Diário do Alentejo

Prova do vinho novo cumpre “ritual” no Baixo Alentejo

06 de dezembro 2021 - 16:40

Texto Júlia Serrão

 

Não é fácil chegar à conversa com estes guardiões do método de vinificação criado pelos romanos há mais 2000 anos. Desde o dia 11 de novembro estão dedicados, de forma quase exclusiva, às adegas que se transformam em tabernas para dar a provar o vinho novo, acompanhado de petiscos típicos da região e das modas mais populares do Cante alentejano… juntam-se a amigos, convidados e visitantes inesperados.

 

O ruído do trator de Diamantino Varrasquinho a lavrar a terra interfere, descontinuo, no diálogo, mas o produtor de vinho de Ervidel prossegue a azáfama no Monte Acima enquanto responde às perguntas do “Diário do Alentejo”. Comprou a quinta de 11 hectares e meio em 1998, juntamente com o pai, que entretanto morreu, e agora é ele e o irmão Manuel que tomam “conta de tudo”. Já existia ali uma vinha mas, como era velha, arrancou-a e substituiu-a por uma nova. A produção de vinho da talha é uma parte ínfima do negócio de produção de vinho dos irmãos Varrasquinho. “Só temos sete talhas, pelo que a produção é pequena”, refere.

 

O ano passado foi mau, por causa do calor e da impossibilidade de refrigeração aliada a este processo antigo de transformar a uva: “As fermentações pararam, estragando quase tudo”. Mas, este ano compensou. “O calor não apertou tanto e o vinho está muito bom”, diz Diamantino, que vai manter a adega aberta até haver vinho, para venda a granel.

 

A história da Adega Chaveiro começou há cerca de 30 anos, quando um enfermeiro, agora reformado, decidiu iniciar-se na produção de vinho de talha segundo os métodos artesanais mais puros. Sem deixar de exercer a profissão, assumiu as lides vinícolas nos tempos livres. Hoje, o filho, técnico de radiologia, segue-lhe os passos, dizendo-se uma ajuda ao pai, “pois ele é que é o produtor e o mentor”. Têm dois hectares de vinha, o que diz ser “muito para tratar sozinho”, ainda mais que prossegue a trabalhar na área da saúde. Faz tudo sob a orientação do pai, do tratamento da vinha à produção do vinho. Todos os períodos de lazer são canalizados nesse sentido. No campo, “não há recurso a tratores para fazer a monda, é tudo feito à mão e com aplicação mínima de químicos”. Na adega, o processo de transformação da uva em vinho é totalmente “arcaico”.

 

PROVAR O VINHO

Mantendo a tradição dos produtores de Ervidel, por esta altura, pai e filho celebram a nova colheita, dão a provar o vinho novo, e vendem-no a granel. A produção “não é muito grande”, e o vinho não é engarrafado porque querem continuar a “manter” a tradição da zona: “a adega aberta para as pessoas se encontrarem ao fim do dia de trabalho, conversar, beber um copo e petiscar”.

 

Paulo Chaveiro lamenta o encerramento de muitas adegas típicas na aldeia, mas tem esperança de que as novas gerações possam mudar esse panorama: recuperar algumas e “dar continuidade a esse costume enraizado na região, contribuindo para prosseguir com o vinho de talha”. Ascender a um escalão acima é uma “ambição”, mas envolve outros fatores, como “existência de cotas para a plantação e implementação da vinha”. Poderá ser um projeto para o futuro. Por agora quer concentrar-se em preservar e consolidar o que tem.

 

José Pernicha, proprietário da Adega do Manuel Fernando, em Vila Alva, tem uma vinha de 10 hectares dividida entre a aldeia do concelho de Cuba e o concelho da Vidigueira. Parte herdou dos pais, a outra adquiriu. O pai já tinha vinhas e fazia vinho de talha. Agora, José Pernicha mantém “uma pequena produção”. Este ano obteve oito mil litros de 22 talhas e alguns potes. Diz que o vinho “está belíssimo”, depois de um ano desastroso em que as doenças, sobretudo o míldio, não pouparam as vinhas, atacando-as na primavera de 2020. “Aí perdeu-se uma boa parte da produção”, recorda.

