Diário do Alentejo

“A voz é um reflexo do que se passa connosco, física e psicologicamente”

27 de abril 2022 - 15:20
Dia Mundial da Voz celebrou-se no passado dia 16 de abril.
Ilustração | Susa MonteiroIlustração | Susa Monteiro

Recentemente, no dia 16 de abril, celebrou-se o Dia Mundial da Voz, comemoração que pretende promover a saúde do aparelho vocal. O “Diário do Alentejo” conversou com um terapeuta da fala e quatro representantes de profissões que utilizam, como instrumento principal da sua atividade, a voz, procurando testemunhar as considerações que cada um tem sobre a sua, os cuidados que lhe dedicam e as apoquentações que esta, por vezes, lhes pode dar.

 

Texto José Serrano

 

 

Comemorado pela primeira vez em 2003, por sugestão de Mário Andrea, professor de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Lisboa, o Dia Mundial da Voz, que tem como principal objetivo promover a saúde do aparelho vocal e prevenir doenças da laringe, assinalou-se no dia 16 de abril.

 

António Carvalhal, Coordenador da Terapia da Fala do Centro Hospitalar Universitário da Lisboa Central, considera que a efeméride se constitui como um importante momento, oportuno para veicular informação acerca “do que é a voz”, consciencializando os cidadãos, na generalidade, “que um problema na voz é um problema de saúde”.

 

Assim, é conveniente estar alerta aos sinais que poderão ser indicadores de perturbações, no âmbito da saúde do aparelho vocal, conhecendo-os: “a rouquidão, sobretudo quando se prolonga por mais de cinco a oito dias, é um sinal de alerta, ao qual devemos estar vigilantes, assinalando, frequentemente, a existência de um problema nas cordas vocais, na laringe, o nosso órgão da voz”, esclarece o terapeuta da fala. Um outro sinal indicativo “que a nossa saúde vocal não está bem é o pigarreio frequente”, avisa – “muitas pessoas pigarreiam, procurando ‘aclarar’ ou ‘limpar’ a voz, de forma a aliviar uma ‘impressão’ ou sensação de aperto ou tensão na garganta”, comportamento que, parecendo “às vezes um tique”, se deve evitar, “pelos danos que provoca nas cordas vocais”, sublinha António Carvalhal.

 

É importante, pois, em caso de deteção desses mesmos sinais de alerta, procurar ajuda profissional, falar da voz com o nosso médico, consultar um otorrinolaringologista ou um terapeuta da fala, de forma a avaliar a situação, identificar o problema e iniciar o tratamento necessário, aconselha o terapeuta.

 

Ainda que todos os cidadãos sejam utilizadores da voz, alguns há que a utilizam como o seu principal instrumento de trabalho – os profissionais da voz –, grupo que, pelas exigências vocais a que estão, obviamente, sujeitos, se constitui como o mais representativo nas consultas de terapia da fala. “Qualquer pessoa, homem, mulher ou criança, pode ter um problema de voz, em algum momento da sua vida”, porém, quem faz um uso profissional da voz encontra-se mais sujeito a tal, esclarece António Carvalhal e, por isso, necessitará mais frequentemente de cuidados profissionais. É o caso dos professores e educadores – exigindo o seu trabalho o uso da voz ao longo de muitas horas diárias, por vezes em esforço –, dos locutores, atores, cantores e padres – que têm um uso exigente da sua voz, falada ou cantada. “Os profissionais da voz devem estar especialmente atentos aos sinais de alerta e, no caso de não terem tido formação ou treino sobre o uso da voz, deverão procurar obter essas competências, de forma a preservar o seu instrumento e evitar o mau uso e abuso vocal”, esclarece o terapeuta da fala. Que termina, realçando: “a voz é um reflexo do nosso corpo, do que se passa connosco, física e psicologicamente. Daí que tudo aquilo que nos dá saúde e bem-estar, terá efeitos benéficos, na nossa voz”.

 

Bruno Ferreira, imitador de vozes, ator e locutor

Para Bruno Ferreira, a comemoração do Dia Mundial da Voz, na qual é assíduo colaborador nas ações que lhe estão associadas, é-lhe “muitíssimo cara”. Por razões profissionais, óbvias, mas também pela relação de amizade que mantém, desde 2006, com o mentor da iniciativa, o médico otorrinolaringologista Mário Andreia – “foi com o Professor que aprendi sobre como funcionam as cordas vocais”. Dois músculos que Bruno Ferreira começou a olhar como “mágicos”, depois de ter participado, com o médico, numa experiência: “introduziu-se uma microcâmara, no meu nariz, para filmar as minhas cordas a funcionarem com diferentes imitações de voz, e foi fantástico vê-las trabalhar”. O ensaio acabou por revelar que as cordas vocais do imitador, no que concerne à sua musculatura, “estão ao nível das pernas de um desportista de alta competição, como Cristiano Ronaldo, o que não deixa de ser impressionante”, sublinha.

