Diário do Alentejo

Ergueram-lhe uma estátua equestre em Beja!

06 de dezembro 2021 - 17:20

José d’Encarnação, arqueólogo

 

O letreiro que hoje nos ocupa constava já na relação de monumentos da coleção que o bispo de Beja, Frei Manuel do Cenáculo (1724-1814), nos deixou. Foi, segundo ele, encontrado, em 1778, “em umas casas sitas na praça” da cidade.

 

Herdou-o, digamos assim, D. António Xavier de Sousa Monteiro, que foi sagrado bispo a 25 de novembro de 1883. Era D. António zeloso da sua pastoral mas preocupou-se também com a preservação e estudo da documentação histórica. E é no quadro dessa preocupação histórico-monumental que deve entender-se a oferta ao Museu Regional de Beja dessa pedra que estaria, mui provavelmente, no paço episcopal.

 

No museu está, com o número de inventário B-118, e, na sequência do desenho que Frei Manuel do Cenáculo deixara e pelas informações que então circulavam, o seu texto acabou por ser várias vezes referido em coletâneas dos séculos XVIII e XIX, nomeadamente por Frei Vicente Salgado, num manuscrito de 1796 transmitido à Academia das Ciências de Lisboa, na “coleção dos monumentos romanos descobertos em Portugal”.

 

Trata-se de um grande bloco de mármore de Trigaches, paralelepipédico, de 85 cm de altura, 57 de largura e 160 de profundidade. A inscrição, que sofreu maus tratos nos ângulos superiores esquerdo e inferior direito, está numa das faces menores do bloco, inserida num retângulo moldurado de 39,5 cm de altura por 16,5 cm de largo.

 

O QUE DIZ O LETREIRO

Inscrito em latim, como era hábito, o letreiro apresenta-se em letras classificáveis como monumentais quadradas, de bom recorte, com alinhamento à esquerda, sentindo-se que terá havido o cuidado de marcar na pedra linhas auxiliares para que o texto saísse a preceito. Aliás, é de notar que o tamanho das letras não é uniforme, para se poder dar destaque, em módulo maior (seis e cinco centímetros), ao homenageado e aos seus títulos.

 

Traduzida para português, a inscrição reza o seguinte:

“A Gaio Júlio Pedão, filho de Gaio, da tribo Galéria, duúnviro, flâmine dos divinos, devido a ter administrado bem a república e ter auxiliado com dinheiro o aprovisionamento de víveres – a plebe, através de subscrição pública” (…)

 

Falta-nos a parte final, onde, naturalmente, estariam as siglas D · D, interpretáveis como D(ecreto) D(ecurionum) ou D(ono) D(edit). Era dispensável reforçar que se tratava de uma homenagem; importante, porém, do ponto de vista político-administrativo e de prestígio, era que tivesse havido uma intervenção direta dos decuriões, a assembleia de ilustres da colónia, dando e apoiando, por decreto, essa vontade popular.

 

O homenageado é um cidadão romano, inscrito na tribo Galéria, que César atribuíra à colónia. Tem três nomes, sendo os dois primeiros próprios de uma das famílias seguramente mais renomadas dos primeiros tempos da cidade, a família Júlia. Recorde-se que César foi Júlio e a cidade teve Pax Julia de seu nome. O seu nome próprio, Pedão, é de origem latina.

 

CARGOS QUE EXERCEU

Foi duúnviro, isto é, um dos dois magistrados escolhidos pelos decuriões para, durante um ano, estarem à frente dos destinos da colónia. O equivalente ao nosso presidente da câmara, enquanto a assembleia dos decuriões poderia corresponder à atual assembleia municipal. O nome ‘duúnviro’ significa que é um de dois, pois os romanos, para cargos deveras relevantes não escolhiam apenas uma pessoa mas duas, para o seu governo ser mais eficaz e não se corresse o risco de assumir laivos de autoritarismo.

