Diário do Alentejo

Deolinda Tavares garante que “todos temos um papel no museu”

09 de fevereiro 2022 - 14:35
Foto | José SerranoFoto | José Serrano

Deolinda Tavares, 69 anos, licenciada em conservação e restauro, mestre em recuperação de património arquitetónico e paisagístico, é, desde 1 de janeiro, a nova diretora do Museu Rainha D. Leonor, um espaço que deve ser “aberto à comunidade”.

 

Texto Marco Monteiro Cândido

 

Quem entre no museu, por estes dias, apercebe-se que o momento é de mudança. Mudança, pelas caixas e caixotes espalhados, pelas peças que ocupam os espaços. Mudança, pelas obras que começarão em breve. Mudança, pelo assumir de funções da nova diretora. Mas, é, também, um momento de renovado acreditar no futuro, onde a sombra dará espaço à luz.

 

Foi nomeada diretora do museu no dia 1 de Janeiro. Como é que foi todo este processo?

Depois de muitos atrasos e na sequência de um processo que tinha culminado na publicação de uma lei nova sobre o funcionamento dos museus, na qual estabelecia que todos iam ser objeto de concursos para direção. Toda a forma de escolha de diretores era um pouco alterada e, ainda por cima, essa lei determinava que este mesmo museu passava da tutela da CIMBAL para a Direção Regional de Cultura do Alentejo (DRCA). Portanto, na sequência e no cumprimento dessa lei, e da passagem que aconteceu uns meses depois por um auto de transferência, a DRCA tinha que preparar um concurso internacional para selecionar um diretor para o museu, numa comissão de serviço de três anos. Esse concurso foi lançado no verão de 2020, foi demorando um pouco e acabou por ter conclusão, simplesmente, agora no final do ano. O despacho de nomeação da diretora regional é do final do mês de dezembro e eu estou em funções desde o dia 1 de janeiro.

 

Mas, antes, já estava aqui no museu…

Eu já estava aqui porque esta transferência da tutela aconteceu no final de 2019. Começou a ser preparada bastante antes. Já em 2016, ainda, o então presidente da câmara de Beja pediu apoio à direção regional para tentar melhorar as condições do museu, através do ministério da Cultura. Isso aconteceu, também com o apoio mecenático da Fundação Millennium, e, nessa altura, a direção regional, que me nomeou como técnica destacada para este assunto, preparou algumas intervenções pontuais em peças icónicas do museu. Para ser um pouco uma marca, o início de uma nova época para o museu, em que se começasse a valorizar este património para melhorar a sua situação de conservação. Portanto, em 2016 fez-se esse protocolo entre a CIMBAL, a DRCA e as universidades de Coimbra e Évora, para essa primeira intervenção de algumas peças, comigo a acompanhar esse processo. Entretanto, com a saída da lei, em 2019, concretizou- se aquilo que já estava em preparação e que já estava a ser trabalhado desde essa altura. Ao longo de todo esse tempo, fui fazendo essa ligação, esse percurso de, por um lado, tentar ajudar a melhorar as condições, a criar melhores meios de trabalho, ajudar a organizar um pouco as coleções e o espaço expositivo; mas também o outro trabalho mais sistemático, mais organizativo do ponto de vista burocrático, de preparação da documentação toda para uma posterior passagem do museu para a tutela da direção regional.

 

E como tem sido este percurso?

Temos tentado promover processos de investigação, promover trabalhos de articulação com outras entidades, organizar iniciativas do ponto de vista da divulgação do museu e de outros conhecimentos associados. Criar parcerias com outras entidades, como as escolas da cidade que vêm aqui todos ao anos desenvolver alguns dos seus programas ao vivo. Porque, no fundo, há também aqui um património que funciona como recurso didático que é usado pelas escolas. Somos solicitados por diversos alunos do ensino superior que desenvolvem trabalhos com base em peças aqui do museu. Somos solicitados por outras entidades que queiram desenvolver alguma intervenção, alguma apresentação aqui. O museu tem estado sempre aberto a congressos, a conferências, a espetáculos de música, a trabalhos mais da área criativa, mais da área das ciências e das humanidades. Temos feito esse esforço, no sentido de abrir portas e convidar a comunidade próxima e distante, as várias comunidades, para sentir que o museu é de todos nós, que todos nós fazemos falta e todos nós participamos. É claro que a equipa interna tem responsabilidades acrescidas, seja na manutenção, na conservação e na mediação entre o público e as coleções, mas, na verdade, todos temos um papel no museu. E é essa mensagem que temos tentado passar desde essa altura.

