Diário do Alentejo

Fugir da guerra não é deixar a guerra para trás

17 de março 2022 - 12:00
Foto | Rúben SilvaFoto | Rúben Silva

Os refugiados trazem sempre muito mais consigo do que aquilo que realmente trazem. Trazem o que veio com eles, mas também o que ficou para trás. Uma bagagem cheia de memórias, de medos e incertezas, que pesa muito mais do que tudo o que possam trazer com eles. Muito mais do que aquilo que poderão salvar. Ivanna e Andrea, primeiro. Andriy, depois. Refugiados ucranianos chegaram a Aljustrel há duas semanas.

 

Texto Marco Monteiro Cândido

7 de março de 2022. A guerra na Ucrânia, provocada pela invasão da Rússia, dura há 22 dias. Ivanna e Andrea estão há 14 em Portugal. Em Aljustrel. Chegaram a 3 de março. O encontro é junto à ermida de Nossa Senhora do Castelo. Local privilegiado para observar Aljustrel e as planícies em redor. No entanto, não é isso que lhes ocupa o pensamento e, muito menos, reflete no olhar. Este revela o que as palavras não dizem. Na imensidão de um olhar habituado a outras paragens, é na vastidão da planície alentejana que os olhares tímidos, entristecidos, ganham espaço, num respirar que o peito tem insistido em manter apertado.

 

Por agora, o ar é respirável, o silêncio é dominante, com os sons de fundo, próprios de uma vila alentejana, a ecoarem entre os suspiros de ansiedade. O dia tem um brilho próprio de sol de inverno, numa acalmia que contrasta com o que sentem. Com o que viveram e com o que vivem, pelo menos no silêncio da noite e dos seus pensamentos. O brilho do dia não se reflete no brilho dos olhos, opacos pela tristeza, pelo medo e pelo receio que trazem no peito por estes dias.

 

Slava Ukraini. Glória à Ucrânia. Assim termina a conversa com Ivanna e Andrea. Mãe e filho. 36 e 13 anos. Fugidos de uma guerra que não desejaram e que não desejam. Que, tal como muitos ucranianos, nunca acreditaram que pudesse ser possível. Apesar da tensão. Apesar das ameaças. Apesar de tudo. E que ainda hoje, passados que estão mais do que dias suficientes após o inicio, lhes ocupa o pensamento. E as noites. E o silêncio. O silêncio entrecortado pelo som dos bombardeamentos da terra natal: Lviv.

 

Ivanna e Andrea chegaram há pouco tempo a Portugal, refugiados por força das circunstâncias, súbitas. Refugiados como todos o são, por vontade alheia. Por desígnios alheios ao seu livre arbítrio. E, se há bem pouco tempo, os dias de Andrea, um jovem de 13 anos, com todas as mudanças e desafios próprios dos adolescentes com 13 anos, eram ocupados entre a escola, o jogar à bola com os amigos ou o andar de bicicleta, por agora, tudo isso está em suspenso. Tudo isso terá que esperar. Como um inspirar profundo, antes de ganhar balanço e expirar, na cadência normal de todos os dias. Tal como crescer, quando se tem 13 anos.

 

Andrea Bilokur chegou a Portugal com a sua mãe, Ivanna Bilokur. Não conheciam Portugal, nunca tinham estado em Portugal. Não falam inglês, tão pouco português. O elo de ligação com a sua nova realidade, e o motivo que os trouxe ao país europeu mais a ocidente em relação ao país que invadiu o seu país, é Olga Guda, irmã de Ivanna, há 12 em Portugal, e que vive em Aljustrel. “Tenho medo e estou preocupado pelo meu pai, pelos meus amigos. Pela minha casa”. Andrea tem apenas 13 anos, mas as preocupações são de gente grande. Maiores do que deveriam ser. Apesar do semblante carregado, da dureza e aridez das palavras, próprias das línguas de leste, a preocupação espelhada no olhar é nítida. Evidente. Triste.

 

Andrea veio com a sua mãe para Aljustrel, fugidos da guerra. O seu pai ficou. Porque assim tem que ser. E, apesar de ainda não ter sido mobilizado para o exército ucraniano, a possibilidade de o ser, os bombardeamentos, os avanços do exército russo, são um sobressalto constante. E desajustado para o que deveria ser a vida de um jovem de 13 anos. Seja na Ucrânia, em Portugal ou noutro país qualquer. “Até aqui tinha uma vida boa, feliz. Todos os dias, de manhã, ia para a escola, brincava. Nunca acreditei que uma coisa destas pudesse acontecer. E ainda não acredito que isto está a acontecer”.

