Diário do Alentejo

Agr. nº1 de Beja com Educação Bilingue de Alunos Surdos

12 de maio 2022 - 11:25
Escola de Referência para Educação Bilingue do distrito de Beja acompanha oito alunos com vários graus de surdez
Foto | José SerranoFoto | José Serrano

A única Escola de Referência para a Educação Bilingue de Alunos Surdos do distrito está sediada no Agrupamento de Escolas n.º 1 de Beja. Ao todo, no presente ano letivo, são apoiados oito alunos, com diferentes graus de surdez, oriundos não só do concelho de Beja mas também de Moura e até de Grândola. Nesta resposta educativa especializada, em que a língua gestual portuguesa é a primeira língua e o português escrito a segunda, um dos objetivos principais é a inclusão escolar e social das crianças com dificuldades auditivas.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

 

Maria admite que a entrada no primeiro ciclo do ensino básico e, depois, mais tarde, a transição para o segundo, não foram fáceis. Diagnosticada com surdez severa à nascença, sentia-se “insegura” por “usar aparelho” auditivo. Temia ser “gozada” pelos colegas ouvintes, de se sentir “inferior” no “meio dos outros”. “Perguntavam-se o que é que eu tinha no ouvido e eu sentia-me diferente. Mas acabei por ultrapassar essas inseguranças. Acho que mentalmente cresci e tornei-me mais madura com esse desafio”, diz a jovem de 14 anos, aluna do 9.º ano de escolaridade.

 

Para o próximo ano letivo espera-a não só nova transição de ciclo, mas também de escola, uma vez que o estabelecimento de ensino que frequenta não tem secundário. No entanto, é com confiança que encara essa mudança, que vê como “mais uma preparação para um passo maior”, ir estudar para os Estados Unidos da América e “possivelmente trabalhar e viver lá”.

 

Maria é acompanhada desde os seis anos de idade pela equipa da Escola de Referência para a Educação Bilingue (língua gestual e língua portuguesa) de Alunos Surdos do distrito de Beja, anteriormente designada Unidade de Apoio à Educação de Crianças e Jovens Surdos, sediada no Agrupamento de Escolas n.º 1 de Beja, na Escola de Santiago Maior. Uma resposta educativa especializada, visando a implementação de um modelo de educação bilingue, “garante do crescimento linguístico, do acesso ao currículo nacional comum e à inclusão escolar e social de crianças e jovens surdos”, assegurando o desenvolvimento da língua gestual portuguesa (LGP) como primeira língua e do desenvolvimento da língua portuguesa escrita como segunda, como consta do decreto-lei 54/2018.

 

Ao todo, no presente ano letivo, são apoiados oito alunos (quatro no primeiro ciclo, dois no terceiro ciclo e dois no ensino secundário) e respetivas famílias. Sendo a única escola de referência de educação bilingue no distrito, abrange todo o território, acompanhando alunos “com diferentes graus de surdez”, do pré-escolar ao ensino secundário. Maria reside na cidade de Beja, mas há quem percorra diariamente mais de 120 quilómetros, vindo de Moura ou de Grândola, já fora do distrito. No caso dos alunos que não vivem na cidade de Beja, o transporte, feito de táxi, é assegurado pelo Ministério da Educação ou pelas câmaras municipais.

 

“A educação bilingue é crucial”, sublinha a coordenadora da equipa de educação bilingue do distrito de Beja e docente de LGP. “As crianças surdas têm direito a terem acesso à educação na sua língua, a língua gestual, ou em outros casos em que não são surdos profundos, que têm resíduos auditivos e que até oralizam, podem ter acesso à educação bilingue para conseguirem ter o maior proveito, o maior sucesso na sua aprendizagem, para a aquisição ser feita na sua plenitude”, esclarece Bruna Rosa.

 

A equipa de educação bilingue é constituída atualmente por duas professoras de educação especial, duas docentes e três intérpretes de LGP e uma terapeuta da fala. A Escola de Santiago Maior dispõe ainda de uma sala de referência no jardim-de-infância com uma educadora com formação em LGP e de uma sala bilingue no primeiro ciclo, “onde as crianças são apoiadas na sua língua e com as estratégias individualizadas adequadas a cada uma”. Nos outros ciclos, como refere a lei, todos os alunos com surdez têm no seu currículo a LGP como disciplina e são contemplados com sessões de terapia da fala. Nas restantes disciplinas são acompanhados pela intérprete de língua gestual. Os alunos que transitam para o secundário podem frequentar a Escola Diogo de Gouveia ou a Escola D. Manuel I, esta no Agrupamento de Escolas n.º 2, dependendo da área pretendida.

 

Para Maria, que ouve “perfeitamente” com ajuda do aparelho e que desde muito cedo se expressa oralmente, a aprendizagem da língua gestual portuguesa, diz a mãe, Ângela Santos, é, “sem dúvida, uma grande mais-valia para o futuro, assim como para o presente”. “Os médicos dizem que a gravidade da audição da Maria não avança, mas nós não sabemos o dia de amanhã, o que poderá acontecer, e, para além disso, sendo ela bilingue, pode utilizar a LGP como uma arma também no futuro profissional”, afirma.

