Tornou-se o primeiro estrangeiro a chegar à cadeia de comando de uma corporação do Baixo Alentejo, depois de ter sido promovido a adjunto-comando dos Bombeiros Voluntários de Mértola. A promoção do guineense Mussá Embaló, que também tem nacionalidade portuguesa, aconteceu no passado mês de fevereiro, a poucos dias de fazer 32 anos.
O “Diário do Alentejo” foi conhecer o jovem que chegou à vila alentejana há cerca de uma década, por puro acaso, e se fez bombeiro. Uma história que começa na cidade de Bissau e passa por um bairro às portas de Lisboa, num percurso de vida que esteve longe de ser fácil.
Texto Júlia Serrão
Os dias de Mussá Embaló são preenchidos com novas tarefas, desde que ascendeu na cadeia de comando da corporação dos Bombeiros Voluntários de Mértola (BVM). Uma promoção que lhe reconhece o trabalho feito e o traz “muito feliz”. E, “acima de tudo”, diz, “é uma voto de confiança”.
Do terreno para um gabinete do quartel, o jovem adjunto-comando tem a seu cargo a coordenação da área onde sempre trabalhou como operacional: “Estou encarregado de gerir a escala de socorristas e o parque das viaturas, com especial foco nas ambulâncias, e carga de material das mesmas. Para além de dar apoio ao comandante e ao 2º comandante, nas tarefas diárias ou semanais, e apoiar o projeto que o comando tem para 2022.” Talvez porque a mudança ainda é muito recente, diz sentir saudades de “estar em campo, como parte do corpo ativo”: “era tripulante da ambulância de socorro, desde que ingressei nos bombeiros.” Quem o viu atuar na resposta a chamadas de emergência, diz que tem o perfil certo: profissionalismo e uma enorme humanidade.
Mussá entrou nos Bombeiros Voluntários de Mértola em 2011, como estagiário do primeiro ano do curso de Técnico de Proteção Civil que fazia na Alsud, a escola profissional da vila, e a reação foi imediata: “Encontrei um objetivo, que era fazer parte dos agentes de proteção civil”. Explica que, até então, tinha dúvidas relativamente a profissionalizar-se na área e a ficar no Alentejo, em Mértola. No segundo ano do curso profissional, tendo oportunidade de estagiar noutros quartéis, optou pelo que agora é o seu. Ao mesmo tempo inscreveu-se para bombeiro voluntário, e, no ano seguinte, já ia fazer voluntariado sempre que podia.
OS PRIMEIROS TEMPOS EM PORTUGAL
Por esta altura começou também a fazer a Formação Inicial de Bombeiros, que decorria de sexta a domingo em regime pós-laboral, em Castro Verde. Com a conclusão do curso, em 2013, é promovido a bombeiro de 3ª classe, passando a integrar o quadro da corporação. O grande salto na carreira do jovem, que entretanto conseguia a nacionalidade portuguesa, aconteceu em menos de um ano: em abril de 2021 passa a bombeiro de 3ª classe e em fevereiro de 2022 é convidado e aceita o posto de adjunto-comando.
Mussá Embaló nasceu a 13 de fevereiro de 1990, na Guiné-Bissau. Passou a infância e o início da adolescência no bairro Missirá, em Bissau, de onde saiu aos 14 anos com a família para viverem noutra zona da cidade. Só ficará mais quatro em território guineense. Em 2008, com o objetivo de continuar os estudos para seguir “na área de Informática”, junta-se ao pai que já vivia em Portugal, viajando com dois irmãos que também mudavam de residência.
Quando a Guerra Civil na Guiné acontece, a 7 de junho de 1998, Mussá tem 8 anos. Fala do conflito – que opunha a junta militar, comandada pelo brigadeiro Ansumane Mané, chefe do Estado- Maior das Forças Armadas, e o Presidente João Bernardo (Nino) Vieira – como um dos momentos mais “tristes e difíceis” da sua vida. “Infelizmente, vi muitas coisas… (emociona-se) e a minha mãe sempre aflita, a chorar, a fugir de um lado para o outro para proteger-nos, a mim e aos meus irmãos. Vivia preocupada com a nossa segurança”. Conta que ainda acorda “assustado à noite”, quando essas “lembranças” lhe chegam em forma de pesadelos, o que é frequente: “Não consigo mesmo esquecer!”.
