Diário do Alentejo

“A minha preocupação é a partilha do que vou vendo”

23 de dezembro 2021 - 09:40
Foto | WildscapeFoto | Wildscape

Diniz Cortes divide a sua paixão pela saúde com o seu amor pelo ambiente. Licenciou-se em medicina e terapia familiar. Com 66 anos é assessor na área de natureza e biodiversidade da Wildscape, uma empresa baixo-alentejana “de intervenção e caracterização de espaços naturais”.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

Como é que um ambientalista se torna um médico?

E diz muito bem…a preocupação ambiental vem desde pequeno com uma irreprimível vontade de contacto com a natureza, o rio, as florestas, os bichos… os primeiros livros que tive (e ainda conservo alguns, dos anos 60, teria eu sete ou oito anos) eram sobre rochas e minerais, planetas, insetos e aves, da coleção Verbo Juvenil. E eu lia e relia esses livros da mesma forma que hoje consulto os meus guias de natureza. A medicina vem por complemento e consolidação de conhecimento mais “centrada” no ‘homo sapiens’, isto é, em nós humanos. Sempre vi a medicina em geral como o expoente máximo do conhecimento da espécie humana e do seu funcionamento, bem como da sua resposta ao ambiente, seja a fatores negativos como agressões ambientais, doenças ou desconforto, ou positivas como a socialização, os afetos, a saúde plena ou o conforto. A medicina familiar como estudo e intervenção no contexto relacional desse mesmo ser humano, portanto o meu percurso foi, efetivamente, de ambientalista para médico.

 

E assim sendo, qual é a relação entre a medicina e o ambiente?

A relação é absoluta! O ambiente, que pode ser descrito de várias formas e contextualizado em diferentes perspetivas (salubridade geral, qualidade do ar, biodiversidade, espaços habitáveis, espaços ao ar livre, etc.) está em relação direta com a nossa capacidade vital e com a nossa felicidade…é fundamentalmente a busca da “felicidade” que move o ser humano e um ambiente equilibrado e salubre é um fator determinante para essa felicidade.

 

Queria questioná-lo também, uma vez que está ligado a estas duas áreas, se o preocupa o que está por vir face às alterações climáticas e ao caminho incerto que o mundo está a levar?

As alterações climáticas são fundamentalmente cinco: diminuição da precipitação anual, concentração da precipitação com grandes volumes em períodos curtos, aumento da temperatura global, aumento das condições propícias a secas intensas e prolongadas e aumento da duração e frequência das ondas de calor. Mas existe uma sexta, que geralmente não é muito referida, que é o aumento gradual de partículas em suspensão na atmosfera, o que tem um impacto imediato nas doenças respiratórias, como por exemplo a asma brônquica e as alergias em geral. Estas seis alterações climática segmentares, individual ou coletivamente consideradas, têm e irão ter no futuro, seguramente, um imenso impacto na vida das pessoas.

 

Disse que “sendo médico era médico de toda a Humanidade", mantêm esta filosofia?

Não só mantenho como reforcei, ao longo do tempo, esse conceito. Quando se é médico exerce-se a nível local/territorial digamos, mas pensa-se a nível global (da humanidade), como nas grandes lutas pelo ambiente.

 

Fundou no início dos anos 80 o Núcleo Regional de Beja e Évora da Quercus. Que motivações e objetivos o fizeram entrar nessa experiência?

O Núcleo Regional de Beja e Évora da Quercus foi, efetivamente, fundado por mim e mais algumas pessoas por volta do ano de 1980. De início não havia propriamente uma sede, só algum tempo mais tarde nos foi cedido um espaço na Praça da República, pela autarquia. Éramos um grupo de pessoas que promovia sessões de educação ambiental, saídas de campo para observação de aves e de plantas… uns anos mais tarde, com a chegada a Beja do José Paulo Martins, curiosamente médico também, é que o núcleo foi efetivamente reforçado e estruturado, crescendo e consolidando formas de intervenção e responsabilidades a nível do todo nacional da associação. As motivações e os objetivos eram fundamentalmente dar a conhecer o património natural do Alentejo, mas também a promoção da defesa sustentada desse património.

 

Atualmente, a que projeto e associações a nível ambiental está ligado?

Neste momento estou ligado a várias associações como a Sociedade Portuguesa de Botânica, a Associação Orquídeas Silvestres de Portugal, a ZERO, a Quercus, a Associação Transumância e Natureza Faia Brava (Figueira de Castelo Rodrigo), a Sociedade Portuguesa para o Estuda das Aves e o Centro de Conservação das Borboletas de Portugal (Tagis). Acompanho também, mas sem ser associado, a Fapas – Associação Portuguesa para a Conservação da Biodiversidade e os primeiros passos de uma nova associação denominada IRIS. São projetos e associações de referência a nível nacional e internacional. Colaboro com inúmeros ‘websites’ especialmente nas áreas da entomologia, astronomia, arqueologia, ornitologia e botânica.