 

Reconhece, no entanto, que “foi um choque” quando a filha começou a ser acompanhada pela equipa de educação bilingue, um modelo educacional que até então desconhecia. “Ela tinha uma carência auditiva, de facto, mas ouvia e falava”, justifica. Para além disso, ao contrário do que acontece com outras crianças com problemas auditivos, “que se tornam introvertidos, que não comunicam”, sempre “foi muito extrovertida, sempre quis ser o centro das atenções”. “Reagimos um bocadinho mal na altura, mas pensando bem, hoje só temos a agradecer à escola ter estes meios e estas ferramentas tão importantes que, de certeza, vão ser muito bons para a Maria no futuro. Todas as pessoas que passaram pela vida da Maria na parte educacional, desde a educadora de infância aos professores de hoje, foram muito importantes, cada uma à sua maneira”.

 

Maria acrescenta que ser bilingue aumentou a sua autoestima e que lhe permite perceber “os dois lados”: “Consigo comunicar com pessoas surdas e com pessoas ouvintes ao mesmo tempo e também consigo traduzir, às vezes, quanto um surdo precisa de ajuda”. Aliás, a jovem defende que a LGP deveria ser ensinada também aos alunos ouvintes, para facilitar a comunicação entre todos.

 

No caso de Alice, de 12 anos, aluna do 4.º ano, acompanhada pela equipa de educação bilingue há dois anos, a língua gestual permite-lhe aumentar o tempo de concentração, explica a mãe, Ricardina Mira Corôa. “Enquanto lhe estão a contar uma história, por exemplo, está muito mais tempo atenta do que se estiver sem o gesto, porque o aparelho faz a discriminação auditiva mas o gesto dá-lhe o apoio visual, portanto, isso dá-lhe tempo de atenção, permite-lhe estar mais próximo da turma”. Independentemente “de não fazer a totalidade dos gestos”, porque, para além da surdez, Alice tem limitações a nível motor, a LGP “permite-lhe compreender e evoluir a outros níveis, que não o da oralidade, mas o da compreensão, o da leitura”, acrescenta.

 

“Se formos ver o progresso da Alice entre o segundo e o quarto ano, em termos de língua gestual ou de comunicação, são avanços muito pequeninos, só que ela tem avanços noutras áreas para depois esta, mais tarde, avançar”, reforça Ricardina. Acima de tudo, adianta, a criança é “vista no global e não na afetação específica” de uma área, o que considera bastante positivo. “Nesta escola percebem que a Alice tem um problema de comunicação, que esse problema cria-lhe um problema social – como não fala, acaba por não ter amigos, porque os miúdos procuram-na, mas ela não dá respostas –, que também é promovido por outro problema, e que têm de a integrar no grupo para ela ultrapassar isso. O processo é muito lento, mas a criança é vista no global”.

 

RECONHECIMENTO DA LGP É "GRANDE VITÓRIA" PARA A COMUNIDADE SURDA

A coordenadora da equipa de educação bilingue considera que o reconhecimento oficial da língua gestual portuguesa na Constituição da República Portuguesa desde 1997, e o consequente ensino bilingue, é, de uma forma resumida, “a grande vitória” no processo de educação de surdos. A partir daí, diz, “começou a ser um direito das pessoas surdas fazerem as suas aprendizagens através da sua língua primeira”. A formação de equipas especializadas na área da surdez, “que entendam as pessoas surdas e que sabem como elas poderão atingir os seus objetivos com mais facilidade”, é outro dos aspetos que destaca no processo educativo.

 

Segundo Bruna Rosa, “o ambiente bilingue” é fundamental “para promover a inclusão na sua plenitude”, porque não basta “acolher os alunos surdos numa escola”, é necessário “dar-lhes ferramentas, assim como à comunidade linguística maioritária, neste caso, os ouvintes, para que possam integrar e incluir a comunidade surda na sociedade”.

 

Atualmente, na escola de referência do distrito, ao nível do pré-escolar e primeiro ciclo, os docentes de LGP deslocam-se às turmas onde estão inseridos alunos com problemas auditivos e ensinam a língua gestual a todas as crianças. Os alunos ouvintes do segundo e terceiros ciclos, por sua vez, têm à disposição, caso estejam interessados, o Clube de Língua Gestual Portuguesa, que foi suspenso devido à pandemia de covid-19, mas que deverá ser retomado no próximo ano letivo. Este projeto, frisa a coordenadora, chegou a contar, num dos anos, com 30 alunos “que se voluntariaram, depois de um dia de aulas, para aprenderem esta língua”. Um número significativo e que “fora escola já irão integrar pessoas surdas, caso se cruzem com elas”.

