Diário do Alentejo

Um terço das famílias de etnia cigana vive em habitação precária

04 de maio 2021 - 12:30

No distrito de Beja, onde a população de etnia cigana aumentou 79,4 por cento em oito anos, e onde residem 767 famílias, 17 por cento vive em barracas e 13 por cento em tendas ou rulotes. Dos 288 alojamentos familiares não clássicos, 144 dizem respeito a barracas e destas, apenas 12 têm acesso ao conjunto de redes de água, eletricidade e saneamento.

 

Texto Rita Palma Nascimento

 

Estes dados constam de um estudo levado a cabo pela AMEC – Associação de Mediadores Ciganos de Portugal em parceria com o Núcleo Distrital de Beja da EAPN Portugal/Rede Europeia Anti-Pobreza, que contou com o apoio das redes sociais da região. É no concelho de Beja que se regista o maior número de habitantes ciganos (1 399 pessoas), seguido dos concelhos de Moura (983) e Serpa (469). Dados que resultam do comparativo com o estudo de “Caracterização da População Cigana do Distrito de Beja” realizado em 2010 pelo Cento Distrital da Segurança Social de Beja.

 

No que às condições habitacionais diz respeito, em Moura e Serpa metade da população cigana vive em casas de alvenaria, enquanto a outra metade permanece em barracas. Já na capital de distrito, 65 por cento vive em casas de alvenaria, 32 por cento em barracas e três por cento em tendas. Realidade que Prudêncio Canhoto, presidente da AMEC e antigo mediador da comunidade cigana na Câmara de Beja, descreve como “lamentável e preocupante”, nomeadamente no que ao Bairro das Pedreiras diz respeito.

 

BAIRRO DAS PEDREIRAS

 

“Foi feito um bairro para os ciganos, para que fosse possível retirá-los de um terreno necessário para outros fins, e não para os realojar. Mas não se fazem bairros para os ciganos, esse foi o primeiro erro. Os bairros são feitos para as pessoas, sejam elas ciganas ou não ciganas”, sublinha o presidente da AMEC. “O segundo erro foi terem-se construído habitações sem qualquer planeamento nem avaliação de necessidades das famílias. Nós, os ciganos, constituímos família muito cedo e gostamos que seja grande. É a nossa cultura”.

 

Esta é uma história que remonta a 2005, quando a Câmara de Beja construiu, sem que existisse um plano de urbanização para o efeito, 50 habitações nas imediações da cidade, que viriam a realojar, em 2006, um total de 244 pessoas que habitavam em condições indignas perto de uma lixeira, no Bairro da Esperança. Contudo, segundo Prudêncio Canhoto, são hoje “cerca de 900” os habitantes do bairro. É um número que a Câmara de Beja diz estar “claramente sobredimensionado” pois, segundo o levantamento que foi efetuado pelas técnicas e mediadores da autarquia, no ano de 2019, “residiam no bairro 797 pessoas”. Para além deste número, em 2019, foi efetuada uma atualização dos agregados que se encontravam naquele local, em que se identificou a existência de um núcleo de 50 barracas, erigidas com materiais perecíveis e desadequadas ao conceito habitacional, onde residiam cerca de 300 pessoas. “Neste sentido”, acrescenta a Câmara de Beja, “as restantes 253 pessoas registadas serão fruto da alteração do número de elementos que integram cada agregado familiar, sobretudo se atendermos ao facto de se tratar de uma comunidade em que a maternidade por norma, é precoce e em que existe uma elevada taxa de natalidade, bem como de parte dessa comunidade, ainda ser nómada e a população oficialmente residente se deslocar entre concelhos com frequência”.

 

Sobre as condições de habitabilidade no bairro, Prudêncio Canhoto desabafa: “Os T2 ali construídos são tão pequeninos que se se colocar uma cama de casal no quarto não cabe lá mais nada. Imagine-se como será habitarem mais de sete pessoas no mesmo espaço”.

 

É um problema que a vereadora Marisa Saturnino reconhece: “A maior parte destes agregados residem, efetivamente, em habitações onde a tipologia é desadequada face ao número de elementos que integram o agregado familiar. Porém, destaco outros aspetos que identifico como constrangimentos a este nível, nomeadamente as fracas condições de habitabilidade, agravadas pela intervenção não autorizada, com reajustamentos, demolições e reconstruções sem o mínimo acompanhamento técnico, cujas alterações comprometem não só estruturas essenciais das próprias habitações, como os circuitos de água e eletricidade”.

