Diário do Alentejo

Cáritas de Beja antevê aumento de pedidos de ajuda em 2022

04 de maio 2022 - 16:25
Ilustração | Susa MonteiroIlustração | Susa Monteiro

Nos três primeiros meses deste ano, a Cáritas Diocesana de Beja já registou 919 novos atendimentos, mais de metade dos verificados durante todo o ano de 2021. Através do Fundo de Emergência Diocesana, também entre janeiro e março, foram disponibilizados perto de 3400 euros para pagamentos de rendas, despesas de eletricidade ou medicamentos. Tendo em conta o número significativo de pedidos já efetuados, a instituição antevê um agravamento da situação durante este ano.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

S., de 37 anos, chegou a Beja no início de 2021 encaminhada por uma estrutura de apoio a mulheres vítimas de violência doméstica. O filho “ainda mal andava”. Na carteira trazia “apenas 20 cêntimos”. Todos os seus pertences ficaram para trás, na casa que partilhava com o então companheiro, numa outra região do País. Sem familiares a residir em Portugal, e “com tudo fechado” devido à pandemia de covid-19, não lhe restou outra alternativa senão bater à porta da Cáritas Diocesana de Beja, conta ao “Diário do Alentejo”.

 

“O que precisava era de trabalhar e de um infantário para o meu filho. Mas acabaram por me ajudar também com alimentação, fraldas, para além de me terem auxiliado em todo o processo para arranjar trabalho. Quando mudei para a casa onde vivo agora também me apoiaram com artigos para a casa”.

 

Quase 14 meses volvidos, S. trabalha numa empresa em Beja, na área administrativa, e consegue pagar todas as suas contas. “Tenho uma nova vida. Hoje vivo em paz com o meu filho, não temos do que reclamar”, diz, comovida, sublinhando que se não fosse a ajuda da Cáritas não teria conseguido “seguir em frente”.

 

“Tive todo um suporte para que pudesse ter condições de me reerguer, porque comecei tudo da estaca zero. Se não fosse esse apoio não sei se teria força para conseguir tudo isto, tendo em conta o que passei, com um bebé no colo e sem família em Portugal. Se não fosse a Cáritas provavelmente teria voltado atrás”, reforça. Aliás, é o que acaba por acontecer a “muitas mulheres vítimas de violência doméstica, justamente porque se veem em dificuldades, sem apoio, com crianças a cargo”.

 

Depois de mais de um ano e meio sem trabalhar, L. de 45 anos, também anseia por um recomeço. Doente bipolar, foi acolhido pela Comunidade de Inserção da Cáritas em outubro de 2020, após ter passado pela unidade de internamento do serviço de Psiquiatria do hospital de Beja.

 

“Eu tinha uma vida normal, trabalhava na área da segurança em Lisboa, mas caí no erro de deixar a medicação. Uma pessoa sente-se tão bem a nível profissional, a nível físico, que depois não quer estar dependente dos medicamentos”, justifica. Os efeitos não tardaram a fazer-se notar. “Desorientado”, acabou por deixar o emprego, “por largar tudo”. Do período em que esteve internado no hospital de Beja, confessa, tem pouquíssimas memórias. “Não sei quanto tempo lá estive. Estava muito mal”.

 

Antes de dar entrada na comunidade esteve alojado num quarto pago pela Segurança Social. As refeições eram asseguradas pelo refeitório social da Cáritas. Aos poucos, “novamente medicado”, começou “a progredir” e hoje já faz “uma vida normal”. L. prepara-se agora para dar “um passo” decisivo no processo com vista à sua autonomia: renovar “o cartão de vigilante”, o que lhe permitirá começar a procurar trabalho, de preferência na região.

 

À semelhança de S., L. assegura que se não fosse a Cáritas a dar-lhe “a mão” teria “sido muito complicado”. “Não tinha nada. Não tinha dinheiro, para onde ir, porque comecei a fazer muitas asneiras e já não podia ficar com a minha família. Iria andar por aí”.

 

Na Comunidade de Inserção tem acompanhamento psicossocial por parte de uma equipa multidisciplinar, participa em atividades de voluntariado e já trabalhou nas escavações arqueológicas no Templo Romano de Pax Julia. “Gosto de estar sempre ativo, seja no que for. O facto de ter estado este ano e meio sem trabalhar causa-me algum transtorno, mas depois penso no que aprendi [na comunidade], nas outras coisas que vivi. O erro foi meu e eles deram-me a mão. O único culpado sou eu”.

 

NOVOS ATENDIMENTOS AUMENTAM EM 2022

Em 2021, a Cáritas de Beja registou 1530 novos atendimentos – 658 no Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social do Concelho de Beja e 872 no Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes (Claim) –, tendo acompanhado, no total das respostas disponibilizadas, 4302 pessoas (incluindo as que transitaram do ano anterior). Em 2020 tinham sido feitos 1893 atendimentos e acompanhadas 5573 pessoas. Este decréscimo entre 2020 e 2021, justifica o coordenador de comunicação da Cáritas ao “Diário do Alentejo”, deve-se às medidas de confinamento decretadas pela pandemia de covid-19, que “levaram as pessoas a distanciarem-se dos serviços”, mas também “aos diversos apoios do Estado e respostas de emergência do Governo, disponibilizados pelas autarquias e outras entidades públicas”.