 

Um aspeto curioso, que muito do espólio mostra, é, exatamente, a abertura à comunidade, o espaço que havia para o diálogo intercultural. Algo que, cada vez mais, assume especial preponderância…

Absolutamente. Já vem de épocas recuadas. No próprio acervo romano, que aqui temos, existe essa prova. Havia uma interligação entre as comunidades autóctones e as que vinham; um encontrar de formas de vida em comum. E isso mantém-se, mais tarde, onde as peças do núcleo visigótico são testemunho. Aí também há a prova de que as comunidades cristãs e muçulmanas conviviam perfeitamente e conseguiam viver em paz, com diferentes culturas e religiões. Aliás, as culturas diferentes cruzam-se sempre. E isso vai-se mantendo ao longo do tempo. A própria questão da criação do museu, que foi um manifesto muito interessante da comunidade, não toda, mas da comunidade mais erudita, mais informada da cidade, corresponde a mobilizações da comunidade de Beja, no sentido de proteger o seu património, valorizá-lo, mantendo-o por aqui, na sua área de influência, onde pertence. Por isso, sim, essa ideia de ligação à comunidade tem todas as vantagens: alerta-nos para a questão de sermos informados de forma correta, para não sermos persuadidos por ideias que estão agora a tentar ganhar terreno, ideias xenófobas, ideias que não têm sentido. Nós nunca fomos isso, não somos isso e o museu é uma prova de que assim é. É um espaço aberto a toda a gente para o vir comprovar.

 

O museu entrará, brevemente, em obras. Quais serão os próximos passos desta nova fase?

O próximo passo é tentar suster a degradação que está em curso e que é grave. Estamos com uma série de zonas do museu com o património em risco. A água está a entrar de uma forma que não conseguimos controlar, a não ser com obra. Estamos à espera de começar com a obra, cujo primeiro passo será, justamente, a colocação de uma cobertura por cima do telhado, que evite a entrada de água, que nos está a destruir a talha dourada da capela- mor e da igreja. Está a destruir-nos vitrinas que já tiveram que ser desativadas porque a água punha as peças em risco. Enfim, é uma situação, de facto, grave. A primeira preocupação é começar a suster esta situação quando a obra começar, sendo que é público que a mesma está suspensa à espera de uma decisão do tribunal administrativo e fiscal, já que houve uma contestação sobre a decisão do júri de adjudicação. A segunda preocupação, imediata também, é encontrar um espaço para back-office. Já estamos a tratar do processo de aluguer, aqui mesmo ao lado, na Rua dos Condes da Boavista. E esse espaço vai permitir criar um espaço de trabalho para onde teremos que deslocar, pontualmente, todos os gabinetes de pesquisa, da parte administrativa e uma parte pequena de reserva. Estamos a tentar encontrar mais espaços para reserva, uma vez que vamos fazer obra na Igreja de São Sebastião, que é a nossa reserva de arqueologia e que neste momento também está bastante degradada. Temos tido uma colaboração extraordinária por parte da diocese e da associação Portas do Território, mas precisamos de mais espaços de reserva para as obras poderem ir acontecendo.

 

Esta primeira fase das obras, no valor de 1,7 milhões de euros, contempla, concretamente, o quê?

Esta primeira fase vai durar 18 meses e é a fase da emergência: as coberturas, as janelas, portas, renovação da instalação elétrica, que está em risco grande e a construção de instalações sanitárias, porque não temos. Paralelamente, o museu vai continuar aberto, com limitações. Temos também a garantia, da empresa que está selecionada para fazer a obra, de trabalharmos o plano de obra em conjunto, para sabermos quais são as áreas que vamos poder manter abertas ao longo deste tempo. A nossa ideia é manter o museu aberto, ainda que parcialmente. E com atividades no exterior, noutros sítios. Inclusivamente, temos a ideia de conseguir espaços na cidade, em espaços públicos da cidade, para poder ter pequenas amostras. Uma espécie de chamada de atenção. A nossa ideia é ter esse programa de abertura e presença no espaço exterior público.