 

E para o futuro, que projetos quer dar a conhecer? Por exemplo, o retorno da sua página de fotografia Birding Alentejo, no Facebook?

Ah …essa página foi criada já há alguns anos, mas entretanto, iniciei uma atividade um pouco diferente, dado que tenho colaborado como assessor na área de natureza e biodiversidade com a Wildscape.pt, uma empresa baixo-alentejana de intervenção e caracterização de espaços naturais, também como fotógrafo profissional e guia de ‘birdwatching’. Onde temos como clientes principais alguns parques naturais, comunidades intermunicipais, câmaras e Juntas de Freguesia um pouco por todo o País, para lá de alguns privados. Temos igualmente uma área editorial tendo já produzido um guia de aves (“Guia das Aves do Concelho de Vila do Bispo e Promontório de Sagres”) e estando a elaborar o “Guia de Aves para o Parque Natural Regional do Vale do Tua”, para lá de exposições e outro material informativo como folhetos, fotografias e vídeos de natureza

 

De entre os prémios de reconhecimento que já recebeu na área da conservação ambiental e animal, como o prémio carreira, atribuído pela Fapas e pela Câmara de Castelo de Vide, qual ou quais destacaria?

Esse prémio foi efetivamente o mais importante e veio reconhecer o meu trabalho ao longo de muitos anos na formação, promoção e acompanhamento de muitos fotógrafos de natureza. Alguns são profissionais de gabarito e andaram comigo pelo território nacional, de Montesinho a Sagres, apuraram técnicas e aprenderam a “leitura” da envolvente e as regras de ouro da fotografia de natureza – como não perturbar crias ou respeitar locais de nidificação sensíveis…

 

Agora que refere outra das suas paixões, a fotografia, quando é que surge este seu gosto? Principalmente pela fotografia documental de animais e do seu ‘habitat’?

O gosto pela fotografia aparece fundamentalmente a partir de 1980. Coincide com o meu primeiro ano de atividade profissional, em Beja. Não resistia aos amplos espaços abertos e às zonas mais recônditas e pouco frequentadas pelas pessoas. Os amplos horizontes, os montados e as zonas declivosas das margens dos rios e ribeiras eram o meu mundo paralelo…

 

Se lhe pedisse para enumerar as três principais características que um fotógrafo de natureza deveria ter, quais mencionava?

É uma pergunta difícil pois geralmente precisa de ter várias características, mas o conhecimento perfeito da “envolvente” e dos motivos a fotografar, o “olhar”, ou a “leitura” dessa envolvente, e o conhecimento técnico do equipamento e da edição de imagem são características importantes.

 

Face a estas suas atividades, é conhecedor de inúmeros observatórios de aves do Baixo Alentejo, quais considera mais ricos e importantes?

Os locais mais favoráveis são sempre os que mantêm as características de equilíbrio ecológico para as diversas espécies de aves. O Baixo Alentejo mantém alguns desses espaços, nomeadamente a zona de estepe cerealífera de Castro Verde, que constitui um excelente exemplo da interação entre o Homem e a natureza, dado que a estepe cerealífera é um ecossistema cultivado; e os montados da Margem Esquerda do Guadiana, nomeadamente a zona Moura-Barrancos, mas quem quiser ver espécies icónicas pode percorrer outros itinerários e ser bem-sucedido.

 

E para conviver de perto com a natureza e o mundo animal?

Depende do que se quer observar … mas em geral, e no que concerne a aves, o concelho de Mértola, e especialmente a área confinante com o de Castro Verde, são ideais para [observar] grandes aves rapinas como a águia-real ou a águia-imperial e outras. Num dia de observação podemos ver 10 ou 12 espécies diferentes de [aves de] rapina, incluindo grandes necrófagos como o grifo ou o abutre-preto. Também em Castro Verde, as abetardas e cortiçóis se podem observar. Os concelhos de Ferreira do Alentejo e de Alvito, em especial a Lagoa dos Patos, situada na intersecção dos dois concelhos, constitui uma “paragem” obrigatória para os ornitólogos nacionais e estrangeiros. As aves aquáticas e limícolas em geral adoram a envolvente e podem ser observadas várias dezenas de espécies numa só manhã. Aqui mais perto [de Beja], as barragens de Cinco Réis e do Pisão são bons ‘spots’ para uma escapadinha de manhã. A de Cinco Reis está devidamente equipada com dois observatórios e sinalética adequada para umas boas horas de observação. Costumo aí observar, de inverno, a águia-pesqueira, o lindíssimo caimão e garças diversas, para lá de um bom lote de passeriformes interessantes como o pisco-de-peito-azul e mesmo escrevedeira-dos-caniços, esta última mais raramente.

 

Por fim, como se descreveria?

É como se tivesse sido bem treinado e fosse pilotando, em direção ao infinito, a minha própria nave espacial, mas sempre com a consciência de que essa viagem pelo espaço-tempo não tem regresso. A minha preocupação principal é a interpretação e a partilha do que vou vendo e sentindo…o meu único receio é que me falte precocemente o combustível…

Comentários