Os casos de abandono de animais de companhia têm vindo a aumentar, segundo adiantam ao “Diário do Alentejo” algumas associações de apoio e abrigo com intervenção no distrito de Beja. Ninhadas indesejadas e dificuldades económicas das famílias, na sequência da pandemia de covid-19, são algumas das causas apontadas. Com os abrigos na sua capacidade máxima, e com poucos recursos financeiros e humanos, as associações deparam-se com grandes dificuldades para darem resposta às solicitações. O abandono e maus-tratos a animais de companhia são crime desde 2014.
Texto Nélia Pedrosa
A associação SOS dos Animais de Moura tem vindo a registar, nos últimos meses, um aumento “drástico” de acolhimentos de cães abandonados. Nas palavras de Vânia de Jesus, 2021 tem sido “um ano dramático” não só no que toca a acolhimentos, mas também “ao número geral de animais abandonados”. Segundo adianta ao “Diário do Alentejo” a responsável pela área administrativa da associação, o abrigo de Moura “não tem vagas, nem recursos humanos para dar vazão a tanto pedido de ajuda e a tanto animal que aparece abandonado no Alentejo”.
“Pela primeira vez em muitos anos tivemos de dizer que não podemos acolher mais animais até conseguirmos resolver a situação”, lamenta, sublinhando que o concelho de Moura tem “problemas gravíssimos” de abandono e, particularmente, de animais “de porte grande e muito grande”. Animais, “maioritariamente, de trinta e tal quilos para cima”, que “são também aqueles que têm uma taxa menor de adoção” e que acabam por ficar ‘ad eternum’ no abrigo.
Entre janeiro e meados de setembro deste ano, a SOS de Moura acolheu 34 cães, número que ultrapassa já os recebidos durante os anos de 2019 (32) e 2020 (33). “Apercebemo-nos que houve realmente um aumento exponencial de nascimentos. O número de cães que são abandonados na faixa etária sete-10 meses é muito grande. As pessoas estiveram mais tempo em casa [devido à pandemia de covid-19], provavelmente adquiriram mais animais que acabaram por se reproduzir e daí a proliferação de ninhadas de cães, mas isto são tudo conjunturas”, diz a responsável.
A SOS alberga atualmente 80 cães, mais 12 do que a sua capacidade máxima. Para além do aumento do número de acolhimentos, frisa Vânia de Jesus, ultimamente têm chegado “cães muito doentes”, a precisar de cuidados e atenção extra. No seu entender, existe “uma despreocupação muito grande com os animais”, independentemente das condições económicas das famílias. “As pessoas até podem ter meios para tratar o animal, mas há a ideia de que não se gasta dinheiro com um cão, e isso vê-se, por exemplo, nas esterilizações. Quem está interessado ‘move mundos e fundos’, mesmo que não tenha condições financeiras, para conseguir esterilizar o seu animal e até tem a humildade de pedir apoio”.
Por norma, só uma percentagem muito pequena de famílias “tem coragem para pedir ajuda”. A maior parte “despeja o animal” na associação, normalmente durante a madrugada e também no período de almoço, “quando sabem que não está ninguém”. Outros são recolhidos na via pública.
“Se as pessoas tiverem coragem de pedir ajuda e se as associações virem que há boa-fé do outro lado, temos todo o gosto em ajudar, porque será menos um animal abandonado e a nossa missão é ajudar. Ajudamos com medicamentos, cuidados veterinários, esterilização, alimentação, desparasitação. Infelizmente, e todas as associações dirão o mesmo, há uma grande quantidade de pessoas que quer apenas despachar os seus animais”.
Vânia de Jesus sublinha ainda que a SOS registou alguns pedidos de ajuda por parte de pessoas que “herdaram” cães devido ao falecimento de familiares durante a pandemia e que “não os querem assumir”.
Alguns animais acolhidos pela SOS são encaminhados diretamente para as famílias de acolhimento temporário (FAT) que colaboram com a associação, maioritariamente na zona de Lisboa, sem passarem pelo abrigo. Adoções, revela a responsável, são “uma percentagem pequena”. E normalmente são feitas também para a zona de Lisboa. As redes sociais acabam por se revelar uma preciosa ajuda na divulgação dos animais que necessitam de ajuda, chegando “a mais gente”. Mas Vânia de Jesus sublinha que se não foram “boas adoções”, se “não for para irem para melhor, então não vão”.
A Expandcourage – Associação de Intervenção e Ajuda a Animais no Distrito de Beja, criada em Ferreira do Alentejo, acolheu, desde o início do ano, cerca de 70 animais, mais 20 do que durante 2020. “Nos últimos tempos tem surgido um ligeiro aumento, aliás, já existia e com o agravamento da pandemia aumentou. Temos tido mais dificuldade, porque há mais animais abandonados e neste momento as adoções estão um pouco paradas [devido à pandemia]”, revela o presidente da associação.
