Diário do Alentejo

Estudantes com NEE, especiais, iguais e incluídos

27 de abril 2022 - 12:40
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O número de estudantes com necessidades educativas especiais a frequentar o ensino superior tem vindo a aumentar, segundo um relatório divulgado pelo Observatório da Deficiência e Direitos Humanos. No presente ano lectivo foram colocados 12 alunos no Instituto Politécnico de Beja, mais um do que no ano anterior. O relatório releva ainda que se tem verificado um crescimento de pessoas com deficiência inscritas nos centros de emprego com habilitações ao nível secundário e superior, o que prova que “não basta concluir um curso ou uma formação profissional para conseguir entrar no mercado de trabalho”.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

 

O número de estudantes com Necessidades Educativas Especiais (NEE) a ingressar no Instituto Politécnico de Beja, sobretudo, em cursos técnicos superiores profissionalizados (CTSP) e licenciaturas, tem vindo a aumentar nos últimos anos, em consonância com a tendência nacional.

 

No ano letivo de 2021/22 entraram 12 estudantes (nove para CTSP e três para licenciatura), mais um do que no ano anterior (cinco CTSP, quatro para licenciatura e dois para mestrado). Em 2019/20 tinham sido 10 as colocações (dois CTSP e oito para licenciatura), e, em 2018/19, nove (dois CTSP e sete para licenciatura).

 

De acordo com o relatório “Pessoas com deficiência em Portugal – indicadores de direitos humanos 2021”, divulgado recentemente pelo Observatório da Deficiência e Direitos Humanos, no ano lectivo 2020/21 verificou-se um aumento de 11,7 por cento (2582) de estudantes com NEE no ensino superior face a 2019/2020 (2311). Em 2019/20, neste universo, houve 632 diplomados, o que representa mais 55,7 por cento do que ano anterior (406) e mais 108,6 por cento do que em 2016/17 (303). O mesmo documento refere que em 2020/21 entraram nos estabelecimentos de ensino superior do Alentejo 171 estudantes com NEE, mais 16 do que em 2019/20, mais 42 do que em 2018/19 e mais 58 do que em 2017/18.

 

Segundo refere a coordenadora dos Serviços de Ação Social do Instituto Politécnico de Beja (IPBeja) ao “Diário do Alentejo”, o “aumento gradual” do número de colocações de alunos com necessidades educativas especiais, “algumas delas não consideradas deficiência”, verificado na instituição, deve-se “ao contingente especial de acesso ao ensino superior” (só aplicado ao ingresso em licenciatura) e “à divulgação do apoio prestado” pelo politécnico.

 

Os candidatos com deficiência podem, de acordo com a Direção-Geral do Ensino Superior, candidatar-se através do contingente especial, que é composto por quatro por cento das vagas fixadas para a 1.ª fase do concurso nacional de ingresso no ensino superior e dois por cento para a 2.ª fase. Os alunos terão, no entanto, de satisfazer todos os requisitos exigidos no contingente geral, nomeadamente, realizar os exames nacionais à semelhança dos outros estudantes.

 

Piedade Ramires sublinha que o IPBeja é uma “instituição de ensino superior inclusiva” (ver caixa) e lembra que, segundo a Constituição da República, “todos os cidadãos têm direito à igualdade de oportunidades na formação ao longo da vida”. Um dos “dados preocupantes nos relatórios da União Europeia sobre a educação”, acrescenta, é precisamente “a baixa taxa de acesso de alunos com necessidades educativas especiais ao ensino superior”. Considera, assim, fundamental que as pessoas com limitações “sejam informadas de que existe um contingente especial na candidatura de acesso para alunos com deficiência sensorial ou motora e uma bolsa de estudo para alunos com incapacidade igual ou superior a 60 por cento”, assim como “estatutos de apoio que visam responder às necessidades educativas especiais dos alunos com limitações significativas ao nível das atividades e da participação, num ou em vários domínios da vida, resultando em dificuldades continuadas, nomeadamente, nas áreas de aprendizagem e aplicação de conhecimentos comunicação oral e escrita, receção de informação, autonomia das atividades da vida diária e relacionamento interpessoal e da participação social”.

 

No caso do IPBeja, para além do Estatuto do Estudante com Necessidades Educativas Especiais (ENEE), a instituição disponibiliza “dois quartos adaptados numa das residências” e “um gabinete de apoio psicopedagógico que faz avaliação dos alunos e propõe as medidas de apoio aos ENEE”. O estatuto aplica-se “a todos os estudantes de qualquer curso ou ciclo de estudos da instituição que ingressem através do contingente especial ou de outro regime de ingresso e ainda a todos os que durante o percurso académico manifestem necessidades especiais”. Mas, mesmo tendo conhecimento da sua existência, nem todos os alunos com NEE o solicitam, salienta Piedade Ramires.