 

No âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), haverá uma segunda fase…

A segunda fase vai começar, não necessariamente, no final desta. Pode começar em simultâneo. Está prevista começar em 2023, com um valor de 2,6 milhões de euros. Essa fase vai melhorar as partes expositoras todas, mas também vai melhorar a utilização da parte exterior do claustro, que poderá ser também visitável e que, neste momento, não o é. Contempla a parte das coberturas do terraço e um acesso ao piso superior, um elevador. Depois há a instalação de wi-fi em todo o espaço, mas em termos de obra, será isto o principal. Em paralelo com a obra, o PRR dotou-nos com uma verba pequena, mas que vai servir para a fotografia de altíssima qualidade de peças, que servirá para divulgação, mas também para inventariação e registo. Sabemos que um dos problemas graves, quando há peças roubadas, é que muitas vezes não há um registo com suficiente detalhe e qualidade para se poder identificar a peça roubada. Isso é uma preocupação, é algo que já vamos fazendo, mas que vai ser feita de uma forma mais intensiva. Outra será a criação de modelos 3D que nos permitam, por exemplo, fazer simulação de observação de peças, quer à distância, quer ao vivo. Mas, para além disto, tivemos, há seis meses, uma proposta do Google para virem fazer uma recolha de imagens para integrar a Google Arts. Já em Fevereiro, vamos ter cá a equipa da Google Arts para fazer o registo de peças, com a pintura como prioridade. Para já, termos esse privilégio, a oportunidade de divulgação das peças numa plataforma internacional, é algo muito positivo. Paralelamente, há as atividades de intercâmbio: investigadores que vêm fazer estudos, onde nós podemos também beneficiar do estudo que eles fazem.

 

O museu está num bom caminho, para um futuro renovado?

Acho que sim, estamos no bom caminho. E o bom caminho começou logo a ser traçado na altura em que o ministério da Cultura assumiu a tutela, quando assumiu esse compromisso e reconheceu a sua importância. Agora, há uma conjugação interessante: começou a haver este apoio do ministério da Cultura, mas também o surgimento desta oportunidade do PRR, que não pode ser ignorada. Não nos podemos esquecer que esta primeira fase de financiamento foi muito difícil de obter. E surgiu porque a diretora-geral da cultura do Alentejo, Ana Paula Amendoeira, conseguiu encontrar esta parceria com a Câmara Municipal de Beja e com a associação Portas do Território. As coisas estão a deixar as sombras e a passar para a luz. E há que valorizar a equipa que está aqui dentro do museu, de um empenho e dedicação inquestionáveis. Esta equipa precisa de ser valorizada e reconhecida, mas também reforçada, com a vinda de jovens investigadores e com várias especializações. Há uma série de frentes que precisam de reforço de gente nova e qualificada, porque há muito trabalho a fazer. Até porque se falarmos do alargamento do museu no futuro, há todo um trabalho de preparação que tem que ser feito desde ontem. Há uma imensidão de trabalho a fazer.

 

MUSEU TEM QUE ASSUMIR O SEU PAPEL DE ÂNCORA

Para Deolinda Tavares, o investimento que se avizinha no Museu Rainha D. Leonor, terá que servir para abrir o espaço, cada vez mais, à comunidade, mas também, ajudá-lo a assumir o seu papel de referência.

“Este investimento vai trazer muita luz a um espaço que é muito luminoso, muito mediterrânico e que dá imensa vontade de abrir. E não tenho a mínima dúvida de que, quando ele for aberto nas condições que estamos a tentar conseguir com as obras, será um espaço muitíssimo convidativo e luminoso, ao contrário do que é agora. Mas estas obras apenas vão incidir no espaço que existe. Este museu tem que mostrar tudo aquilo que vale a pena mostrar; ter espaços onde as pessoas possam vir e trabalhar; ter espaços para serviços educativos, para as escolas, mas não só; ter espaços onde as pessoas possam estar e sentir que é a casa de todos; ou seja, o museu, no futuro, terá que ter mais espaço. O museu tem que ser isso tudo. E tem que ter um laboratório de conservação preventiva, de “primeiros socorros”. E de formação, apoio técnico, a outros museus da região ou outras entidades proprietárias de património. Tem que ter esse papel de museu-âncora.”

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