Ao visitar a sede da SMFOG, que todos apelidam de Música Velha, nome da banda filarmónica da Sociedade, José Afonso fica encantado com a biblioteca. É-lhe explicado que as obras mais sediciosas, como os romances do brasileiro Jorge Amado, estão escondidas sob o palco de madeira, protegidas das rusgas da polícia.
Quando o concerto começa, a sala está a abarrotar. Cerca de 200 pessoas vieram assistir ao espetáculo.
Carlos Paredes toca na primeira parte. José Afonso, acompanhado por Rui Pato, encerra o espetáculo. Todo o seu repertório é cantado, até mesmo o célebre “Os Vampiros”, com cheiro a pólvora. O público está tão compacto que, desta vez, a PIDE não ousa intervir. Mas vingar-se-á dias mais tarde, ao confiscar a gravação do concerto durante uma rusga realizada no domicílio de um militante local.
A 21 de maio, quatro dias depois do concerto, surge uma surpresa: José da Conceição recebe uma carta, escrita com tinta verde, de José Afonso, exprimindo toda a sua gratidão aos sócios de “Música Velha”. Como agradecimento, ele oferece um poema de três estrofes, que será lido, a 31 de maio, ao público reunido na associação: “Grândola, Vila Morena/Terra da Fraternidade”, onde o povo é quem mais ordena e há em cada rosto igualdade.
Sete anos mais tarde, o poema tornar-se-á canção. Mais três anos e a canção dará início à Revolução.
Um pequeno milagre produziu-se entretanto. A censura, extremamente severa em Portugal, não percebeu o verdadeiro sentido de “Grândola, Vila Morena”, e pensou que se tratava de um piscar de olhos a uma pequena localidade bem simpática, uma canção de província, sem qualquer importância. A polícia política enganou-se, felizmente, em toda a linha.
Zeca, o malicioso, sob o título “Grândola, Vila Morena”, não quis honrar uma vila por certo amigável. O que ele visava era a “Música Velha”, o coletivo de resistentes, de origens operárias e camponesas, sem verdadeiros chefes, à qual todos se dedicavam num clima de total igualdade. De facto, “Grândola, Vila Morena” resumia o ideal socialista e libertário de José Afonso, uma dupla heresia no país de Salazar.
A GRAVAÇÃO DA CANÇÃO EM PARIS
Desta vez, é o adeus definitivo ao ensino. Mas, como em todos os reversos da medalha, existe sempre um lado positivo. Amigos, verdadeiros, não abandonam o Zeca. Dão-lhe força e encorajam-no a retomar a canção e a criação de forma mais profissional. No Porto, Arnaldo Trindade, o patrão da editora Orfeu, dá-lhe um apoio decisivo. E prontifica-se para lhe financiar os seus próximos discos, assinando com ele um contrato de “agente de promoção artística”. Financeiramente, está ainda longe de ficar “rico como Creso”. Mas alguém acreditar assim nele dá nova motivação ao poeta.
Vejamos as coisas pelo lado positivo. Desde o seu emprego em Mangualde, José Afonso não cessou de saltitar, durante 13 anos, de um lugar para outro, em todo o País, com um tremendo desvio pelas colónias. Isto permitiu-lhe afastar-se do fado da sua juventude e descobrir muitas canções de cariz popular, de extraordinária riqueza e diversidade, tanto em Portugal como em Moçambique, que ele transformou em grandes músicas, imbuídas de uma poesia delicada, repousando sobre textos que misturam à maneira de um Brassens, em França, as expressões provenientes de uma linguagem mais clássica e requintada.
De cada terra que atravessou, Zeca retirou algo de belo, sensível, diferente: a recordação de uma velha lenda, a alegria de uma festa agrícola, um ambiente surrealista…
Expulso do ensino, é obrigado a exceder-se e a passar para uma fase mais qualitativa. Os seus primeiros discos, em duo com o Rui Pato, tinham sido produzidos em condições tão artesanais quanto pitorescas. As canções eram gravadas geralmente logo à primeira, num estúdio instalado num mosteiro em ruínas, com galinhas bicando, lá para os lados de Coimbra.
Orfeu é como uma bênção, dispõe-se a pagar o aluguer de estúdios de última tecnologia, que só existem no estrangeiro. Em 1970, Zeca prepara-se para gravar um novo disco em Londres, “Traz outro amigo também”. Para os arranjos, ele pensa logo em Rui Pato, o seu cúmplice das primeiras horas, o virtuoso da viola. Mas há um problema! Este último está a estudar Medicina em Coimbra, cidade que, como Lisboa, foi sacudida, em 1968-1969, por grandiosas revoltas estudantis. O regime prendeu os principais dirigentes, entre os quais figura Rui Pato. O jovem camarada de Zeca, por castigo, é banido da universidade e enviado para um batalhão militar punitivo. Muitos jovens líderes intelectuais da época sofrem o mesmo destino, nomeadamente Carlos Albino, o jornalista do “República” e do programa “Limite”.
Depois do recrutamento forçado para a tropa, Rui Pato é proibido de sair de Portugal. Para a gravação em Londres, ele sugerirá a José Afonso contratar Carlos Correia, dito “Bóris”, um guitarrista muito talentoso de um grupo de rock.…