Diário do Alentejo

A inclusão pelos Bairros Saudáveis

22 de abril 2022 - 17:55
Programa Bairros Saudáveis aprovou cinco projetos destinados à comunidade cigana do distrito de Beja num financiamento total de 250 mil euros

Dos 15 projetos aprovados para financiamento no distrito de Beja no âmbito do programa nacional Bairros Saudáveis, que visa melhorar as condições de vida das populações incluindo as afetadas pela pandemia de covid-19, cinco destinam-se a comunidades de etnia cigana dos concelhos de Beja e Moura, abrangendo mais de 1200 indivíduos. No inicio do mês de abril, dia 8, assinalou-se mais um Dia Internacional da Pessoa Cigana.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

Elevada incidência de doenças crónicas, infeções por covid-19, mortalidade precoce, baixos níveis de escolaridade e qualificação, persistentes índices de iliteracia e abandono escolar, desemprego crónico e condições precárias de habitabilidade, salubridade e higiene. Estas são algumas das razões que levaram a ADCMoura – Associação para o Desenvolvimento do Concelho de Moura a elaborar um projeto integrado para as duas comunidades ciganas residentes nos bairros periféricos do Espadanal e Vale do Touro, num total de 160 habitantes, e a candidatá-lo ao Programa Bairros Saudáveis. A iniciativa de âmbito nacional, criada pelo Governo, visa “financiar projetos locais de iniciativa participativa”, para melhorar as condições de vida das populações, “inclusive das comunidades afetadas pela pandemia de covid-19, dispondo de 10 milhões de euros”.

 

Em vigor até agosto, o programa é coordenado pela arquiteta Helena Roseta, que, como autarca na Câmara de Lisboa, desenvolveu o Programa BIP/ZIP – Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária, cuja metodologia é muito semelhante.

 

“Nómada3.0”, assim se designa o projeto da ADCMoura, é um dos 15 aprovados para financiamento no distrito de Beja e um dos cinco que têm como público-alvo a comunidade cigana da região. Cada um dos cinco projetos conta com um financiamento de cerca de 50 mil euros.

 

O objetivo do “Nómada3.0” é “tentar motivar e capacitar” as comunidades ciganas dos bairros do Espadanal e Vale do Touro “para a adoção de estilos de vida que promovam o bem-estar individual e social, para que os próprios habitantes sejam agentes de mudança”, explica o gestor do projeto e presidente da direção da ADCMoura, Filipe Sousa.

 

Abrangendo quatro eixos – saúde, social, económico e ambiental/urbanístico – o projeto já possibilitou, em quase cinco meses de intervenção, melhorar os acessos ao bairro do Espadanal, com o apoio da Junta de Freguesia de Moura e Santo Amador, “uma das prioridades identificadas pelos próprios habitantes”; construir um campo de jogos equipado com balizas de futebol e redes também no Espadanal, com a ajuda dos jovens (o campo do Bairro Vale do Touro deverá ser construído ainda durante este mês); realizar ações de sensibilização em áreas como empreendedorismo e integração profissional, alimentação e saúde, literacia ou planeamento e gestão do orçamento familiar; e adquirir uma carrinha que foi transformada em Centro de Recursos Móvel, apetrechada com “recursos físicos, humanos e intelectuais”, com base nos quais serão desenvolvidas “atividades de animação, sensibilização, demonstração e mediação”. Um dos objetivos do centro, realça Filipe Sousa, é permitir, por exemplo, “a facilitação dos contactos” com vários serviços públicos para marcação de consultas médicas, obtenção de documentos, entre outros, evitando “que as pessoas precisem de se deslocar aos serviços”.

 

Também estão a ganhar forma nos dois bairros periféricos de Moura canteiros com aromáticas, hortas comunitárias e unidades de compostagem caseira, sempre com a participação das comunidades. Muito em breve terão início, em parceria com o Centro de Saúde de Moura, ações de despiste, prevenção e educação infantil, em áreas como saúde infantil, planeamento familiar, higiene oral, vacinação, hábitos alimentares, vida ativa e covid-19. Com a implementação do “Nómadas 3.0”, os habitantes passaram a dispor, ainda, de medicação gratuita através do Programa AbemRede Solidária do Medicamento, o que “lhes permite aliviar um bocadinho o orçamento”, diz o gestor. A ADCMoura está também a identificar as pessoas que vivem em condições extremamente precárias, “com habitações praticamente a cair-lhes em cima”, para “ver se é possível remediar alguns problemas”, “pagando os habitantes uma parte das despensas e a associação outra parte”.

 

“Nós trabalhamos com as comunidades ciganas há 15 anos. O facto de ter aparecido o Programa Bairros Saudáveis foi importante porque possibilitou que trabalhássemos de uma forma mais sustentada, com um orçamento um bocadinho mais folgado e também que promovêssemos algumas intervenções que não tínhamos previsto em anteriores projetos”, diz Filipe Sousa. O gestor salienta como bastante positivo, por um lado, o facto de ser um programa “muito simples, desburocrático”, e, por outro, valorizar a participação das comunidades.