 

Deve Gaio Júlio Pedão ter-se notabilizado no exercício desse cargo, porque o nomearam oficialmente como sacerdote do culto aos imperadores divinizados. Não era de então nem deixou de ser até aos dias de hoje esta simbiose entre o poder político e o poder religioso. Para lograr obediência maior, o primeiro imperador, Augusto, deixou que o considerassem um deus; os seus sucessores seguiram-lhe o caminho e alguns foram mesmo considerados ‘divos’ após a morte, grande seria a aura alcançada.

 

Gaio Júlio Pedão foi flâmine da colónia, presidia às cerimónias rituais de louvor ao imperador; neste caso, ter-se-á optado – quiçá por se estar em período propício a que rapidamente a um imperador outro sucedesse – por lhe dar um título plural: é “flâmine dos divinos”!

 

UM EXEMPLO!

Terá sido no exercício da sua magistratura que Pedão granjeou os favores do povo. Na verdade, na epígrafe vem claramente escrito o motivo pelo qual mereceu tal distinção: por ter administrado bem a república e por ter ajudado a anona com o seu dinheiro.

 

“República” tem aqui o significado de ‘res publica’, a coisa pública, o conjunto dos cidadãos, e não o sentido que hoje damos ao termo. Anona era o erário público. Estamos, pois, perante alguém que não hesitou, em tempo de carestia ou de apuros financeiros, em ter desembolsado do seu dinheiro para suprir o que estava em falta. Um exemplo!

 

Perguntar-se-á se se tratava de algo mais ou menos comum nesse século I da nossa era. Creio bem que não. Com efeito, gestos desta envergadura não poderiam passar despercebidos e mereciam relevo, como neste caso mereceu. Também pela mesma época, em Clúnia, uma cidade do centro da Hispânia (conserva na atualidade essa designação), os “amigos” de Lúcio Calvísio Agrícola, que foi magistrado e flâmine de Roma e do divino Augusto, forneceu trigo ao povo, no momento em que o erário estava em dificuldades.

 

Em Dénia (hoje município com o mesmo nome da província espanhola de Alicante), homenageou-se alguém, cujo nome desapareceu por fratura da pedra, que foi igualmente notável benfeitor dos Denienses, pois logrou abastecer de água salubre a cidade, trazendo-a, com elevado dispêndio financeiro, por sítios de mui difícil percurso, e ajudou os munícipes contribuindo com víveres para o erário, sem hesitação, no momento em que se passava por uma crise gravíssima.

 

E QUE MONUMENTO É ESSE?

Logo em 1984, quando pela primeira vez nos debruçámos com mais atenção sobre o monumento perguntámos: “Pedestal de estátua? São impressionantes as dimensões do monumento, sobretudo a sua espessura”. Estávamos a olhá-lo de frente, para a inscrição, e a espessura equivalia, portanto, à profundidade. Também Abel Viana achou estranha a forma do monumento: “Deve ter sido soco de grande monumento ou silhar de entrada de um pórtico”.

 

Cumpre dizer que, de facto, a inusitada forma do monumento não causou perplexidades, não levantou questões, até que, observando melhor, decidimos perguntar, em 2012: não será o pedestal de uma estátua equestre? A ideia foi germinando, sucederam-se acaloradas trocas de impressões e, hoje, a hipótese transformou-se em certeza: as singulares dimensões da pedra com a inscrição gravada no lado menor exigem essa classificação!

 

Pax julia ganha, assim, um relevo ainda maior do que as inscrições dadas a conhecer até aqui aos leitores de “Diário do Alentejo” poderiam faze supor! É que erguer a estátua a um magistrado local constituiu raridade no mundo romano. Mérida, que foi capital da Lusitânia, não tem, até ao momento, nenhuma! Há estátuas, de facto, a magistrados: bustos, esculturas de corpo inteiro… Mas, estátuas equestres e, ainda por cima, para homenagear alguém que não foi sequer elevado à categoria de cavaleiro… não!

 

Mais uma vez, um documento epigráfico romano aparentemente ‘inofensivo’, que até passou despercebido aos investigadores mais atentos, acaba por trazer lustre a uma cidade, que deu honra ao mérito! Não será, pois, inoportuno reclamar que seja recompensada: que o mérito lhe seja concedido!

 

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