Os dias de esperança em Portugal são breves: “Chegámos em junho de 2008 e o meu pai ficou doente logo nesse mês, falecendo em agosto”, recorda. A perda do progenitor, que diz ser outro dos momentos tristes que ainda lhe ensombra os dias, vai mudar radicalmente o percurso de vida dos três rapazes que, sem outros familiares por perto, ficam largados à própria sorte num bairro do concelho da Amadora, às portas de Lisboa.
UMA DECISÃO DIFÍCIL DE TOMAR
Um vai trabalhar para o Algarve, o outro para os Açores, e Mussá, que é o mais novo, fica em Lisboa para continuar os estudos, que tinha interrompido depois de concluir o 9º ano de escolaridade, na Guiné- Bissau. “Matriculei-me num Curso de Educação e Formação de Adultos (EFA), que era uma das formas de fazer o 12º ano, na Escola D. João V, na Damaia. Frequentava a escola à noite e de dia trabalhava na construção civil.” Como as aulas terminavam à meia-noite, quase nunca ia para a cama antes da 1:30 horas da manhã para, no dia seguinte, se levantar às 6:30 horas e começar tudo de novo. Lembra que “andava tão cansado que, muitas vezes, adormecia no comboio”.
Primeiro em Lisboa, e mais tarde noutras cidades em direção a norte, Mussá trabalhou na construção civil como ajudante de eletricista e ajudante de carpintaria. Estava numa obra em Leiria quando recebeu o telefonema de “um grande amigo” cabo-verdiano, que fora seu colega de turma na Escola D. João V, a dar-lhe conta da existência de um curso “‘muito interessante de técnico de Proteção Civil’”, numa escola profissional de uma vila alentejana. O amigo, que “sempre tinha querido ser bombeiro”, estava muito entusiasmado com a ideia de inscrever-se, e tentava convencê-lo a fazer o mesmo.
Acabou por ceder pelo cansaço, mas avisou que só o iria acompanhar, uma espécie de apoio moral.
A viagem, de comboio até Beja, acontece num domingo. Já habituado à facilidade de transportes em Lisboa, o jovem surpreende- -se com o percurso da carreira que ligava a capital do distrito a Mértola: a paragem nos lugarejos onde não saía nem entrava ninguém e os desvios para aceder a montes perdidos na planície.
Lembra que, quando chegou a uma pequena povoação próxima da sede de concelho, e pensou que tinha chegado ao destino, disse ao amigo “que não saía da camioneta”.
A INTEGRAÇÃO NA COMUNIDADE
Na escola, acabou por ser entrevistado e, dois dias depois, a secretaria da Alsud informava-o que tinha sido selecionado para frequentar o curso de Técnico de Proteção Civil. Adiou a matrícula até ao limite, e já as aulas tinham começado quando resolveu integrar a turma. “Foi a decisão mais difícil que tive que tomar em toda a minha vida”, diz, para explicar que, “acima de tudo”, colocava-se a questão financeira: “Estava sozinho, sem apoio de ninguém, não podia deixar de trabalhar… tratava- se de trocar um salário por um pequeno subsídio para alimentação e alojamento.” Durante o período de hesitação, que diz ter sido sobretudo de reflexão, e com o amigo a insistir para que se juntasse a ele, o jovem pesquisou as saídas profissionais do curso, e pesou muitas vezes os prós e os contras de deixar o que tinha naquele momento.
O ambiente no passar dos dias na Alsud convence-o que fez a escolha certa: está a aprender coisas novas “muito interessantes”; há camaradagem entre os colegas; os professores “são muito bons”. Diz que o resultado “superou as expectativas e ainda bem, pois se assim não fosse, se calhar tinha feito um ano letivo e voltava para a construção civil”. No primeiro ano, sempre que pode ainda vai a Lisboa passar os fins-de-semana. Mas, a pouco e pouco, começa a distanciar-se da vida passada.
Agora, havia a escola – “que será sempre a minha segunda casa”, assegura – e a associação de bombeiros onde já prestava trabalho como voluntário, passando a ser a sua primeira referência. Revela que o dia em que entrou no quartel, pela primeira vez, é um dos “mais felizes” que viveu até agora, e a vida profissional e as amizades que fez dentro e fora desse círculo “os grandes pilares” que o sustentam para além da família.