 

“ATOS DE RACISMO”

 

Prudêncio Canhoto, que conhece como ninguém a realidade deste e de outros bairros de famílias ciganas do Baixo Alentejo, critica os “atos de racismo consciente” por parte de quem critica as pessoas que habitam no Bairro das Pedreiras. “Caso lhes fossem dadas aquelas casas, onde passados cinco anos há canos podres dentro das paredes, talvez não as aceitassem. Para falar é necessário conhecer-se a realidade, e dessa muito poucos sabem”.

 

Em resposta ao “DA”, Marisa Saturnino reconhece o problema, mas mostra a outra face de uma mesma moeda. “Por norma, todas somos muito resistentes ao novo, ao desconhecido e ao que é diferente. É inato ao ser humano. O discurso de negação relativo à comunidade cigana é muitas vezes recorrente, porque há um facto que é inequívoco: muitas têm sido as medidas de política social adotadas, as linhas de financiamento nacionais e comunitárias que têm favorecido a criação de projetos de desenvolvimento e inclusão social. Muito se tem trabalhado com e para as comunidades, discriminando positivamente. Contudo, o que é facto é que passados todos estes anos, nomeadamente nas comunidades de zonas mais rurais e interiores do país, poucos avanços se registaram, o que se torna desmotivante para os técnicos e pouco credível para a comunidade, em geral”.

 

“CEMITÉRIO DOS VIVOS”

 

Certo é que para lá da linha da memória de um muro de três metros de altura, adornado por ciprestes, que apelidou o Bairro das Pedreiras como o “cemitério dos vivos”, e que viria a conduzir à condenação do Estado português, em junho de 2011, por violação da Carta Social Europeia, as necessidades ainda são feitas a céu aberto e há apenas uma bica de água para 400 pessoas. As crianças brincam com “uma pedrinha num caminho de terra” e chove dentro das barracas. As camas, se assim lhes podermos chamar, amontoam-se, sem privacidade e a higiene é a (im)possível. São três as gerações a partilhar o mesmo espaço, numa tendência crescente de aumento familiar. Há ainda a convivência com baratas, cobras e ratazanas, provenientes de um esgoto a céu aberto. Um cenário de acentuada pobreza que, segundo a EAPN “piorar é impossível”.

 

Face a esta e outras evidências, não apenas existentes no município de Beja, encontra-se em fase final de elaboração a Estratégia Local de Habitação. Segundo a vereadora da Câmara de Beja, “existem outros concelhos limítrofes, onde também é também evidente predominância da comunidade cigana, com problemas e necessidades muito semelhantes. É o caso dos concelhos de Serpa e Moura”. Daí, ser entendimento da Câmara de Beja que, por se tratarem de tipologias de agregados com características muito específicas, “essa estratégia passará por uma articulação intermunicipal, concertada e integrada, ajustada a essas características, de modo a que as populações oficialmente residentes fiquem cientes que só poderão ter acesso a habitação no concelho em que efetivamente residirem”.

 

CAMINHO DA INTEGRAÇÃO

 

Questionado sobre de que forma a situação poderia ser melhorada, o presidente da AMEC mostra-se de acordo com o “plano estratégico integrado de todas as Câmaras”, se em comunhão com as redes de ação social, apoios e programas estatais para as questões da habitação, educação e formação, com vista à integração de minorias na sociedade. Prudêncio Canhoto refere que uma câmara isolada, “mesmo que tenha vontade, pouco ou nada consegue fazer”.

 

Defensor de que não há necessidade de construção de novas habitações quando “há tantas casas fechadas e tantas pessoas a precisar delas”, para a questão concreta do Bairro das Pedreiras sugere que “poderia ser utilizado como bairro nómada, de residência temporária e de preparação para a integração na cidade”. Por outro lado, “à medida que as casas fechadas iam sendo recuperadas, preparavam-se as famílias para o processo de transição. Talvez não se conseguisse realojar mais de quatro famílias por ano, mas ano após ano haveria resultados”.