 

Atendendo “ao número de alunos com necessidades específicas que frequentam o ensino secundário”, a coordenadora considera que o número de alunos a ingressar no ensino superior “poderia ser maior”. “Culturalmente o ensino superior ainda é visto por muitos como um ensino para a elite, para os ‘mais inteligentes’, o que impede que alguns grupos, famílias incluídas, não acreditem na vantagem que a frequência em cursos superiores possa trazer. Ainda há um grande caminho a percorrer para uma sociedade que inclua todos, ou seja, que se organize respeitando as capacidades de cada um”.

 

DESEMPREGO NA POPULAÇÃO COM DEFICIÊNCIA CONTINUA A AUMENTAR 

O relatório do Observatório da Deficiência mostra ainda que nos últimos 10 anos, entre 2011 e 2021, “o desemprego na população com deficiência em Portugal aumentou 30,5 por cento”, ao contrário do que se verificou, no mesmo período, na população em geral (-43,2 por cento). Em 2020, refere o documento, o desemprego registado das pessoas com deficiência cresceu +11,6 por cento face a 2019. A maioria (89,2 por cento) eram adultos com mais de 25 anos, estavam à procura de um novo emprego (83,1 por cento) e encontravam-se desempregados há mais de 12 meses (62,3 por cento). E ao contrário do que se verificou na população em geral, em dezembro de 2021 o total de pessoas com deficiência inscritas como desempregadas continuava a aumentar (+1,2 por cento face ao período homólogo), o que mostra “que os efeitos da crise pandémica foram mais gravosos para a empregabilidade das pessoas com deficiência”.

 

O "Diário do Alentejo" tentou obter junto da Delegação Regional do Alentejo do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) dados referentes aos desempregados com deficiência inscritos nos centros de emprego do distrito de Beja, mas tal não foi possivel em tempo útil (aquando do fecho da edição número 2086, publicada no passado dia 15 de abril). 

 

O relatório avança, também, que em 2020 o crescimento do número de pessoas com deficiência inscritas como desempregadas abrangeu as cinco zonas geográficas do País (NUTS II), situando-se o Alentejo em último lugar, com um aumento de 2,2 por cento (886 pessoas). Em 2021, a região voltou a registar nova subida: +2,4 por cento (907).

Como tem sido referido em relatórios anteriores, diz o Observatório, “estes dados sugerem uma maior dificuldade enfrentada pelas pessoas com deficiência no acesso ao mercado de trabalho”.

 

Ao nível das habilitações literárias, ainda que em 2020 “se tenha verificado um aumento dos desempregados inscritos com deficiência em todos os níveis de escolaridade, em 2021 começam a notar-se sinais de melhoria em alguns níveis, em específico, para quem detinha o 1.º, 2.º e 3.ºciclos do ensino básico”, avança o relatório. Em 2020, a subida mais expressiva de inscrições nos centros de emprego ocorreu nas pessoas com deficiência que tinham ensino superior (+19,5 por cento;  888 pessoas). Em 2021, a tendência de crescimento manteve-se, especialmente, nas pessoas com deficiência com ensino secundário (+9,3 por cento;  3486) e superior (+8,3 por cento; 962).

 

A coordenadora do Observatório da Deficiência, Paula Campos Pinto, citada pelo “Público”, diz que há um “crescimento contínuo” de pessoas com deficiência inscritas nos centros de emprego com habilitações ao nível do ensino secundário e superior, uma prova de que “não basta concluir um curso ou uma formação profissional para conseguir entrar no mercado de trabalho”.

 

“DEFENDER UMA CULTURA DE MÉRITO" 

Embora nunca tenha sofrido qualquer tipo de discriminação pelo facto de ter paralisia cerebral, André Guerreiro sublinha que ainda existe “receio e preconceito” em relação às pessoas com deficiência, “basta olhar para o reduzido número de pessoas com algum tipo de limitação inseridas no mercado de trabalho”.

 

O jovem licenciado e mestre em Gestão de Empresas, natural de Beja, considera que, “de uma forma geral, é preciso avaliar e reconhecer as capacidades de cada um para que estas possam ser aproveitadas da melhor forma possível, defender uma cultura de mérito, ou seja, não empregar uma pessoa com deficiência a pensar apenas nos benefícios económicos que daí possam advir ou numa perspetiva de caridade, mas sim nas suas capacidades e qualificações”.

 

André ingressou no IPBeja em 2013, no regime normal de acesso. Em 2016, a fim de concluir a licenciatura, realizou o estágio curricular na Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva (EDIA). Seguiu-se um estágio profissional em contexto real de trabalho na mesma empresa, no âmbito de um protocolo celebrado com o IEFP. No fim do estágio foi contratado. Atualmente é técnico superior no departamento de contabilidade da EDIA.