 

De forma a manter a elevada performance da sua atlética voz, há cuidados a ter, diz Bruno Ferreira, nomeadamente não fumar – “completamente proibido” –, evitar bebidas alcoólicas, alimentos demasiado ácidos, comer demasiado próximo das horas de sono – “de forma a evitar o refluxo gastroesofágico” – ou “competir com o rádio do carro, a cantar a nossa música preferida”.

 

Para além destas prudências – “conhecendo-as, confesso não as conseguir cumprir todas” –, Bruno Ferreira faz exercícios específico de voz, “quando o trabalho é muito exigente, em termos de intensidade vocal”. À semelhança da gravação acabada de concluir minutos antes desta entrevista, que lhe exigiu exercícios de aquecimento de voz, colocação, dicção e respiração controlada: “estive a gravar, para um jogo de futebol de consolas, um locutor de estádio, que tem de projetar a voz para gritar os golos, os nomes dos jogadores e das equipas”. Uma sessão que durou duas horas – “para lá desse tempo todo o aparelho vocal estaria a entrar em stress” –, durante a qual Bruno Ferreira bebeu dois litros de água, “essencial para manter as cordas vocais completamente lubrificadas”.

 

O imitador realça a necessidade “de perceber os limites, entender até onde pode ser levado um esforço, sem que este tenha consequências prejudiciais, sabendo tirar proveito de todo o aparelho vocal, da respiração e da correta utilização do diafragma”, de forma a conseguir enfraquecer, por exemplo, a possibilidade de incómodos surgidos por imitações de vozes “que podem ser mais ‘perigosas’”, como a de Cavaco Silva ou a de Jorge Jesus – “vozes roucas, que exigem esforço para quem não tem essas características naturais no som da sua voz”. E sublinha a importância de estarmos atentos “ao som da nossa voz, a rouquidões, dores de garganta, ao entupimento do nariz ou dos ouvidos”, sinais que podem ser avisos, sendo que se “detetarmos sintomas estranhos, que ultrapassem os quatro dias, devemos consultar um profissional de saúde”, aconselha.

 

Ana Elias de Freitas, jornalista da Rádio Voz da Planície, de Beja

Ana Elias de Freitas toma algumas medidas preventivas de saúde, face ao seu aparelho vocal, para que a voz, “fundamental a quem faz rádio”, não lhe falhe ou doa – evitando ingerir bebidas e alimentos “demasiado frios ou quentes”, frequentar ambientes “com ar condicionado ou saturados de cheiros e fumos” e expor-se “diretamente ao sol”. Não utilizar a voz demasiado tempo seguido, descansar entre períodos de utilização vocal, dormir bem e não fumar, são outros dos hábitos precaucionais vantajosos, seguidos pela jornalista.

 

Para além destas ações, quotidianas, Ana Elias de Freitas procura ser observada, anualmente – “quando o dinheiro o permite” –, por um médico especialista, numa consulta de voz, que, objetivamente, procura a identificação e o despiste de problemas no aparelho vocal.

 

Contudo, e ainda que se cumpra uma metódica adoção de cuidados, refere que é comum, a quem trabalha com a voz, passar, pontualmente, por algumas dificuldades. Umas mais complicadas – “já fiquei afónica” – em que há necessidade de recorrer a ajuda profissional, e outras mais leves, que o “chá de perpétuas roxas e de casca de cebola” ajudam a expulsar.

 

Tudo para que a qualidade da comunicação e da informação, através da rádio, seja ótima, a mensagem a transmitir facilmente compreensível e inequívoca por quem está a ouvir, através “de uma essencial boa dicção”. Dicção que, no caso de Ana Elias de Freitas, é trabalhada, não só através da sua atividade profissional mas também nos seus tempos livres, integrando a jornalista um duo, juntamente com o músico António Sérgio, que constrói espetáculos centrados na palavra – “digo poesia e canto, o que me obriga a ensaios frequentes e rigorosos, com treino e trabalho de voz, recorrendo a exercícios que me ajudam, também, na profissão que desempenho”.

 

Vítor Encarnação, professor de Inglês e Alemão

Vítor Encarnação, a exercer funções letivas no Agrupamento de Escolas de Ourique, sublinha o protagonismo principal da voz, como ferramenta na relação ensino-aprendizagem: “a voz começa por cumprimentar, por envolver os alunos no espaço de aula, e é ela que transmite a mensagem e estabelece objetivos, faz perguntas e dá respostas. A informação escrita e todos os outros recursos disponíveis também são importantes, mas a voz funciona, claramente, como elemento diferenciador”.

 

Sendo a sala de aula um espaço onde a assistência “não está propriamente disponível para ouvir sem interromper e sem derivar para conversas paralelas”, não é tarefa fácil, afirma, fazer chegar a informação, “sem perturbações, a duas dezenas de jovens”. Para tal, “a colocação da voz é um dos aspetos mais importantes a ter em conta”, sendo um dos erros mais comuns a sua elevação repentina, repetida durante cinquenta minutos, “para tentar impor autoridade e controlo”.