Prossegue falando da integração no quartel com os colegas que diz ter sido “muito fácil”, talvez porque nunca foi de “ficar preso” a obstáculos ou receios. “Não tenho por hábito isolar-me só porque tenho um sotaque diferente e se calhar falo mal o português. Por isso mesmo, devo integrar-me nas comunidades de forma ainda mais rápida.” Foi o que fez em Lisboa e voltou a fazer em Mértola. E quando os colegas, de início e “por brincadeira”, gozavam com a sua pronúncia, ele pagava na mesma moeda gozando com a pronúncia alentejana.
Explica a inclusão na comunidade de forma mais abrangente: “Não há palavras para descrever os mertolenses no que respeita a receber os estrangeiros, sejam de onde forem. Tratam as pessoas que vêm de fora com os braços e o coração abertos.”

SER SEMPRE MELHOR, CONTINUAR A CRESCER
Mas não foi só a vida profissional de Mussá Embaló que mudou desde que chegou à vila alentejana. Entretanto, também casou com uma cabo-verdiana que passou igualmente pela Alsud. Conta que, apesar de Aline de Jesus da Silva Tavares compreender “que um bombeiro tem que estar pronto a qualquer hora quando está na sua área de atuação, e as ocorrências não terem hora para acontecerem”, tenta compensá-la das constantes ausências com umas férias longe de Mértola, sempre que pode.
Com a família espalhada pelos dois países, o jovem luso-guineense vai mantendo contactos constantes “graças às redes sociais”. Quando foi convidado para adjunto-comando, aconselhou-se com a mãe e os irmãos. É uma prática comum em momentos-chave. Com a progenitora fala mesmo todos os dias, “as vezes três vezes, por Messenger e WhatsApp”, para partilhar a vida nas “alegrias e tristezas”. À distância, ela ralha-lhe quando é preciso, e passa-lhe a mão pelo cabelo quando a circunstância o impõe. Mussá diz que ela é “uma mulher de ferro”, numa ode à sua coragem.
Há dias em que as paisagens do lugar onde nasceu estão muito vivas na memória, confessa, trazendo- lhe o “cheirinho da terra molhada” nas estações das chuvas e imagens de campos vermelhos na seca. São memórias que o “ajudam a matar a saudade, e ajudam a criar mais saudades ainda”, pois só voltou uma vez depois que chegou a Portugal. Este ano planeia ir lá de férias, “nem que seja só uma semanita”.
Talvez quando se reformar volte de vez, deixa no ar com a descontração de quem sabe que não tem que tomar decisões a respeito de um tempo tão distante.
Por enquanto quer focar-se nos projetos e tarefas a curto prazo, que passam por “continuar a crescer como pessoa e profissional, e honrar o lugar” que agora acaba de lhe ser dado na cadeia de comando da corporação.
“Quero continuar com paixão e dedicação, porque estou no caminho certo, a fazer o que gosto e faz a minha imagem que é ajudar os outros”, conclui.
UM EXEMPLO DE EMPENHO E DEDICAÇÃO
Jorge Santos, comandante dos Bombeiros Voluntários de Mértola, explica que Mussá “cresceu muito como profissional e, principalmente, como pessoa, desde que entrou na associação há cerca de 10 anos”, no âmbito do estágio de proteção civil. Observa: “O seu jeito humilde, comprometido com o serviço operacional, e de fácil relacionamento fizeram dele a escolha certa para ser adjunto de comando deste corpo de bombeiros.”
Em representação da direção da Associação Humanitária dos BVM, a sua presidente, Maria do Céu Alhinho Pinto de Andrade, assegura que é “muito fácil falar sobre” o jovem: “É um rapaz de excelência, como pessoa e como profissional. São suas características pessoais a humildade, a boa educação e o espírito de equipa e ajuda aos demais. Como profissional é empenhado e dedicado, sempre disponível para aprender, para ouvir e dar o seu contributo positivo. Quando os elementos de comando informaram a direção que a sua escolha para adjunto de comando era o Mussá, a direção apoiou por unanimidade sem hesitar. Ele é um exemplo de que, quando temos objetivos e os queremos alcançar, não há impossíveis!” Dos colegas, também chegam muito elogios, destacando-lhe a capacidade de amizade e de trabalho.