 

“As dificuldades sentidas [no mercado de trabalho] foram as dificuldades normais quando iniciamos uma nova experiência profissional. Não existiram dificuldades especificamente relacionadas com a minha situação, uma vez que sempre tive todas as condições para desempenhar as minhas funções, tendo em linha de conta as minhas limitações”, diz o jovem de 27 anos, acrescentando que “desde cedo” ambicionou “construir uma carreira profissional através da qual conseguisse obter a maior realização profissional e pessoal, de forma a obter a maior autonomia possível”. “O meu objetivo foi sempre fazer o melhor possível com aquilo que tinha disponível. Sempre tive o propósito de que o meu percurso escolar e académico não se extinguisse em si mesmo, mas sim que fosse um instrumento para atingir uma carreira profissional”, reforça, frisando que nunca pensou em desistir.

 

As principais dificuldades que enfrenta diariamente “são físicas”, devido “às barreiras arquitetónicas”. No entanto, “em casa, na escola e agora no local de trabalho esta situação não se verifica”.

 

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No primeiro ciclo do ensino básico, recorda André, contou com alguns professores de apoio, “mantendo sempre um currículo completamente normal”. “Inicialmente não se acreditava que fosse possível escrever manualmente, mas tive uma professora com bastante experiência que acreditou sempre, e com trabalho foi possível fazer o meu percurso escrevendo apenas manualmente”. No segundo ciclo, já sem necessidade de professor de apoio, tinha “tolerância de tempo nas provas de avaliação por ser mais lento a escrever”. A partir do 8.º ano passou “a escrever tudo e a realizar as provas de avaliação através do computador, com o intuito de preparar os exames nacionais do 9.º ano”, uma vez que era “mais lento a escrever” e a sua caligrafia “não era legível, podendo ser penalizado na correção do exame por o corretor não estar habituado a ela”. No secundário escolheu Ciências e Tecnologias, “mantendo como apoio a escrita no computador e a tolerância de tempo nas provas de avaliação”.

 

Ao contrário de André, Maria, aluna finalista do IPBeja, revela que teve algumas dificuldades no seu trajeto académico – primeiro no curso técnico superior profissionalizado e posteriormente na licenciatura. Para além de outros problemas de saúde, Maria tem epilepsia, doença que tem vindo a afetar, sobretudo, as funções cognitivas. “[A dificuldade] é mais ao nível construtivo dos textos. Escrevo e posso repetir-me sem me aperceber. Num teste é muito difícil, porque tinha de estar sempre a ler o que já tinha escrito. E enquanto havia professores que diziam que entendiam o que eu queria dizer, outros não queriam saber”.

 

Embora a maioria dos seus professores “não estivesse sensibilizada para a questão das necessidades educativas especiais”, houve outros, tanto no curso técnico superior como na licenciatura, que “se empenharam em dispor de horas”, fora do seu horário, para a ajudarem, frisa. Ao nível de outros apoios, foi-lhe atribuída a bolsa de estudo por ter uma incapacidade e cedido um computador a título de empréstimo pelo politécnico.

A aluna sublinha, no entanto, que, apesar das dificuldades, concluiu o curso técnico superior “exatamente no mesmo tempo” dos colegas e o mesmo acontecerá com a licenciatura, que terminará em junho. Mas, “com um esforço acrescido”, diz.

 

Maria espera agora conseguir um estágio profissional e, depois, um emprego onde seja possível “colocar em prática o curso”. E embora esteja otimista, diz que as entidades “excluem, à partida, as pessoas com problemas de saúde, que têm incapacidades”, como se isso significasse que não conseguem fazer o seu trabalho. Para combater esses obstáculos, “deveria existir sempre, em todas as situações, pelo menos, um posto de trabalho para pessoas com deficiência”, defende.

 

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IPBEJA RECEBE MARCA DE ENTIDADE EMPREGADORA INCLUSIVA

O IPBeja recebeu em 2021 a Marca de Entidade Empregadora Inclusiva que contempla, segundo Piedade Ramires, “diferentes aspetos, sendo a acessibilidade um deles, e, o mais importante, o número de pessoas com incapacidade no seu mapa de pessoal, a formação prestada e as condições para os seus colaboradores se adaptarem ao posto de trabalho”. A distinção é atribuída de dois em dois anos. A coordenadora dos Serviços de Ação Social adianta ainda que a instituição está a candidatar-se ao Programa Acessibilidades 360º – Intervenção nos Edifícios Públicos, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência, com o objetivo de “resolver algumas lacunas” no que diz respeito à acessibilidade para pessoas com mobilidade condicionada, nomeadamente, ao nível de rampas, corrimões de apoio, perfis antiderrapantes em escadas e portas de abertura automática.

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