Diário do Alentejo

"Não há capacidade de resposta para os migrantes"

10 de dezembro 2021 - 15:50

Isaurindo Oliveira foi reconduzido no cargo de presidente da direção da Cáritas Diocesana de Beja. Engenheiro de formação e consultor na área do regadio, Isaurindo Oliveira fala-nos da instituição, dos problemas sociais existentes no território e da sua experiência à frente do órgão social da organização humanitária da Igreja Católica, que diz o ter transformado profundamente. Nos próximos quatro anos, até 2025, quer dar continuidade ao trabalho desenvolvido até aqui, continuar a identificar os problemas existentes na região e otimizar as respostas, com ações e programas “no sentido da dignificação da pessoa humana”.

 

Texto Júlia Serrão

 

Acaba de tomar posse para mais um mandato à frente da Cáritas Diocesana de Beja. Como é que está a viver a recondução no cargo de presidente da delegação de esta organização humanitária?

Com a mesma normalidade que estava há quatro ou cinco meses, quando estava convencido de que o meu contributo para esta ação voluntária e humanitária estava a terminar. A recondução apenas reequacionou a minha atividade. É como se o avião, que se aproximava da pista para aterrar, tivesse abortado a aterragem e acelerasse os motores para se reposicionar na normalidade anterior. A decisão de sair, apesar de estar tomada há muito, não diminuiu o empenho que foi colocado desde o início do mandato, em 2017, pelo que houve apenas necessidade de reequacionar a estratégia seguida até aqui, tendo por base a experiência adquirida, as necessidades sentidas no território, e as oportunidades que surgem em cada dia.

 

Que balanço faz do último mandato que, por causa da pandemia, deve ter sido ainda mais desafiante?

É um balanço extremamente positivo. Sendo eu um homem mais virado para a área das ciências, para assuntos mais exatos, a experiência nesta área é extraordinariamente enriquecedora e modificadora. Estes quatro anos de trabalho no seio de uma equipa extremamente competente e motivada, em constante contacto direto ou indireto com pessoas vulneráveis, em sofrimento físico, psíquico e/ou psicológico, modificaram a forma como passei a olhar para o outro, que se cruza comigo todos os dias. A maior parte das vezes, eu não os via. Ou fingia não ver. Esta experiência fez de mim alguém muito diferente. Hoje, quando olho para aquele que se cruza comigo na Cáritas, ou na rua, ele passou a ter um rosto. Passei a tentar perceber os seus comportamentos e, sobretudo, como é que nós, a desempenhar qualquer função – e muito mais nesta instituição – podemos agir no sentido da dignificação da pessoa humana.

 

E no dia-a-dia, na Cáritas?

A pandemia não provocou grandes alterações no funcionamento da Cáritas Diocesana de Beja. Talvez até possa dizer que ajudou a repensar modos de agir, de encontrar novos caminhos, que ajudaram a vencer as restrições surgidas, no sentido de que aqueles que precisavam de ajuda pudessem continuar a ter acesso à instituição. Aliás, ela veio mesmo abrir novas oportunidades de ajuda que estavam latentes e que puderam ser espoletadas. É evidente que, por outro lado, veio criar e continua a criar desafios que, enquanto não se encontram respostas, provocam restrições e preocupações. Mas o tempo vem-nos mostrando que, com “o espírito” Cáritas, com maior ou menor dificuldade, se vão encontrando soluções. 

 

A GNR sinalizou 3411 idosos do distrito de Beja a viver sozinhos e ou isolados. Este é dos problemas maiores da região? A Cáritas tem algum programa de apoio à população nestas circunstâncias?