 

A tradição cumpriu-se na Adega do Manuel Fernando no dia de São Martinho, para dar a provar o vinho novo, acompanhado com “enchidos e modas alentejanas”. E a venda prossegue no local: “as pessoas trazem o garrafão e vão levando a granel”. Não pensa vir a engarrafar o que produz. Primeiro porque isso implicaria expandir o negócio e adquirir mais talhas e, “então, a adega deixava de o ser e passava a ser um casarão”, justifica. Depois, “porque se perderia o espírito de camaradagem” associado ao consumo no local “à volta do petisco, entre conversas e modas típicas do Baixo Alentejo”.

 

A decisão do produtor do concelho de Cuba é irredutível, e nem sequer coloca a hipótese de um método misto, ou seja, engarrafar parte da produção. Faz todo o trabalho sozinho, na vinha e na adega, contratando apenas na altura da vindima e da poda. Mas encontrar gente que saiba trabalhar “é uma das grandes dificuldades de hoje em dia”, que diz só ser compensada com a alegria “de abrir uma talha e ver que o vinho está muito bom”. No meio, ficam muitos tempos de espera, que a produção é feita de forma integralmente tradicional. “O que é preciso é fazer bem, e com carinho”, resume, sem hesitar.

 

SELO DE QUALIDADE

Este é o tempo do vinho de talha, cada vez mais na moda, enquanto a sua candidatura a Património Cultural Imaterial da Humanidade prossegue. A coordenadora da candidatura, que está a ser desenvolvida pela Câmara da Vidigueira, adianta que estão “a preparar a documentação a incluir no formulário eletrónico, para depois submeterem o pedido”. Rosa Trole diz que o período de férias e as eleições autárquicas atrasaram um pouco o processo, pois havia falta de pessoal, mas agora já estão a trabalhar em pleno e na reta final, podendo vir a ter tudo concluído em “três ou quatro semanas”.

 

A novidade no mundo da produção ancestral do vinho é, agora, a recém-criada Associação de Produtores de Vinho da Talha (APVT), constituída por 11 empresários e produtores dos concelhos de Vidigueira, Cuba e Alvito. Segundo o secretário da direção, o primeiro objetivo “é juntar os produtores em iniciativas” de defesa e promoção do vinho, o que, até agora, cada um fazia por si. A associação quer também ajudar no processo de produção, comercialização e certificação do vinho, sendo “o grande objetivo criar um selo de qualidade do vinho da talha, que neste momento tem uma procura muito elevada”, adianta Luís Amado.

 

Alguns produtores “já têm os vinhos certificados, outros estão em processo de certificação, e outros nem sequer o iniciaram”. A APVT “quer ajudar quem tem dificuldades neste processo”, adianta, prevendo também a “criação de um armazém para que todos o associados possam guardar os seus vinhos”. A ideia é ainda a participação conjunta em feiras e certames. Uma iniciativa que estrearam no São Martinho, com nove dos associados a abrir as suas adegas ao público – oito em Vila de Frades e uma em Vila Alva – para dar a conhecer a técnica artesanal de vinificação e a APVT… e, sobretudo, para dar a provar os vinhos novos. Por seis euros, cada pessoa pode provar três vinhos de talha acompanhados de petisco. Metade do valor serve para cobrir as despesas das adegas envolvidas no evento e a outra reverte para o arranque da associação.

 

Seguiu-se a participação de alguns associados, “já com os vinhos engarrafados”, no “Amphora Wine Day” – mais uma iniciativa dedicada aos vinhos de talha, esta realizada na Herdade do Rocim, concelho de Cuba –, “em nome da APVT”. O objetivo “é mostrar o rosto e os rótulos dos nossos vinhos”.

 

Segundo Luís Amado, até a sede da APVT na Vidigueira ficar pronta, os órgãos sociais vão reunir-se mensalmente, à vez, na adega dos associados. Entretanto a associação, que conta com o apoio da Câmara da Vidigueira, está aberta a todas as pessoas que se quiserem associar.