André Ventura considera, no entanto, que “as pessoas também aproveitaram a pandemia para justificar o abandono”. Em caso de dificuldades, frisa, “existem várias associações e movimentos cívicos” a que as famílias poderão recorrer “para encontrarem uma solução para o animal”, em vez de irem “pelo caminho mais fácil, que é o descartar”.
Sem dispor ainda de um abrigo – um problema ainda sem desfecho à vista –, a associação encaminha os animais para as FAT, que, neste momento, também “já estão lotadas”. Uma situação que obriga a recorrer a outras associações do distrito para “dar resposta às situações”, diz. No caso dos animais de grande porte, a Expandcourage estabeleceu um protocolo com uma associação do Redondo “que acolhe equídeos”. Os animais doentes, “a necessitarem de cuidados 24 horas por dia”, costumam ser acolhimentos pelos membros da direção. E há dois canídeos alojados em regime de hotel, o que acarreta mais despesas. A associação dá ainda a apoio “a pessoas que estão responsáveis por colónias de gatos [ver caixa] e a famílias com baixas condições económicas”.
O número de acolhimentos na Associação Canil e Gatil Os Rafeiritos do Alentejo, em Ourique-Gare, Castro Verde, tem-se mantido “mais ou menos constante”, refere, por sua vez, a presidente da direção. Por um lado, justifica Ana Morgado, as condições do abrigo não permitem “ter mais animais”. Por outro, o facto de estarem em processo de transição para novas instalações, dado que as atuais estão em propriedade privada, também “tem limitado as entradas”. O que têm registado, diz, é um aumento do número de pedidos de apoio por dificuldades económicas das famílias provocadas pela pandemia. “Às vezes somos contactados para ajudar com ração, medicamentos, e ajudamos dentro das nossas possibilidades”.
Em termos gerais, adianta Ana Morgado, “no Alentejo existe um índice de abandono muito alto”. “Praticamente todas as semanas aparecem animais abandonados que necessitam de encaminhamento e de ajuda, infelizmente não conseguimos socorrer todos e tentamos ajudar encaminhando para outras associações e através das FAT, que são muito importantes”.
Em 2019 foram registadas 56 entradas e 55 saídas de cães, em 2020, 51 entradas e 42 saídas, e, durante este ano, 37 entradas e 39 saídas. Os gatos são encaminhados diretamente para as FAT, não entrando nesta contabilização, uma vez que o gatil se encontra desativado por falta de condições. Com capacidade para 50 animais, Os Rafeiritos do Alentejo alberga, atualmente, 35 cães, mas já acolheu “cerca de 100”. O novo canil, que será construído na sede de concelho, num terreno cedido pela Câmara Municipal de Castro Verde, deverá ter lotação, no mínimo, para uma centena.
FALTA DE MEIOS FINANCEIROS E HUMANOS
Recursos financeiros escassos e falta de voluntários são alguns dos problemas com que se deparam as associações de apoio e abrigo de animais de companhia. Devido à pandemia, também algumas campanhas de recolha alimentar para animais foram canceladas. Segundo Vânia de Jesus, já foi possível “retomar algumas na região de Lisboa”, mas, depois, existe o problema do transporte até Moura.
“Para tudo é preciso dinheiro e cada cão acolhido é uma responsabilidade às vezes para a vida inteira, porque nunca sabemos se será adotado ou não. Temos cães que estão desde sempre connosco, e esses cães precisam de alimentação, cuidados veterinários, desparasitação, vacinação, etc., etc., constantemente”, refere.
“Estamos a funcionar no fio da navalha, com a boa vontade de um grupo restrito de pessoas”, diz, por seu turno, Ana Morgado, frisando, è semelhança de Vânia de Jesus, que as campanhas de recolha de alimentos “estão muito limitadas”. “Temos tido ajuda, principalmente, de uma associação do norte que recolhe excedentes de ração, em fábricas ou lojas, e que nos envia algumas sacas”, conta.
As associações vivem maioritariamente de donativos de particulares e de quotas dos associados. Contam ainda com o apoio de clínicas veterinárias, que fazem descontos ou permitem pagamentos em prestações mediante as possibilidades, e, em alguns casos, de câmaras municipais, mas, “muito limitados”.
Para Vânia de Jesus a questão do abandono no Alentejo requer “um trabalho de fundo”, envolvendo “uma grande vontade das pessoas e uma grande mudança de mentalidades”. “Este é um trabalho que tem décadas de atraso”, sublinha a voluntária de Moura. E acrescenta que passa também “pela fiscalização e aplicação da lei, porque as pessoas têm medo de denunciar os vizinhos ou outros”. O abandono e maus-tratos a animais de companhia são considerados crime desde 2014.
Para além da sensibilização com vista à mudança de mentalidades, afirma Ana Morgado, “é necessário haver um grande apoio por parte das autoridades, nomeadamente, do Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente da GNR e do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, que detém agora a questão do bem-estar animal”. Este é, contudo, “um problema que ainda vai demorar a ser resolvido”.