Sim, sem dúvida. A nossa sede está situada em Beja, onde o índice de envelhecimento tem vindo a aumentar significativamente: em 2001 situava-se nos 139,5 por cento e em 2019 nos 148,6 por cento, de acordo com dados da Pordata. O isolamento dos mais idosos é uma das nossas principais preocupações. A Cáritas Diocesana de Beja dispõe de um Serviço de Apoio Domiciliário desde 2008, com capacidade para acompanhar e cuidar de 65 idosos mais vulneráveis no concelho de Beja, com recursos financeiros limitados, dependência física e / ou social e/ou que não têm uma rede de apoio relacional. Mas, a verdade é que a pandemia veio agudizar a situação de isolamento da população idosa. Se a falta de serviços para acolher os idosos é uma realidade num território como o nosso, e se a intervenção passa para que o idoso permaneça no seu ambiente o maior tempo possível, os serviços de proximidade tornam-se cada vez mais necessários, desde cuidados e serviços prestados no domicílio a casas assistidas. Tem sido sempre a partir da opção preferencial pelos mais vulneráveis, que consideramos imprescindível integrar, como princípio em todo este trabalho no campo da velhice, a tendência para um modelo que incentive a participação, a convivência, a independência, a autorrealização, a autonomia e o empoderamento de capacidades, a fim de que as pessoas atendidas tenham uma velhice digna. Os idosos, pelos riscos que lhes são inerentes, são uma população em que muito se reforça a importância destas medidas de prevenção à covivid-19, sendo que perante o confinamento a que estão mais sujeitos levantaram-se várias preocupações e questões, na nossa atuação.

 

Tais como?

Perguntando: Estará o distanciamento físico a transformar-se em isolamento social, particularmente nos idosos? Quais serão as consequências, a curto e longo prazo, deste distanciamento/isolamento social? Que medidas podemos tomar para minorar as consequências do isolamento social nos idosos? Para dar resposta a estas e outras questões, construímos o projeto “HumanaMente @ctivos” no âmbito do programa Cuida, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, que envolveu 33 pessoas idosas isoladas ou com pouco suporte familiar do concelho de Beja, das quais duas da Associação Além Memória e duas do Centro de Dia do Lidador da Câmara Municipal de Beja. Procuramos levar nestes dois anos uma equipa multidisciplinar ao domicílio de cada idoso – com cerca de 1000 visitas domiciliárias – com uma palavra amiga de conforto e segurança, bem como cerca de 600 sessões de terapia que permitiram prevenir demências, ocupar o tempo de ócio e promover o envelhecimento ativo. Para o efeito capacitamos todos os idosos (33) no uso de ‘tablets’ e no acesso a novas formas de comunicação digital, estimulando a prática do voluntariado à distância, com a participação da Cristina Taquelim, Jorge Serafim, como mediadores de leitura, e de um músico de Cante Alentejano, que realizaram várias sessões com os idosos a partir de casa e através da internet. Com isto, o que pretendo dizer é que são as boas práticas que devem ser replicadas e estimuladas, que o projeto HumanaMente @ctivos – que permitiu ao longo de dois anos capacitar, envolver, aproximar, esbater distâncias e mitigar as consequências do isolamento –, que vê agora o fim do apoio financeiro, deveria ser não só apoiado como replicado por outras entidades que estão no nosso território, de forma a minorar o isolamento dos idosos. 

 

No início do ano dizia, numa entrevista, que existia “uma certa passividade” relativamente à situação dos migrantes, denunciando tráfico humano e exploração laboral no setor agrícola. Chegaram-lhe pedidos de apoio destas comunidades? Como ajudaram?

Eu não sei se se trata de um problema de passividade. O que se trata é de um problema extremamente complexo, que teve um incremento muito rápido que não estava (não foi) previsto, e, a par do qual, em muitas situações, penso que não há capacidade de resposta. Esta falta de capacidade de resposta dá origem ao aparecimento de “esquemas” para os contornar que, embora permitam colmatar a necessidade da mão-de-obra, vão potenciar o aparecimento de novos e maiores problemas. A perceção para os problemas com que os migrantes se confrontam levou à criação do Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes no seio da Cáritas Diocesana de Beja, há três anos. Este centro – itinerante nos concelhos de Beja, Aljustrel, Ferreira do Alentejo, Cuba Alvito e Vidigueira – ajuda os migrantes nos aspetos da sua regularização, nos aspetos de ordem social que possam estar associados e na mediação com os diversos serviços oficiais com os quais os mesmos têm que interagir. É uma valência resultante de uma parceria estabelecida com o Alto Comissariado para as Migrações (ACM) e o Fundo para o Asilo, Migração e Integração (FAMI).

 

Que outros problemas sociais grassam o território?

