Diário do Alentejo

O olhar de quem vive a invasão da Rússia por cá

10 de março 2022 - 11:20
Ilustração | Susa MonteiroIlustração | Susa Monteiro

Maksym, Mariya, Maryna e Mariia, cidadãos ucranianos residentes no distrito de Beja, acompanham com redobrada atenção a situação vivida desde a semana passada no seu país de origem, a braços com uma ofensiva militar lançada pela Rússia.

 

Temem pela segurança dos familiares e amigos, alguns deles a viverem em cidades já bombardeadas. Temem que a Ucrânia seja destruída, que deixe de ser independente. O presidente russo, Vladimir Putin, justificou a “operação militar especial” na Ucrânia com a necessidade de desmilitarizar o país vizinho e afirmou que era a única maneira de a Rússia se defender, sendo que “a ofensiva durará o tempo necessário”.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

Nos primeiros dias da ofensiva militar lançada pela Rússia na Ucrânia, ainda julgou que se tratasse de uma situação idêntica à verificada em 2014, quando a Crimeia, península localizada na região do mar Negro, foi anexada pelo presidente russo Vladimir Putin. Mas com o passar dos dias, Maksym Simka começou a perceber que não se estava perante aquilo a que o seu pai apelida de “jogada de 100 horas” de Putin. “Pelo que aconteceu na Crimeia, e também em relação a outros territórios, como a Geórgia, em 2008, Putin invade, tenta conseguir o máximo em 100 horas, ou seja, quatro, cinco dias, e depois volta para trás. Estava com esperança que fosse só isso”, diz o técnico de som de 27 anos, que chegou a Beja em 2009, onde a mãe vive desde 2001.

 

Considera, agora, que o conflito que teve início no passado dia 24 de fevereiro não se resolverá “de um dia para o outro” e que as negociações entre as delegações ucraniana e russa com vista a um cessar-fogo – a primeira realizou-se na segunda-feira, uma segunda ronda estava prevista para quarta-feira, dia do fecho desta edição – também não irão servir de muito. E frisa que os ucranianos “que estão na linha da frente” receiam que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, ceda, de alguma forma, a Vladimir Putin, “para que o conflito termine o mais rapidamente possível”, correndo o risco de “daqui a um mês ou dois recomeçar”. “As coisas têm de ficar bem esclarecidas desde o início”, defende.

 

O otimismo demonstrado pelo povo ucraniano, quer através dos meios de comunicação social da Ucrânia, quer das redes sociais e sítios eletrónicos que Maksym tem vindo a acompanhar nos últimos dias, levam-no a acreditar, no entanto, que “vai ser possível regressar à normalidade”, ainda que os ucranianos tenham pela frente “muito trabalho” para o país voltar “ao que era ou até melhorar”.

 

As próprias estatísticas militares, que apresentam “muitas derrotas russas contra poucas derrotas ucranianas”, mostram que “a Ucrânia está muito à frente”, sublinha. As notícias de que há russos “a renderem-se” e “a pedinchar gasóleo e comida pelas aldeias”, sinal de que “a situação deles está má”, também ajudam a elevar a confiança dos militares ucranianos.

 

O pai de Maksym, com quem mantém contacto diário, vive em Lviv, na zona mais ocidental da Ucrânia, até agora poupada pela guerra. Trabalhador na aérea da construção civil, integra, desde o início do conflito, o grupo de voluntários que prestam auxílio aos milhares de refugiados que vão chegando à cidade, a maioria com o objetivo de seguir para a vizinha Polónia, a pouco mais de meia centena de quilómetros.

 

Todos os dias, conta Maksym, ouvem-se sirenes de aviso em Lviv para as pessoas procurarem abrigo, mas até ao momento “ainda não houve bombardeamentos”. Sendo uma cidade de “habitantes pró-Ucrânia”, o jovem acredita que “mais cedo ou mais tarde” isso acabará por acontecer.

 

 É precisamente pela segurança do pai que mais teme. Com 53 anos, está impedido de sair do país devido à lei marcial decretada pelo presidente ucraniano – homens entre os 18 e os 60 anos estão proibidos de deixar a Ucrânia. Mas se pudesse, também “não estaria interessado nisso”, afirma o técnico de som. “O meu pai diz que não quer deixar o seu país, que a Ucrânia precisa dele. Ele está muito motivado e a ver que o povo está otimista, apesar de ter medo que a Rússia envie mais reforços”. Alguns dos amigos de escola de Maksym também “já fugiram da capital”, Kiev, onde viviam, rumo às suas cidades de estavam a demorar sete horas para fazerem uma viagem de 100 quilómetros”.