 

O professor, ao longo da sua atividade profissional, que exerce desde 1988, teve, “bastantes vezes”, problemas com a qualidade da sua voz, capazes de influenciar o seu desempenho profissional – “a rouquidão e situações frequentes de boca seca, após muitas horas a falar, são recorrentes, não sendo incomum ficar afónico ou ter dificuldade na dicção, em reuniões, depois de um dia de aulas contínuas”.

 

Circunstâncias que o levam a entender “as razões para, cada vez mais, precisar de ficar uns minutos em silêncio entre as aulas” e a observar que a tutela deveria promover, junto dos professores, “ações que nos ajudassem a usar a voz de uma forma mais disciplinada e mais cuidada, mas também instituir, anualmente, uma consulta de voz, a um médico otorrinolaringologista”. Diligências, no âmbito do uso profissional da voz, que Vítor Encarnação, “dentro das várias ofertas de formação para o meu desenvolvimento, capacitação ou reciclagem profissional, quer obrigatórias, quer facultativas”, nunca frequentou, porque nunca lhe foram possibilitadas.

Assim, Vítor Encarnação, declara ir fazendo, por si, “as adaptações que a profissão vai pedindo, não tendo nunca a certeza de ser a melhor opção”.

 

António Cartageno, padre e maestro

Para o pároco da igreja do Carmo, em Beja, a voz é o mais importante meio de comunicação e também o mais importante dos instrumentos musicais, “extremamente espontâneo e universal, usado por toda a gente, em todo o mundo”.

 

Como tal, é imprescindível o seu correto uso, o que procura fazer, nas homilias que celebra, através de uma “voz clara, projetando-a para que para que todos me ouçam, para os que se encontram ao fundo da igreja me possam ouvir tão bem como os demais, que me estão mais próximos”.

 

Uma ação que o uso do microfone veio ajudar na forma de fazer chegar aos crentes, “a mensagem de Deus”, que se encontram no templo. Contudo, a eficácia do objeto, “na proclamação da palavra”, só se revelará eficaz se em boa articulação com a correta expressividade e entoação da voz que é utilizada pelo sacerdote, em cada um dos momentos do ato religioso, “elevando-a ou diminuindo-a, projetando-a, fazendo uma exclamação…”.

 

Normas que António Cartageno utiliza não só na missa celebrada, mas também como maestro do Coro do Carmo de Beja, do qual foi fundador, há 46 anos. “É certo que enquanto dirijo o coro, nas apresentações, não canto, mas tenho de o fazer quando estamos a ensaiar. E, aí, faço lembrar as regras ditadas, no século XIII, por São Tomás de Aquino, para o correto uso da voz cantada: é preciso abrir bem a boca, saber controlar a intensidade da voz e saber amalgamá-la, quando se canta em conjunto”.

 

Ainda que nas cerimónias religiosas, celebradas no interior da igreja, a amplificação elétrica contribua para que o esforço vocal seja menor, solenidades há em que a mesma não está disponível. Tal como sucedeu no passado sábado, dia 9 de abril, no exterior da igreja do Carmo, durante a bênção dos ramos, no âmbito das comemorações da quadra pascal: “o vento que se fazia sentir levava a minha voz no sentido contrário ao de dezenas de pessoas, que se encontravam no adro. E foi necessário adaptar-me, fazer um esforço vocal suplementar”, esclarece o pároco.

 

Quando assim acontece, mas também como medida preventiva da saúde vocal, o pároco da igreja do Carmo recorre a soluções que contemplam os produtos naturais – “mel, um chazinho de limão ou de casca de cebola, sobretudo quando ando rouco” – e os medicamentos farmacêuticos – “umas pastilhas para a garganta também ajudam”. Precauções que, a par de evitar mudanças bruscas de temperatura e correntes de ar, o padre António Cartageno utiliza amiúde, para proteger a sua voz.

 

CUIDADOS A TER COM A VOZ

No âmbito dos cuidados preventivos de saúde vocal, o Serviço Nacional de Saúde aconselha:

  • Beber água com frequência – oito copos por dia, à temperatura ambiente;
  • Reduzir a ingestão de bebidas alcoólicas, café, chá e bebidas com gás;
  • Não fumar e evitar frequentar ambientes com fumo;
  • Evitar ambientes com pó, cheiros fortes e ar condicionado;
  • Falar devagar e realizar pausas respiratórias frequentes, articulando bem as palavras;
  • Não falar muito alto ou durante períodos prolongados, principalmente em ambientes ruidosos;
  • Não sussurrar – o esforço para sussurrar é maior do que quando se fala normalmente;
  • Ter um estilo de vida saudável: alimentação equilibrada, dormir bem e praticar desporto.
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