 

 

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“DAR ALGUMA DIGNIDADE" AOS HABITANTES DAS PEDREIRAS 

A instalação de um balneário/sanitário público com apoio de um posto de primeiros socorros/saúde pública e de combate à covid-19 destinado à comunidade cigana do bairro das Pedreiras, nas imediações da cidade de Beja, é, por sua vez, um dos objetivos do “Contentores2021”, projeto candidatado pela Associação de Mediadores Ciganos de Portugal (AMEC), em parceria com a EAPN Portugal/Rede Europeia Anti-Pobreza. O presidente da AMEC sublinha que o bairro, construído em 2005 pela Câmara de Beja, é habituado atualmente por cerca de 900 pessoas, “umas 500 nas 50 casas e 400 nas barrancas em lona”, sendo que a “situação tem vindo a pior nos últimos quatro, cinco anos”.

 

Para Prudêncio Canhoto, a instalação do balneário, que se prevê para breve, “é o mínimo que se poderá fazer, não é a solução”. Solução seria “arranjar uma casa” para “os que estão nas barrancas viverem condignamente”, diz. O balneário representa, no entanto, “um grande passo” porque vai possibilitar, por exemplo, que “as crianças possam ir para a escola com um banho de água quente tomado”. “É dar alguma dignidade às pessoas, porque todos temos o direito de tomar um banho de água quente. No inverno as crianças levantam-se de manhã e não lavam a cara porque a água está gelada. Às vezes dizem que os ciganos não vão para a escola como as outras crianças, claro que não, porque as outras têm condições que eles não têm”, frisa.

 

O posto de primeiros socorros/saúde pública e de combate à covid-19 permitirá, prossegue o dirigente, “que os habitantes aprendam a tratar de uma pequena ferida, de um golpe qualquer, sem necessidade de irem ao centro de saúde”, e que as crianças aprendam hábitos de higiene oral, por exemplo.

 

O projeto “Contentores2021” prevê ainda a construção de um telheiro amplo para a dinamização de várias atividades, nomeadamente, casamentos e outros convívios, e a criação de hortas comunitárias, de uma zona arborizada e de uma cerca vedada para animais.

 

A AMEC viu ainda aprovado um segundo projeto no âmbito do Programa Bairros Saudáveis, também em parceria com a EAPN Portugal. Designado “Traseiras do Monte Sovina”, o projeto consiste na instalação de um balneário público na aldeia de Salvada, no concelho de Beja, faltando apenas “a ligação de água e esgotos” para começar a funcionar, esclarece Prudêncio Canhoto.

 

“Aquela comunidade está ali nas barracas, nas traseiras do Monte Sovina, há mais 50 anos e nunca teve água, esgotos, casa de banho”, frisa o dirigente, adiantando que na aldeia vivem “90 pessoas” de etnia cigana, sendo que os balneários irão beneficiar “umas 20”, porque as outras “têm casa de banho”.

 

Outro dos objetivos do projeto passa pela criação da Associação das Mulheres Ciganas de Beja, através da qual será possível “promover cursos de formação em várias áreas, como cozinha e costura, para termos mulheres ciganas capacitadas, porque as mulheres ciganas têm um potencial enorme”. O presidente da AMEC sublinha que, “no distrito de Beja, as mulheres são quase todas analfabetas e não têm oportunidades porque não têm habilitações”. Ao “frequentarem cursos de formação através da associação poderão atinjam um nível de escolaridade que lhes dê alguns direitos de trabalhar e até de criar um emprego”.

 

Junto aos balneários será ainda criada uma sala de reuniões, que servirá também para promover o ensino à distância para as meninas maiores de 12 anos, à semelhança do que está a ser feito num outro bairro da cidade de Beja, com resultados bastante positivos, diz Prudêncio Canhoto. “Há uma menina com 17 anos, que costumava faltar muito à escola, que está a tirar o 10.º ano à distância. Há outras a tirar o 9.º ano. Portanto, já vimos alguns frutos. Queremos fazer mesmo no próximo ano letivo, porque quando as meninas passam para o 2.º ciclo têm pouco aproveitamento porque faltam muito, os pais têm receio de as mandar para a escola”, justifica.

 

O presidente da AMEC considera que os projetos desenvolvidos no âmbito do Programa Bairros Saudáveis “são muito importantes”, mas defende que “devem ter continuidade”, nomeadamente, com o apoio da Câmara de Beja, caso contrário, “não vão servir de nada”.

 

A autarquia é precisamente uma das entidades parceiras de um outro projeto também destinado à comunidade do Bairro das Pedreiras. Promovido pela Alentejo XXI – Associação de Desenvolvimento Integrado do Meio Rural, o “Sou capaz” pretende “capacitar as famílias de competências pessoais, sociais e profissionais para a participação ativa no processo de melhoria da qualidade de vida no bairro e facilitação ao nível da integração/inclusão”.