 

Maksym vê como “muito positivo” as sanções económicas que os países ocidentais vão impondo à Rússia, nomeadamente, a exclusão de alguns bancos do sistema de transferências monetárias Swift. Sanções essas que já começam a ter efeito, salienta. “O rublo, a moeda russa, está a desvalorizar com grande rapidez”. Veria também com bons olhos o encerramento do espaço aéreo aos aviões russos, um pedido feito pelo presidente ucraniano aos Estados Unidos e à Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), mas que acabou por não ser aceite.

 

Com a “vida toda orientada em Beja”, o futuro do técnico de som não passará por regressar ao país de origem. Aliás, ao contrário “de quem imigra para ganhar algum dinheiro e depois voltar”, a sua intenção sempre foi ficar em solo alentejano. Já não vai à Ucrânia desde 2011, “porque não calhou”. A “minha mãe é que todos os anos visita a família” que reside em Khmelnitsky, cidade localizada na região central do país e onde “ainda não há movimentações de guerra”, diz.

 

A esperança de Maksym é que o conflito termine o mais rapidamente possível e que até lá “não desfaçam” o país.

 

MANTER A UCRÂNIA “INDEPENDENTE”

O maior receio de Mariya Stefanysnyn é que a terra natal que deixou há duas décadas rumo a Portugal, a Beja, onde trabalha numa imobiliária, “deixe de existir enquanto país independente”, “inteira”, com “nome, língua e cultura” próprios.

 

Os ucranianos já escolheram o seu “destino” no referendo realizado em 1991, após a dissolução da União Soviética, lembra. “Temos o nosso objetivo, manter o país independente, foi aquilo que escolhemos. Mesmo que estejamos mal, mesmo que passemos fome, foi o que escolhemos, somos nós”, reforça, ao mesmo tempo que acusa o presidente da Rússia de querer erguer um “império” assente “no sangue derramado” de pessoas inocentes, de “mentir” e de alterar “a história”. “O que se está a passar é insuportável, não é justo, estou revoltada, triste”. Apesar dos mais de 3000 quilómetros que a separam do seu país de origem, uma parte da Ucrânia “estará sempre presente em Portugal”, garante.

 

Em pleno século XXI, e depois da experiência com a anexação da Crimeia, Mariya nunca pensou que Vladimir Putin pudesse invadir a Ucrânia. “Pensei que com diplomacia, com civismo, se encontrassem alternativas. Mas o que ele está a dizer é que a Ucrânia é dele e que quer construir outra vez a União Soviética”. Um cenário impensável, afirma, lembrando os tempos em que a Ucrânia integrava a União Soviética. “Havia imensas regras e em primeiro lugar tínhamos de saber a língua russa, em segundo é que vinha a nossa língua”.

 

Mariya nasceu há 47 anos na cidade de Kolomyya, na região de Ivano-Frankivsk, perto da Polónia e a cerca de 600 quilómetros da capital. Embora seja uma “zona mais calma”, já viu a sua base aérea ser “bombardeada” nos primeiros dias de conflito.

 

Pelos contactos que vai mantendo diariamente com os tios, primos e sobrinhas por videochamada, sabe que “as pessoas estão de malas preparadas, com bens essenciais, como roupa, água e velas, se faltar a eletricidade”, prontas a deixar a cidade, caso seja necessário. Mas há também quem recuse fazê-lo. “Dizem que é a sua terra, que não vão deixar a sua casa, querem ficar até ao fim”. Se a mãe fosse viva, “garantidamente que já estaria na Ucrânia”, ao seu lado, “mesmo com tudo o que se está a passar”.

 

Embora não saiba se um dia regressará definitivamente à terra natal, “porque a vida dá muitas voltas”, confessa que não consegue conceber uma Ucrânia “em ruínas”, sem ser “inteira”, com o “céu sempre azul e os campos com o trigo e os girassóis, em tons de amarelo, as duas cores da nossa bandeira”.

 

Mariya deixa bem claro, no entanto, que não tem nada “contra os russos”, que o único culpado por toda a situação que se vive é o presidente, “o mandante”, e cujos próximos passos “são sempre imprevisíveis”.

 

 Impedida de viajar nos últimos dois anos devido à covid-19, tinha intenção de visitar os familiares no próximo verão. Agora não sabe quando o poderá fazer.

 

“POVO UCRANIANO QUER AJUDA DA NATO”

É com um imenso orgulho que Maryna Pukayevych, de 41 anos, assistente operacional do Centro de Saúde de Beja, cidade onde chegou há duas décadas, vê os muitos conterrâneos, “homens e mulheres, em filas”, nos postos onde são distribuídos armas e munições, voluntariando-se para “irem para a guerra, deixando as suas famílias”. Uma guerra que nunca pensou “que pudesse acontecer”. “Ouvíamos as ameaças, mas pensávamos, no fundo, que o presidente russo não seria capaz” de invadir a Ucrânia, reforça.

