária de cada uma das unidades de alojamento, aplicando-se as condições a partir do primeiro dia de requisição, dia 29 de abril.

 

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