 

Os números referentes aos três primeiros meses deste ano, sublinha Márcio Guerra, fazem antever, no entanto, um aumento significativo dos pedidos de apoio. Entre janeiro e março, ou seja, “em 60 dias úteis”, frisa, a Cáritas já registou 919 novos atendimentos, mais de metade dos verificados durante todo o ano de 2021. Destes, 293 dizem respeito ao Serviço de Atendimento e Acompanhamento Social e 628 ao Claim, sendo 53 no âmbito do programa governamental “SOS Ucrânia”. Este aumento de atendimentos em 2022, esclarece o responsável, deve-se, sobretudo, aos migrantes “que recorrem ao serviço para iniciar pedido de manifestação de interesse ou obter autorização de residência, assim como solicitar retorno voluntário ao país de origem, mediação com serviços públicos de saúde, emprego e formação”.

 

Ao nível do Serviço de Atendimento e Acompanhamento, refere ainda Márcio Guerra, “já foram realizadas 644 ações de acompanhamento pós-atendimento”, sendo que uma “pessoa poderá ter mais do que um acompanhamento”, dependendo do “seu grau de vulnerabilidade”.

 

Segundo o coordenador de comunicação da Cáritas, de um modo geral, a maioria dos pedidos de ajuda chega de “famílias monoparentais, pessoas desempregadas de longa duração, com baixas qualificações, com carências ao nível alimentar significativas”. Em alguns casos, “apresentam, também, dificuldades, por exemplo, ao nível do pagamento de rendas, despesas de eletricidade, água, ou seja, como consequência do desemprego”.

 

Estas despesas ao nível da habitação, mas também com educação e saúde, como medicação e consultas de especialidade, são suportadas pelo Fundo de Emergência Diocesano que, entre janeiro e março deste ano, “já aplicou perto de 3400 euros”. Em 2020 tinham sido disponibilizados 14 443 euros, abrangendo 198 famílias, destinados a despesas com medicação, consultas, educação e rendas. No ano passado o valor subiu para 16 532 euros, mas contemplou menos sete famílias do que em 2020. O aumento é explicado com “um maior número de despesas relacionadas com pagamento de rendas de habitação”, diz Márcio Guerra, adiantando que o fim das moratórias a créditos bancários, que “permitiram, durante algum tempo, aligeirar os encargos das famílias”, irá “criar problemas financeiros, algumas situações de sobre-endividamento”. Ao fim das moratórias, acresce “o aumento dos preços, o agravar da situação mundial com a guerra na Ucrânia”. “Com tudo o que se está a perspetivar em termos macroeconómicos não se afigura um ano fácil. O cenário não é muito positivo, pelo contrário. Sentimos que vai haver um agravamento das situações de pobreza”. O Fundo de Emergência tem como única fonte de receita o peditório nacional anual levado a cabo pela Cáritas e que no passado mês de março angariou perto de 23 mil euros.

 

Nestes três primeiros meses do ano também já passaram pelo Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas (Poampc), de que a Cáritas é intermediária na distribuição de cabazes alimentares às famílias referenciadas pela Segurança Social, 718 pessoas, mais de metade dos beneficiários abrangidos em 2021 (1049) e quase o valor de 2020 (833).

 

Ao nível alimentar, foram ainda apoiadas, pela cantina social da Cáritas, ao abrigo do Programa de Emergência Alimentar, 113 famílias (164 pessoas) em 2020 e 91 em 2021 (131 pessoas), muito acima do protocolado com Segurança Social – 66 protocolos em 2020, 30 em 2021. A diferença é justificada com o alargamento da resposta a outras entidades e consequente redistribuição de pessoas. Já pelo refeitório social da instituição passaram, durante 2020, 58 pessoas em situação de sem-abrigo e, em 2021, 44. A Cáritas distribuiu, igualmente, géneros alimentícios provenientes do Banco Alimentar Contra a Fome, que, em 2020, abrangeu 210 famílias (501 pessoas) e, em 2021, 61 (141 pessoas). A diminuição registada nesta resposta é, por sua vez, explicada pelo encaminhamento de beneficiários para o Poampc.

 

Fora destes apoios protocolados com a Segurança Social, e para dar resposta às situações de emergência que vão surgindo, a Cáritas lançou, em 2020, aquando do primeiro confinamento, uma campanha de recolha de alimentos, denominada “Cáritas é Amor, Ajude-nos a Ajudar”. Nos primeiros meses do ano já foram apoiadas 88 pessoas – em 2020 foram 301 e, em 2021, 425.