 

O facto de “a maior parte das pessoas não saber LGP, e de esta não constar como disciplina” nas escolas para alunos ouvintes, nem que seja como opção, é precisamente uma das “principais barreiras” com que se depara a comunidade surda, considera a responsável. Esta situação acaba por dificultar a vida dos alunos com surdez no pós-escola, quer quando prosseguem os seus estudos universitários, dado que as instituições de ensino superior não têm intérpretes, pelo que terão de “fazer pedidos especiais que demoram às vezes mais de meio ano letivo”; quer quando tentam ingressar no mercado de trabalho “e muitas vezes não são contratados porque as pessoas não sabem comunicar com eles”.

 

Outro dos problemas, realça Bruna Rosa, prende-se com as barreiras físicas, nomeadamente, sinais sonoros. A coordenadora dá como exemplo as campainhas nos estabelecimentos de ensino: “Quando a campainha toca os alunos surdos não se apercebem disso, vêem os outros a irem para a sala e vão também. Se houver um incêndio a campainha toca três vezes, mas se tivermos uma sala em que são todos surdos, eles não ouvem”.

 

A par destas barreiras de âmbito mais geral, a docente de LGP aponta, ao nível do trabalho desenvolvido no distrito, o facto de as crianças com surdez, por norma, chegarem à equipa de educação bilingue “a partir dos três, quatro anos, o que se resume a três, quatro anos, em que não tiveram acesso à comunicação a 100 por cento”. “Já temos contactado com as várias equipas de intervenção precoce, que estão mais despertas para a questão da surdez, para nos encaminharem alunos surdos, no entanto, ainda há muito aquele pensamento de que só poderão vir para escolas bilingues quando são surdos profundos e isso não é verdade. Poderão vir com outros graus de surdez e até poderá ser só por questões de terapia da fala. Sendo a terapeuta especializada na área da surdez, poderá colmatar algum desajuste ao nível da comunicação e da linguagem”, esclarece.

 

PROJETO BILINGUE PARA CRIANÇAS DOS ZERO AOS TRÊS ANOS 

A fim de apoiarem o mais precocemente possível as crianças com problemáticas de comunicação e linguagem e as suas famílias – a parceria com as famílias “é muito importante para desmistificação do pré-conceito do que é a surdez”, diz Bruna Rosa –, a equipa de educação bilingue pretende dar início, no próximo ano letivo, ao projeto de Frequência Bilingue Precoce, destinado a crianças entre os zero e os três anos, idades em que ainda não há resposta ao nível do ensino público.

 

“Não somos uma equipa de intervenção precoce, não iremos fazer o mesmo trabalho que estas equipas”, deixa claro a responsável. O que se pretende, sublinha, é intervir junto destas crianças e famílias através “de estratégias adequadas às suas necessidades”, colocando à disposição “uma equipa completa e especializada nesta dinâmica de ensino”. Bruna Rosa defende que a equipa tem “o dever” de fazer chegar a estas crianças e famílias “todas as ferramentas possíveis para que não haja atrasos no desenvolvimento, na linguagem, na própria interação entre as famílias e as crianças”.

 

Este acompanhamento deverá ser feito em duas fases: na escola de referência e no “contexto natural” da criança, “quer seja no berçário, na creche ou no domicílio, caso a criança ainda esteja em casa”.

 

A finalizar, a coordenadora reforça que é imprescindível desmistificar algumas questões relacionadas com a surdez e com o próprio trabalho desenvolvido pela equipa de educação bilingue. “Poderá haver crianças, por exemplo, com surdez ligeira, cujos educadores ou famílias considerem que este tipo de ensino não é pertinente, às vezes até por falta de informação. Não querem que os seus educandos integram este ensino porque podem ficar rotulados ou começar a falar só em LGP e depois não se integrarem na sociedade. Acreditamos também que a parte médica muitas vezes desvaloriza o ensino bilingue. A mensagem que quero passar é que pelo facto de serem apoiadas pela nossa equipa não são obrigadas a comunicarem só em língua gestual, não é isso. O que queremos é um ambiente bilingue. Temos é uma equipa especializada para apoiar estes alunos, independentemente do grau de surdez. Não tenham receio de nos contactar para esclarecer qualquer dúvida”.

 

AGRUPAMENTO "COM VASTA EXPERIÊNCIA" 

A educação para surdos do distrito de Beja teve início na década de 90 do século passado, com a criação do então Núcleo de Apoio a Crianças com Deficiência Auditiva. Dez anos depois, o núcleo deu lugar à Unidade de Apoio à Educação de Crianças e Jovens Surdos. Em 2018 passou a Escola de Referência para a Educação Bilingue. No total já foram apoiados 60 alunos, não só oriundos de vários concelhos do distrito de Beja, mas também do litoral alentejano. A equipa de educação bilingue sublinha que o agrupamento “tem uma vasta experiência na educação das crianças surdas e já formou bastantes alunos, sendo estes, nos dias de hoje, adultos aptos para a sua vida profissional”. Contou “também com vastíssimos profissionais de excelência, que nos tem levado ao sucesso de integração e inclusão dos alunos surdos no seu ambiente”.

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