 

Custa-lhe a acreditar que “dois países irmãos” estejam em conflito, que “as coisas poderão acabar muito mal, que ainda vão pior”, que “tanto morram ucranianos como russos”. Maryna frisa “que se sabe que quem invadiu a Ucrânia não foi o povo russo, mas sim o presidente” e que tem a certeza de que “os russos também estão contra” a ofensiva militar.

 

A mãe vive na cidade de Odessa, mais a sul do país, na costa, uma das zonas atingidas pelos mísseis russos no primeiro dia da invasão da Ucrânia. O irmão e os sobrinhos numa aldeia nos arredores. Tem estado em contacto permanente com eles. O seu receio é que um dia não atendam as chamadas. “Até podem estar bem, mas o facto de não poder falar com eles vai-me deixar em pânico, sem saber o que é que se passa”.

 

Maryna considera que Vladimir Putin “está preparado há muito tempo” para “as sanções já impostas e para outras que poderão vir a ser tomadas”, pelo que sublinha que “o povo” ucraniano, a população civil, quer é que a NATO “ajude a Ucrânia a combater a Rússia”, porque está convencido de que o presidente russo “não vai ficar por aqui”.

 

Por isso é que países vizinhos, “como a Polónia e a Eslováquia, entre outros, estão a tentar ajudar- nos o mais possível porque sabem que se ele invadiu a Ucrânia, vai querer invadir mais países”, afirma.

 

O “pior que poderá acontecer será precisamente isso: que a Ucrânia seja só o início”, considera, por sua vez, Mariia Danchuk, de 19 anos, que reside em Garvão, Ourique, desde 2013, onde chegou acompanhada pela mãe.

 

Os últimos dias, desde que teve início o conflito, têm sido “complicados”, admite a jovem estudante. Com acesso a tanta informação, quer seja através dos canais de televisão ucranianos, quer das redes sociais, é impossível não “estar sempre atenta às notícias”. E é com angústia que vê “morrer, para além dos militares, civis, pessoas inocentes, pessoas que estão a fugir, a tentar sobreviver”. E lamenta todas as informações falsas que vão circulando e que dão conta “de que os ucrani anos odeiam o povo russo”, o que é “completamente mentira”.

 

O pai de Mariia também vive na região de Lviv, mas até ao início da semana passada ainda não tinha conseguido contactá-lo. “Está numa zona em que não tem Internet, por isso não sei o que está a acontecer”, lamenta. De momento mantém contacto regular com uma prima, médica, “com um filho pequeno”, que “recebeu uma carta” a mobilizá-la “para a guerra, caso seja preciso”. “É a única a cuidar do filho pequeno, como é que vai para a guerra? O que é que vai acontecer a essa criança”, questiona. Também tem falado com os tios, que “conseguiram sair para a Polónia” antes do início da ofensiva militar, mas o primo, de 22 anos, filho do casal, permanece na Ucrânia, em Chortkiv, a cerca de 200 quilómetros de Lviv, impedido de sair por causa da lei marcial. E já falou com o avô materno, que vive na região de Sumy, na fronteira norte da Ucrânia e próxima de Kharkiv (a segunda maior cidade do país), e que também já foi alvo de ataques. “O que ele diz é que não podem sair de casa e que só têm água e pão que lhes levam. Uma família ao lado deles saiu e foram todos mortos pelos militares russos”, conta.

 

Perante um cenário que piora a cada dia, a jovem admite que a esperança que tinha nos primeiros dias, de que o presidente Vladimir Putin pudesse recuar, vai-se desvanecendo, ainda mais “quando manda prender os próprios russos” que protestam contra a ofensiva militar.

 

“Não sabemos o que vai acontecer, de um momento para o outro pode perder-se tudo. Tudo o que a Ucrânia tinha de bom, a sua paisagem, está a ser destruído”, frisa, defendendo que “este é um momento em que o povo não deve ter nacionalidades”, em “que todos os países se deveriam aliar contra” o presidente russo.

 

Prestes a terminar o 12.º ano de escolaridade, planeava com a mãe fazer uma visita, no verão, ao seu país de origem, onde ainda não regressou desde que está em Portugal. Agora não sabe quando é que poderá “rever os familiares”.

 

Terminada a ofensiva, Mariia acredita que “será o início de uma nova fase, de sucesso”, para a Ucrânia, “porque o mundo, finalmente, viu o povo que somos e a política que temos”. E conclui: “A lealdade à pátria, a coragem e a força do povo ucraniano, assim como a sua bandeira” ficarão, para sempre, na memória.

 

RECOLHA DE BENS PARA A UCRÂNIA

A igreja do Carmo, em Beja (entre as 8:00 e as 9:00 horas), e o cartório paroquial (das 17:00 às 19:30 horas) estão a recolher bens destinados a ajudar o povo ucraniano. Os interessados poderão entregar roupas (se possível separadas por género e tamanho em caixas identificadas), medicamentos, kits de primeiros socorros, produtos de higiene e alimentos (não perecíveis).

Comentários