Os problemas que nos chegam estão sobretudo relacionados com o isolamento social dos idosos, carência económica de famílias empregadas mas com baixos recursos económicos, situações de pessoas e famílias em situação de pobreza e vulnerabilidade, algumas destas com problemas ao nível da saúde mental e dependências.

 

Há problemas específicos em cada concelho do distrito de Beja, ou os problemas sociais são transversais aos grupos sociais mais desfavorecidos, independentemente do local onde vivem?

Poder-se-á dizer que os problemas sociais não são muito diferentes de umas zonas para outras. Possivelmente o principal problema é, muitas vezes, não serem conhecidos e, consequentemente, não terem acesso a respostas e medidas que ajudem a mitigar ou minorar os efeitos. Contudo, procuramos, através da rede de Cáritas Paroquiais/Grupos Paroquiais de Ação Social existentes em muitas das 117 paróquias da diocese, identificar muitos dos problemas existentes neste vasto território, e, em rede, articular para uma intervenção que ajude as pessoas.

 

Como é que a Cáritas tem vindo a dar resposta? Que programas e ações estão neste momento em curso para resolver ou minimizar problemas sinalizados?

Pelas razões referidas, a Cáritas Diocesana de Beja não dispõe de serviços descentralizados na diocese. Contudo, a pastoral socio-caritativa da mesma está assente num conjunto de Cáritas Paroquiais/Grupos Paroquiais de Ação Social a que se juntam as Conferências de S. Vicente de Paulo que, sob a égide de cada pároco, vão tentando, de uma forma independente e autónoma, responder aos problemas sociais das suas comunidades.

 

A Cáritas conta com apoios de ordem financeira ou outros, de outras organizações e ou associações da sociedade civil? Tem parcerias fixas?

Conta apenas com os financiamentos inerentes às entidades públicas da Segurança Social, Ministério da Saúde, programas operacionais, ou entidades privadas como a Fundação Calouste Gulbenkian, ou a LaCaixa, com as quais foram estabelecidos protocolos ou adjudicados projetos. Mas as parcerias são sempre de natureza temporária, uma vez que estão relacionadas com os projetos/protocolos que são estabelecidos, os quais têm uma duração limitada, sem prejuízo das possibilidades dos seus alargamentos em função da renovação dos mesmos. No sentido de melhorar a sustentabilidade da Cáritas Diocesana de Beja, de poder alargar a cooperação com outras instituições da diocese, a nova direção tem, entre os seus membros, um empresário agrícola cuja tarefa será a de tentar estabelecer e reforçar a ligação entre o tecido empresarial do território e a instituição. No que respeita a verbas que ajudem a minorar as situações de carência económica de famílias empregadas mas com baixos recursos económicos, situações de pessoas e famílias em situação de pobreza e vulnerabilidade, algumas destas com problemas ao nível da saúde mental e dependências, dispomos de um fundo social de emergência diocesana que possibilita o pagamento de várias despesas relacionadas com a medicação, consultas, pagamentos de renda, gás, agua, eletricidade e cuidados materno-infantis, entre outras, e cujo contributo pode ser feito por qualquer pessoa ou entidade.

 

Quais as prioridades para os próximos tempos?

Vão ter início três atividades novas, que complementarão outras existentes. Até ao fim deste ano iremos arrancar com um projeto de dois anos para pessoas em situação de sem-abrigo, que terá como ‘slogan’ “Estou tão perto que não me vês”, e que será integrado na Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo. Com ele pretende-se realizar uma abordagem integrada para a inclusão ativa baseada nas premissas da experimentação social e animação territorial envolvendo uma rede de parceria proativa para a integração deste público-alvo. Nos primeiros meses de 2022, pretendemos concretizar a instalação de um Centro de Alojamento de Emergência Social para alojamento de emergência social de curta duração de 25 a 30 pessoas em situação de sem abrigo. E, ao longo do ano, queremos ainda concretizar um projeto de apoio à integração de reclusos que, em situação de sem teto ou casa, possam ter um acompanhamento nas suas saídas precárias. A par destas ações, que tentam ir cada vez mais ao encontro dos mais desfavorecidos, temos consciente que, possivelmente, nem sempre as nossas decisões correspondem às necessidades dos seus beneficiários, uma vez que, na maioria dos casos, eles não são ouvidos.

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