 

“Temos situações ao nível alimentar bastante significativas, muita carência, muita procura. O Poampc não dá resposta [a todas as solicitações], por isso tivemos necessidade de criar uma campanha específica de recolha alimentar, precisamente para apoiar quem não é abrangido por este programa da Segurança Social”, porque não obedece a “um conjunto de pré-requisitos”, nomeadamente, “a comunidade migrante”, ou então para atender a “certas especificidades alimentares”, como, por exemplo, “papas para bebés”, uma vez que a instituição apoia “muitas mães solteiras com crianças”, explica Márcio Guerra.

 

“A área alimentar é uma situação que nos toca muito. Muitas vezes chegam a nós pessoas com fome, sem nada para comer, isto em pleno século XXI”, reforça o responsável, garantindo que ninguém “fica sem resposta”. No entanto, acrescenta, o que se pretende é que a pessoa “saia dessa situação, que o pobre deixe de ser pobre”.

 

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CÁRITAS IDENTIFICOU 88 PESSOAS EM SITUAÇÃO DE SEM-ABRIGO 

A par da carência alimentar, a situação dos sem-abrigo “é uma realidade” à qual a Cáritas também “está muito atenta”, diz Márcio Guerra. Para além da Comunidade de Inserção, que se destina ao acolhimento de pessoas em situação de vulnerabilidade social e posterior reinserção social e profissional, também protocolada com a Segurança Social e já na sua capacidade máxima, a Cáritas arrancou no início do ano com um projeto destinado a pessoas em situação de sem-abrigo, que tem como slogan “Estou tão perto que não me vês”.

 

Integrado na Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo e aprovado através do Fundo Social Europeu, o projeto, com a duração de dois anos, tem como público-alvo, para já, “88 pessoas tipificadas como sem-abrigo” identificadas pela Cáritas no concelho de Beja. De acordo com dados de 2020, destas, 32 estavam em situação de “sem teto” (a viver no espaço público, alojado em abrigo de emergência ou com paradeiro em local precário), 49 em situação de “sem casa” (alojamento temporário) e sete em elevado risco de ficar em situação de sem-abrigo. Eram maioritariamente do género masculino e com várias problemáticas associadas, como “desemprego de longa duração, consumos aditivos, problemas ao nível da saúde mental e alcoolismo”.

 

No âmbito do referido projeto, a Cáritas tem já no terreno, desde janeiro, uma equipa de rua que visa prestar apoio aos sem-abrigo, nomeadamente, identificando os problemas de saúde e de comportamentos aditivos e fazendo o seu acompanhamento aos diversos serviços em caso de necessidade. Também já está a funcionar desde o início do mês, no antigo edifício da Casa do Estudante, cedido pela Diocese de Beja à Cáritas, o centro ocupacional “Estórias”, dotado de equipamentos e recursos que permitem aos utilizadores “apoio ao nível da alimentação, higiene e tratamento das roupas, medicação assistida e cuidados de saúde primários”. É ainda disponibilizado “apoio psicológico e social”. Nos próximos dois anos, a Cáritas pretende, ainda, promover campanhas de sensibilização para a situação dos sem-abrigo, proceder ao “estudo aprofundado sobre a realidade das pessoas em situação de sem-abrigo no concelho de Beja” e fomentar a constituição do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo, que deverá integrar várias entidades do setor público.

 

Outro dos projetos destinado a esta população passa pela instalação de um centro de alojamento de emergência social com capacidade para mais de 30 pessoas, também na Casa do Estudante, uma resposta inexistente no distrito. E no Alentejo, frisa Márcio Guerra, só existe um centro em Elvas. “Se tivermos em conta que o número de pessoas em situação de sem-abrigo está a aumentar, com grande predominância de migrantes, mas com a possibilidade de surgirem mais situações de pessoas nacionais, devido ao fim das moratórias, justifica-se uma resposta destas, que terá uma intervenção multidisciplinar, com o objetivo de promover também a autonomia destas pessoas. Estamos a avaliar a situação com a Segurança Social, porque se não for protocolado será impossível criar o espaço”, conclui.

 

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QUASE 100 PESSOAS INSERIDAS NO MERCADO DE TRABALHO 

A Cáritas conta desde 2019 com um serviço de empregabilidade, financiado pela Fundação La Caixa, através do programa Incorpora, destinado a promover a contratação, por parte das empresas, de pessoas em risco ou situação de exclusão. Desde o início do projeto, foram inseridas no mercado de trabalho 93 pessoas. “Foram 93 pessoas que deixaram de receber apoio da Cáritas. Claro que, face aos números gigantes que temos de atendimento e acompanhamento, é pouco, mas é alguma coisa se pensamos que estas pessoas eram beneficiárias de um subsídio do Estado e passaram a se contribuintes como qualquer outra pessoa. Para além disso ganharam a sua autonomia, autoestima e isso para nós é muito gratificante”.

 

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