Diário do Alentejo

O escravo romano que zela pelo seu senhor!

21 de março 2022 - 11:30
Árula à deusa SaluÁrula à deusa Salu

Texto José D’encarnação, arqueólogo

 

O clima social vivido no Império Romano, há dois mil anos, era, porventura, bem diferente daquele que, a determinado momento, se imaginou, ao atribuir a essa sociedade o depreciativo epíteto de ‘esclavagista’, por o escravo ser, então, uma classe social; mas, se bem compararmos os escravos d’outrora com os atuais, quase apetece proclamar: “Que venha o Diabo e escolha!”. O monumento de que vai falar-se poderá trazer, a esse propósito, algum esclarecimento.

 

O MONUMENTO

Não se estranhe que dê o nome de “monumento” a esta pedra com letras, de 51 centímetros de alto por cerca de 30 de largo e 26/27 de espessura. Que não é ‘monumental’ não é, no sentido de grandiosidade física; é ‘monumental’, porém, no seu significado profundo.

 

Dizem-me que já dela se não sabe. Eu tive, no entanto, a felicidade de a fotografar a 22 de Maio de 1981, na arrecadação da Herdade da Almocreva, Penedo Gordo, freguesia de Santiago Maior, herdade também chamada da Algramassa, onde existe, como se sabe, a vistosa villa romana de Pisões.

 

Foi o Dr. Fernando Nunes Ribeiro quem, no âmbito dos trabalhos arqueológicos ali levados a efeito sob sua direção, a encontrou, em 1967. Coube, todavia, a Justino Mendes de Almeida e Fernando Bandeira Ferreira o seu primeiro estudo, publicado no volume LXXIX, de 1969, da “Revista de Guimarães”, nas páginas 61 e 62. Uma breve nota, como era seu hábito, na série de notícias a que, nessa década, sob o título “Varia Epigraphica” (‘coisas várias sobre Epigrafia’), se dedicaram a redigir. Uma iniciativa em boa hora tomada, porque pouco interesse ainda havia por essas ‘pedras com letras’ e eles acabaram por dar a conhecer muitas inscrições novas e proceder à revisão de leitura de outras.

Pensamos que se trata de uma árula, ou seja, a miniatura de um altar. Também na atualidade, levados por uma devoção extrema, nos apeteceria, por vezes, mandar erguer capela ou até santuário ao nosso ‘santinho’ mais querido. Na impossibilidade, manda-se gravar uma lápide ou acendemos uma vela e, se curados formos de maligna doença num braço, encomendamos braço em cera para prantar lá na capela! Assim os romanos: um pequeno altar consubstanciava o e, se curados formos de maligna doença num braço, encomendamos braço em cera para prantar lá na capela! Assim os romanos: um pequeno altar consubstanciava o que haveria ali uma concavidade a indicar que não era altar mas sim pedestal de uma pequena estátua, como são – mal acomparado – as imagens que vemos nos nossos oratórios familiares? E porque não? Já voltaremos ao assunto!

 

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A INSCRIÇÃO

Na verdade, importa é desvendar o segredo: o que é que está escrito na pedra? Escrito em latim, como era de regra, e com siglas e abreviaturas, porque as pessoas conheciam o seu significado e assim se poupava dinheiro na gravação.

Traduza-se, pois, o letreiro:

 “À Saúde! Pró nosso Gaio Atílio Cordo, o servo Catulo cumpriu o voto de livre vontade”.

 

Não poderia ser mais oportuna esta lembrança num tempo – como é o nosso, de epidemia!... – em que à Saúde se confere papel fundamental. Deificaram-na os Romanos! Havia uma deusa a invocar sempre que a doença surgisse, como Santa Bárbara quando troveja: era a deusa “Salus”! Daí vem a palavra ‘salutífero’.

 

E o que é nós vemos? Um servo a invocar a deusa pelo bem-estar e prosperidade do seu dono!

 

Os investigadores que nos precederam não compreenderam o significado da sigla N e chegaram mesmo a considerar que poderia ser mais um nome do servo, o que não tinha, de facto, sentido, pois o servo só possuía um nome e o deste era Catulus. Catulus!? E tinha esse nome algum significado? Quiçá, sim, porque ao servo se punha sempre um nome que agradasse, como nós hoje – salvo seja! – aos animais de estimação. Catulo, em latim, significa cachorrinho. Custanos a pensar que se desse o nome de “Cachorrinho” a um servo, mas se verificarmos que é o diminutivo de “catus”, ‘sagaz’, ‘hábil’, não ficaremos tão surpreendidos assim…

 

E, afinal, que significa o N? Já tivemos ocasião de o saber quando tratámos dos dois servos, Primogene e Félix, que mandaram fazer um busto ao espírito divinizado da “nossa Secunda” (“Diário do Alentejo”, 13-08-2021, pág. 1). Exacto, também aqui o N é a sigla do adjectivo possessivo ‘nosso’. E voltamos aos nossos dias:

 – O meu Toino trata disso, não te preocupes!

 

 Frases destas não são correntes no cotio alentejano? O adjetivo possessivo a demonstrar ternura, sereno ambiente familiar. Assim o quis demonstrar Catulo!

 

E QUEM SERIA CATULO?

Estranha-se que um servo assim se preocupe com o seu senhor. É que ele não seria um servo qualquer!

 

Escreveu o Doutor Jorge Alarcão, em 1976:

“Qual seria a parte dos escravos na exploração latifundiária do Alentejo? A questão parece-nos uma daquelas para as quais nunca acharemos resposta. Referências literárias, não as há. Quanto a documentos epigráficos, o único que Júlio Mangas cita como testemunho de escravo empregado em trabalhos rurais no Alentejo é a ara de Pisões, mas este mesmo é muito incerto quanto à natureza do escravo”.

 

Júlio Mangas escrevera, em 1971, um livro sobre os escravos e os libertos na Espanha romana e sugerira que Catulo seria um escravo “que provavelmente trabalharia na agricultura para o seu dono, G. Atilius Cordus, a quem devia pertencer a ‘villa’ romana de Pisões”. Decerto Jorge Alarcão não manterá hoje essa opinião de incerteza, porque não parece despicienda a hipótese de Catulus ser o feitor ou capataz da ‘villa’ de Pisões, ou seja, aquele a quem o senhor encarregara de gerir a herdade, cargo que, em Latim, se designava pela palavra “vilicus”. Daí também, obviamente, o seu interesse em que o senhor estivesse bem! Na 3ª edição do seu livro “Portugal Romano” (1983, p. 120) Jorge de Alarcão repete o que já afirmara em 1974: a “villa” de Pisões “foi propriedade de uma família de nome Atília, como se deduz de uma inscrição à deusa Salus ali encontrada”. Estamos de acordo: Catulo ergueu monumento à deusa da Saúde, porque muito prezava a saúde do seu senhor! A colocar no larário familiar, em lugar de relevo nas termas da casa senhorial ou na sala de jantar – seria sempre uma prova de dedicação e de boa harmonia social!

 

E assim se prova como – mais uma vez! – mui singela pedra com letras nos traz informações importantes acerca dos nossos antepassados romanos! Nesse caso, um dos ricos agrários do termo da cidade de Pax Iulia!

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