 

Psicóloga de formação, apesar de não exercer, Ivanna, a jovem mãe de Andrea, ainda espelha mais a tristeza no seu olhar. Se o discurso em relação ao futuro é otimista, com a esperança de que “vai ficar tudo bem e vai acabar depressa”, o olhar revela, mais uma vez, a tristeza profunda que o discurso insiste em não expor de forma clara. De forma tímida, Ivanna vai partilhando os medos e anseios. E o que a preocupa.

 

“Eu só penso na minha vida. Na vida que tinha. Eu tinha uma vida boa. Mas, agora, tudo mudou. Agora…”. Esta mudança de vida, de país, num estado de permanente incógnita em relação ao que virá e ao que ficou na Ucrânia, ainda mais impacto tem para Ivanna, pelo inesperado. Pela rapidez com que tudo aconteceu. “Quando tudo começou, atacaram logo perto da minha casa. Logo de manhã, saí de casa para trabalhar e atacaram logo. Eu não estava à espera. Bombardearam um aeroporto e vi o míssil a passar. Mas é muito complicado. Deixar a casa, deixar o trabalho, deixar tudo. Vir para cá, sem saber nada, sem conhecer, não é fácil”. E se o início da guerra foi repentino, tal como a vinda para Portugal, o regresso não se avizinha próximo. Ivanna nem sequer sabe se esse dia chegará. “Vou arranjar trabalho, porque não sei quanto tempo estarei por cá”.

 

Os pais de Andrea não vivem juntos. E se ele está em Portugal com a mãe, deixando os conflitos para trás, a guerra veio com ele, nem que seja pelo medo de que o pai seja chamado a combater.

 

No momento em que estas palavras são escritas, o pai de Andrea ainda está em casa. À espera. Mas Andrea está otimista. E esperançoso, por enquanto, mesmo sentindo medo, que tenta combater. “O meu pai ainda está em casa. Mas eu acho que ele não vai ser chamado [a combater pelo exército ucraniano]. Eu acredito que ele não vai ser chamado. Mas tenho medo. Pelas pessoas, pelas crianças. E pelos meus amigos”.

 

Sentimentos partilhados pela sua mãe. Pelos mesmos motivos. Mas Ivanna está otimista, apesar de tudo, em relação ao futuro, acreditando na força dos ucranianos. “Todos juntos, vamos conseguir. Vamos fazer de tudo. Os ucranianos são muito fortes. Somos gente muito forte”. Por agora só querem que o pesadelo acabe e que voltem a acordar com o amanhecer ucraniano. Em paz!

 

Multimédia0Refugiados -  Andrea, o filho, e Ivanna, a mãe, vieram da Ucrânia para Aljustrel

 

A FALSA SENSAÇÃO DE QUESTÁ TUDO BEM

08 de março de 2022. O jardim 25 de abril, em Aljustrel, é novo ponto de encontro, desta vez com Andriy Vantkh, primo de Andrea e sobrinho de Ivanna e Olga. Esta, tal como no dia anterior, volta estar presente para mediar a conversa. Fazer a ponte entre Portugal e a Ucrânia em terra mineira. Ligar o português e o ucraniano. No entanto, ao contrário do encontro de véspera, na conversa com Andriy, Olga limita-se, praticamente, a assistir. O seu sobrinho, de 17 anos, tem facilidade a expressar-se em inglês, apesar de alguma timidez. E de uma tristeza profunda. Pesada. Tão grande como a profundeza do olhar claro de Andriy, mas baço também. Carregado. Debotado.

 

Chegado a Aljustrel no dia 4, Andriy deixou para trás a sua mãe, professora de 53 anos, e o pai, eletricista de 54. A decisão de vir para Portugal foi tomada a três, em família, numa tentativa de tomar as rédeas de um futuro que se revela, ainda mais, incerto. Após ponderarem, a família de Andriy concluiu que era melhor ele vir. Até, porque, com 17 anos ainda poderia sair do seu país. E o receio de ser mobilizado para o exército ucraniano, assim que atingisse a maioridade, era real. “É muito triste e assustador, para mim, ter vindo embora da Ucrânia e os meus pais terem ficado, porque não sei, não sabemos, o que pode acontecer amanhã. Não sei o que lhes pode acontecer”.