 

RESPOSTA SOCIAL

 

Por forma a dar algumas respostas aos problemas identificados, Marisa Saturnino fala ao “DA” sobre os três projetos que a Câmara de Beja tem em execução. O CLDS 4G, que tem um eixo de intervenção relacionado com Intervenção familiar e parental, preventiva da pobreza infantil. O projeto “Rostos com Futuro” que, em parceria com a Cáritas Diocesana de Beja, disponibiliza uma equipa de três mediadores para intervir junto da comunidade cigana e migrante no concelho e a parceira estratégica com a associação Alentejo XXI, na recentemente aprovada candidatura ao Programa Bairros Saudáveis “Sou Capaz”, que pretende capacitar as famílias residentes no bairro de competências pessoais, sociais e profissionais, para a participação ativa no processo de melhoria da qualidade de vida naquele local.

 

Em projeto encontra-se também, segundo a vereadora, “uma nova resposta, com várias valências, mais holística e dinâmica que em parceria com a ACM, que reforçará a articulação de respostas já existentes no território, não só para a comunidade cigana, como para o refugiados e a comunidade migrante”.

 

BAIRRO EXEMPLAR

 

Prudêncio Canhoto dá como bom exemplo de integração o Bairro de São Francisco em Serpa, construído entre 1981 e 1985, por vontade do padre Moreira, onde residem atualmente ciganos e não ciganos, e que contou com a participação dos futuros habitantes na construção das suas próprias habitações. “O cigano aprendeu o ofício e construiu a sua própria casa, no terreno que lhe foi destinado, à medida das suas necessidades. Um trabalho muito bem feito e um bom exemplo de integração”. As diferenças, afirma, devem-se “à aceitação, por parte da população, da comunidade cigana ali residente. Em Serpa o cigano é tratado pelo nome e trata também pelo nome. Respeita e é respeitado. Integrou-se e faz parte da cidade”.

 

Quanto aos 50 por cento de pessoas de etnia cigana a habitar em barracas, a Câmara de Serpa realizou um levantamento junto desta comunidade e apurou que existem cerca de 50 barracas, a sua grande maioria instaladas no bairro da Canada, em Pias. Segundo a vereadora Odete Borralho, no âmbito da candidatura a um projeto de mediação intercultural, foi realizada uma reunião com o Alto Comissariado para as Migrações, com o objetivo de saber se existia uma estratégia nacional para a intervenção junto das comunidades ciganas. “Foi-nos transmitido, na altura, que a estratégia estava a ser revista e que assim que fosse concluída, seria apresentada à autarquia. Até hoje, não a conhecemos”.

 

Todavia, acrescenta Odete Borralho, a autarquia está a preparar uma resposta no âmbito da estratégia municipal de habitação, “que permitirá o enquadramento das necessidades locais em programas nacionais, uma vez que a problemática das comunidades ciganas é âmbito nacional”.

 

BAIRROS SAUDÁVEIS EM BEJA

 

No âmbito da candidatura ao programa “Bairros Saudáveis”, a associação Alentejo XXI viu aprovado o projeto “Sou Capaz”, que conta com as parcerias da Câmara de Beja, União de Freguesias de Salvador e Santa Marias e das associações Sílaba Dinâmica e Ribaltambição – Associação para a Igualdade de Género nas Comunidades Ciganas. O financiamento é de 50 mil euros e visa “capacitar as famílias residentes no Bairro das Pedreiras de competências pessoais, sociais e profissionais, para a participação ativa no processo de melhoria da qualidade de vida no bairro e facilitação ao nível da integração profissional e inclusão social”. Questionada sobre a importância do trabalho conjunto entre comunidades cigana e não cigana, Marisa Saturnino explica ao “DA” que “a inclusão implica uma dimensão mais abrangente, em que podem coexistir pressupostos culturais e sociais diferentes”. Neste sentido, “torna-se fundamental a divulgação e partilha de crenças, conhecimentos e práticas ancestrais que são acrescentadas ou reduzidas, em função das vivências das comunidades, dos novos contextos, desafios e gerações, podendo transformar-se num foco de convergência identitário que pode ser integrado num contexto social mais lato”. A vereadora frisa ainda que, “o envolvimento de mediadores e líderes locais” no projeto, é um facilitador de relações “institucionais entre as comunidades”, permitindo a “sustentabilidade das iniciativas desencadeadas”. Segundo Marisa Saturnino, “pretende-se que os jovens e a população ativa do bairro frequentem várias ações de formação, ministradas pelo IEFP, que elevem o nível de escolaridade, mas que também lhes proporcionem qualificação em áreas específicas” que possam ir de encontro às suas necessidades.

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