 

De acordo com a coordenadora do projeto, estão previstas várias ações de sensibilização e formação em diversas áreas destinadas à população ativa, como educação e formação de adultos; competências básicas (comunicação oral, escrita e cálculo); e técnicas de procura ativa de emprego, gestão do orçamento familiar e higiene pessoal. Pretende-se ainda criar uma associação de jovens e dinamizar várias atividades para crianças e jovens, como pintura, dança e música, entre outras.

 

“O objetivo é que as crianças e jovens continuem a estudar para que mais tarde entrem no mercado de trabalho e se integrem na sociedade”, frisa Natália Serrana, referindo que, até ao momento, e dado que o projeto arrancou há relativamente pouco tempo, em fevereiro, “foram realizadas campanhas de sensibilização para a prevenção de comportamentos responsáveis face à pandemia de covid-19” e “distribuídas tintas para os habitantes arranjarem as suas casas”, para além de ter sido inaugurado um contentor que “funciona como espaço de receção ao público” e onde se têm desenvolvido algumas atividades lúdicas para as crianças.

 

Natália Serrana está também a proceder à caracterização dos moradores do bairro para facilitar a inscrição nas atividades previstas. “Já temos um bom número de inscrições, há várias pessoas interessadas em participarem. Independentemente da idade das pessoas que vão frequentar as atividades, este projeto tem o grande objetivo de promover a integração da comunidade do bairro das pedreiras”, reforça a coordenadora.

 

ENVOLVIENTO DAS COMUNIDADES DAS COMUNIDADES É FUNDAMENTAL

Dos cinco projetos, “A Voz da Comunidade”, levado a cabo pela Agarrar Exemplos – Associação de Desenvolvimento e Promoção das Comunidades Ciganas na aldeia de Salvada, é o único que não se destina exclusivamente à comunidade cigana, abrangendo todos os que se encontrem em situação de pobreza e/ou exclusão social.

 

Compreendendo três eixos de intervenção – saúde, social e ambiental – e contando com a parceria da Unidade de Cuidados na Comunidade de Beja (Agrupamento de Centros de Saúde), o projeto tem como principal objetivo “promover a cidadania inclusiva e de não discriminação através de ações para a desconstrução de estereótipos e combate à pobreza, com o envolvimento dos moradores, minimizando o impacto causado pela exclusão social”.

 

O envolvimento da comunidade local, é, aliás, segundo Noel Gouveia, membro da direção da Agarrar Exemplos, o que torna o projeto “inovador”. “Ao capacitarmos as pessoas elas ficam com uma maior abertura, até para serem mais ativistas no seu dia-a-dia”, diz a também mediadora sociocultural, reforçando a importância de se “auscultar as populações porque elas é que sabem o que é necessário para a sua terra e para elas”.

 

Tendo arrancado em novembro passado, “A Voz da Comunidade” promoveu, até ao momento, ações de sensibilização na área da saúde, designadamente, para a prevenção da pandemia provocada pela covid-19 e sobre a importância do cumprimento do plano de vacinação. Foram ainda distribuídos medicamentos a crianças e adultos, equipamentos de proteção individual e álcool gel e cabazes alimentares, assim como realizadas sessões de procura ativa de emprego e sobre gestão doméstica e de mediação com os serviços públicos locais. Brevemente deverão ter início as iniciativas na área do ambiente, com ações de requalificação e limpeza do bairro.

 

“Pelo menos, de seis a oito meses, enquanto dura o projeto, estamos a dar-lhes tudo o que podemos para as capacitar mais um bocadinho. Para elas terem mais qualidade de vida e para que quando virarmos costas, seja por mais três ou quatro meses até vir outra medida de apoio, possam ter outro meio de subsistência que não seja só as campanhas da apanha”, conclui Noel Gouveia.

 

POPULAÇÃO DE ETNIA CIGANA CONTINUA A AUMENTAR

Segundo o último Mapeamento das Comunidades Ciganas do Distrito de Beja, levado a cabo em 2018 pela AMEC com o apoio do Núcleo Distrital de Beja da EAPN Portugal, no distrito viviam 3 666 indivíduos de etnia cigana, o que representava 2,4 por cento do total de habitantes no território nacional. Destes, 2065 eram crianças e jovens e 1601 eram adultos. Beja (1399), Moura (983) e Serpa (469) eram os concelhos que apresentavam o maior número de ciganos no distrito. De acordo com o Inquérito aos Agregados Familiares da Comunidade Cigana do Concelho de Moura, realizado pela ADCMoura no âmbito do Projeto de Mediadores Municipais e Interculturais, em 2021 a população total de etnia cigana residente no concelho de Moura ascende a 1128 indivíduos, distribuídos por 281 agregados familiares. Quarenta e sete por cento são mulheres, 53 por cento homens, 68 por cento têm menos de 25 anos e 45 por cento idade inferior a 15 anos. Entre 2007 e 2021, a população cigana apresentou uma evolução positiva de 68 por cento. O presidente da direção da ADCMoura sublinha que Moura é, atualmente, o terceiro concelho a nível nacional em número absoluto e o segundo se se tiver em conta a percentagem de indivíduos de etnia cigana no total da população concelho.

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