 

O pai de Andriy ainda não foi mobilizado para combater. Por agora, continua em Velukui Lubin, terra perto de Lviv. Na sua casa, na casa da família. Como todos os homens, entre os 18 e os 60 anos, não pode sair do país, podendo ser convocado a qualquer momento. A mãe, professora numa instituição de acolhimento de crianças órfãs, podia sair. Mas não o fez. Quis ficar, para não deixar o marido sozinho, assegurando que o filho estaria em segurança, em Portugal, com a tia Olga. Desde que deixou a sua vida para trás, Andriy fala todos os dias com os pais. Mas sabe que eles não lhe contam tudo, para o proteger, para o sossegar, na tentativa de que ele esteja tranquilo.

 

“Eles dizem-me que está tudo bem, para não me preocupar, mas, é só. Não dizem mais nada. Acho que seja para me proteger”, refere, com o olhar distante, quase que alheado do que o rodeia. Andriy está fisicamente em Portugal, mas ele ainda não chegou por completo. Provavelmente, nunca chegará. Muito do que é, do que aspira ser, do que sente, contínua por lá, numa terra que é muito mais do que o sítio onde nasceu e vive. E essa sua tristeza, pelo não estar completo, sente-se na forma como fala, como se movimenta, como olha. E pelos silêncios, como se aguardasse que tudo passasse, num respirar profundo demais para um jovem de 17 anos, que, até aqui, andava no 11.º ano, gostava de jogar computador, voleibol e que estava a aprender programação.

 

Apesar disto, Andriy não pensa em regressar tão depressa à Ucrânia. A realidade não lhe permite o luxo de sonhar com isso. Pelo menos, para já. “Por agora, quero ficar em Portugal. Mas só quero que os meus pais venham para cá. Não sei quanto tempo isto vai durar. Parece irreal. Só quero que acabe depressa”. Andriy mantém contacto com os seus amigos de sempre. A grande maioria saiu do país, para a Polónia e Alemanha. Alguns ficaram. “Os meus amigos, os que ficaram na Ucrânia, estão assustados. Têm medo. Já não têm pão, passam os dias fechados em casa, com as sirenes sempre a tocar”.

 

Andriy não sabe como está o país ao certo neste momento. Nem como será o futuro, mas não tem dúvidas do país que vai encontrar, um dia que volte. Sabe que não será o mesmo que deixou. Uma Ucrânia diferente. Destruída. Incompleta. Tal como ele está, neste momento. Onde lhe falta o que não se vê. O que normalmente não se dá conta que lá esteja, até faltar. A paz de espírito. A paz. Andriy deixou a guerra para trás, mas a guerra veio com ele.

 

 

Multimédia1Acolhimento - Olga e o seu sobrinho, Andriy

 

QUANDO A FAMÍLIA SE TORNA FAMÍLIA DE ACOLHIMENTO

A vinda de Andriy, Ivanna e Andrea para Portugal têm um elo de ligação, para além de estarem ligados entre si. Olga Guda, de 39 anos, recebeu-os a todos em sua casa, em Aljustrel, passando de três pessoas (Olga, o marido e a filha), para seis. Olga é irmã de Ivanna e tia de Andrea. E também é tia de Andriy, por ser irmã do pai deste. A viver em Portugal desde 2012, Olga está perfeitamente integrada na comunidade, sem pensar em regressar ao seu país, a Ucrânia. No entanto, estava a pensar ir com a filha no próximo mês de abril, para passar férias, quando a guerra rebentou, sem avisar. Umas férias na terra que a viu nascer, adiadas sem prazo de validade. “Ninguém estava à espera de uma coisa destas. Parece mentira”. Para além de Ivanna e do pai de Andriy, Olga tem mais uma irmã e cinco irmãos. São nove, ao todo, contando consigo. Um dos irmãos, que trabalhava nas obras até há pouco tempo, já foi mobilizado para combater, dizendo apenas que está tudo bem.

 

“Não consigo falar com ele sempre. Não sou eu que lhe ligo. Ele é que liga, quando pode. E não pode contar nada do que se passa. Apenas que está tudo bem”. Quanto ao futuro da sua terra, está otimista, mas é o presente que a preocupa e como isso poderá condicionar os anos que virão. “Não vai haver casas, nada. Vai levar muitos anos a reconstruir tudo: casas, estradas, escolas. Está complicado, muito complicado”. E como poderão ser condicionadas as vidas das crianças ucranianas. “As pessoas têm medo. Não dormem à noite. Todos os dias têm medo. Mas o pior é à noite. As crianças têm muito medo. E depois há menos carne, não há peixe. Cozer batatas já é bom. E ainda pior com a comida das crianças. Não se consegue arranjar comida para as crianças. As crianças comem batatas sem nada. Ou arroz”.

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