 

ANO DE “BOM VINHO”

José Galante é um dos fundadores da Associação de Produtores de Vinho da Talha, desempenhando função de tesoureiro. Conta que no dia de São Martinho, as adegas se encheram de gente vinda “de todo o País”, o que não o surpreendeu, pois a APVT “está a fazer uma promoção muito grande ao vinho da talha”. Está muito animado e empenhado nesta nova cooperação de produtores “que faltava”.

 

Ao fim de 30 anos a viver em Lisboa, voltou definitivamente ao Alentejo, não há muito tempo. Um dos projetos deste antigo funcionário público passou por ativar a adega de família, em Vila de Frades, com o propósito de produzir o vinho de talha, arte que vinha a treinar há 15 anos. Os grandes recipientes de barro, pertencentes ao avô, há muito que tinham sido destruídos, pelo que teve que começar do zero, adquirindo os seus próprios utensílios. Gradualmente comprou novas adegas e uns quantos hectares de terra, onde detém pequenas parcelas de vinha, embora compre a maior parte das uvas para transformação, pois está sozinho no negócio e não há tempo para tudo. Entretanto, quis saber mais sobre engarrafamento e as artes de adegueiro através de cursos profissionais. O vinho ganhou qualidade, adquiriu marca e deu um passo para o engarrafamento. Inscrito na Comissão Vitivinícola Regional do Alentejo (CVRA), vai agora certificar 700 garrafas. “Já tenho uma marca, estou a criar o rótulo, e este ano espero ir mais além. Embora ainda seja uma coisa mínima, é um princípio.”

 

José Galante diz que, este ano, “o vinho está muito bom, tirando a situação de ter um grau alcoólico alto”. E explica: “Na parte final fiz uma colheita tardia e a uva atingiu 18 graus. Depois, lá consegui equilibrar e está com 14 e pouco. É um vinho forte, portanto. Este ano os vinhos estão todos com 14, 15 graus de álcool”.

 

A adega do mestre Daniel é uma referência em Vila Alva, uma vez que o espaço funcionou como oficina do carpinteiro de Cuba e adega onde produziu o vinho de talha, até 1985. A produção ainda se prolongou quatro anos após a sua morte, mas a adega acabou por encerrar em 1990. Em 2018, Daniel Parreira, que herdou o nome do avô, e a irmã Alda, atuais donos, juntaram um primo e alguns amigos na recuperação do espaço e arrancaram com o projeto XXVI Talhas, que nasceu para promover o vinho de talha produzido em Vila Alva. O número soma as talhas existentes na adega, e o sistema de numeração foi escolhido em função da técnica artesanal de vinificação ser um legado dos romanos.

 

Recuperaram as talhas que já não eram usadas há muito tempo, e começaram a fazer vinho da forma tradicional. Tudo a tempo parcial, que todos na equipa têm as suas próprias profissões. Daniel Parreira, que também é sócio fundador da APVT, diz que a “grande novidade ou inovação é o engarrafamento”, porque mestre Daniel vendia na adega a jarro, para as pessoas consumirem no local, ou em garrafão para levarem para casa, prática ainda “hoje seguida por muitos produtores” da aldeia. “Nós quisemos engarrafar com o objetivo de levar o vinho mais além, a outras fronteiras”, justifica. 

 

Metade do vinho produzido na adega do mestre Daniel vem de vinha própria, que ocupa cerca de cinco hectares, e tem cerca de 25 anos. A outra metade é comprada a produtores da zona. “Mas todas são de castas autóctones”. Na produção entram Manteúdo, Larião, Diagalves, Antão Vaz, Perrum e Roupeiro. De acordo com Daniel Parreira, a produção é ainda pequena. O ano passado encheram 12 mil garrafas; este ano devem chegar às 14 mil, de branco, tinto e palhete. Há três marcas registadas prontas para serem rotuladas. Entretanto, a adega vai continuar aberta para quem quiser provar o vinho novo. Ou comprar uma garrafa que se enche na hora e consumir no local, com um petisco trazido de casa a acompanhar. Por esta altura do ano, todas as adegas ganham um ar de taberna.

 

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