Diário do Alentejo

Radio Internacional, de Odemira para o mundo

25 de janeiro 2021 - 10:00

Depois de 20 anos aos microfones da Antena 2, e alguns de paragem na sua atividade profissional, a realizadora Judite Lima volta aos estúdios da radio para falar de música e de autores. Só que, desta vez, fá-lo a partir do litoral alentejano, para onde foi viver recentemente. A Radio Internacional Odemira (RIO) emite exclusivamente ‘online’.

 

Texto Júlia Serrão

 

Há muitos anos que Judite Lima fazia o caminho para São Luís, concelho de Odemira, onde a irmã tem uma casa há várias décadas. A última vez tinha sido depois do primeiro confinamento a que a pandemia de covid-19 obrigou o país. As duas rumaram a sul para passar o mês de maio e parte de junho no campo, por acharem que estavam “mais protegidas do que na cidade”. No regresso a Lisboa, e na sequência de ter que deixar o apartamento onde vivia, decidiu-se por uma mudança radical no modo de vida.

 

O verão mal tinha começado, e o vírus parecia perder alguma força, quando chegou ao litoral alentejano para uma estada sem bilhete de regresso. “É sossegado e tem duas coisas que eu adoro, o campo e a praia. É um local que conheço, onde sempre fui bem-vinda. O alentejano é um povo bom, é um povo são”. Mais tarde, o “reencontro” com o diretor da Radio Internacional Odemira (RIO) abre-lhe uma possibilidade inesperada: “O Vítor [Silva] fez-me uma proposta no sentido de continuar, digamos assim, o meu percurso radiofónico, que estava estagnado há cerca de 11 anos, e de o retomar aqui na RIO. Juntou-se o útil ao agradável, que é viver num sítio que eu adoro e fazer uma coisa pela qual eu tenho uma paixão desmesurada, que é a radio”. A realizadora já tinha colaborado com a RIO, “com algumas entrevistas e apontamentos de diferentes artistas”, no âmbito das Montras: uma exposição cultural que acontece em São Luís, no mês de agosto. “Fiz com imensa alegria e profissionalismo, como se estivesse na Antena 2, onde aprendi que o microfone não se trata por tu”.

 

Em setembro, estreou-se com “Mosaicos”, um m programa essencialmente de divulgação de música, que se costuma chamar clássica. “Eu não gosto muito da terminologia, mas não havendo uma melhor é a que fica”, observa. Explica que passa as obras que toda a gente gosta de ouvir, mesmo que nada saiba sobre a história da música ou nem sequer tenha ido a um concerto. “A música é algo maravilhoso, que entra dentro de nós de forma epidérmica. Quem não gosta de ouvir um Mozart, um Bach ou um Beethoven?” Dá um exemplo da importância ou do poder da música, referindo o maestro e pianista Daniel Barenboim e o intelectual palestiniano Edward Said que formaram uma orquestra para jovens, partilhada entre árabes e judeus. “O que a diplomacia não consegue, a música consegue porque a linguagem é universal”, sublinha.

 

A ideia do programa partiu da realizadora, que em tempos apresentou “O Jardim da Música”, um espaço semelhante na Antena 2. De certa forma, assegura, “Mosaicos” é uma espécie de continuação do “Meu Jardim da Música”, mas na rádio de Odemira. “Gosto imenso de o fazer”, diz, aproveitando para “chamar a atenção para duas efemérides importantes este ano, que são os 50 anos da morte de Igor Stravinski, que passou por Lisboa e dirigiu uma orquestra sinfónica da Emissora Nacional, no Coliseu, e o centenário do nascimento de Astor Piazolla, o argentino que colocou o tango nos grandes palcos”.

 

RADIO ONLINE COM OLHOS POSTOS NUMA ANTENA

 

A emissão da Radio Internacional Odemira começou no dia 1 de junho de 2018, e faz parte de um projeto maior, com um ‘site’ associado, criado no âmbito do programa “Odemira Empreende”, da Câmara Municipal. “Nasceu da vontade e da carolice de algumas pessoas, entre elas eu, e com o apoio financeiro parcial do município”, explica o diretor, Vítor Silva, assegurando que a relação com a autarquia “não influencia a linha editorial”, havendo “apenas uma parceria” entre as duas entidades, num programa da radio para a comunidade migrante no concelho, que visa passar informação útil e diversa de caráter geral. “É o nosso contributo para a coesão social e para a integração dos migrantes”, esclarece, acrescentando que também por ali passa “alguma informação cultural”, para que os imigrantes possam “ir adaptando-se à nossa cultura e forma de viver”.

 

A RIO emite exclusivamente ‘online’, pois a emissão por antena exige um investimento “de peso” que, neste momento, não é possível concretizar. “Estávamos a um passo disso quando chegou o confinamento, que veio tirar-nos os colaboradores e os convidados de estúdio e as reportagens da emissão, que era o que estava a criar interesse nas pessoas. Ficámos parados quando estávamos numa fase de crescimento. Como se costuma dizer, resistir já é vencer”. Mas o objetivo é chegar lá, se conseguirem “resistir a esta pandemia”. Até porque muitas zonas do concelho não têm acesso à Internet.

 

“Ter uma antena é essencial, pois uma das razões por que nascemos foi para fazer a coesão territorial e social deste concelho, que é enorme. A população é muito variada, com pessoas de muitas nacionalidades, e está muito dispersa. Depois, há uma população idosa a que queremos chegar, e ajudar na solidão”. Professor de profissão – leciona história da cultura e das artes – e radialista amador, Vítor Silva sabe como fazê-lo, pois em Braga dirigiu, na radio local, um programa criado “para as pessoas mais velhas que estão isoladas nas aldeias transmontanas”.

 

Com uma equipa de cinco pessoas a trabalhar voluntariamente nos seus tempos livres, a radio vai para o ar com a produção de vários programas, muitos vezes gravados, e assegurados por amadores com experiência. Judite Lima é a exceção. Por enquanto, não há condições para fazer informação. “Falta-nos um jornalista”, sublinha o diretor, explicando que é uma falha a suprimir logo que estejam criadas as condições para um regresso à emissão normal.

 

Antes da pandemia a radio estava bem lançada, fazendo a cobertura de muitos acontecimentos, com as pessoas “muito interessadas em tudo”. Por isso, quando ela terminar, e as feiras e os campeonatos de canoagem voltarem a Odemira, a RIO vai estar de novo na rua. A angústia é não se saber quando é que isso sucederá. “Estamos ansiosos por isso, pois é o que nos dá mais prazer, e dava mais audiências. Por outro lado, vai permitir arranjar mais apoios ligados à área do comércio, dos restaurantes, do turismo, que era uma das áreas que nos via com bons olhos e nos apoiava”, desabafa Vítor Silva.

 

AMOR À MÚSICA E À POESIA

 

Porque os pais quiseram dar uma educação musical às filhas, Judite Lima e a irmã iniciaram-se muito cedo na então Fundação (hoje Academia) Musical dos Amigos das Crianças, em Lisboa. Mas enquanto Irene Lima se dedicou por completo, é primeira violoncelo na Orquestra Sinfónica Portuguesa, Judite faria outro caminho. “A Orquestra da RDP acabou e surgiu-me a oportunidade de ir para a Antena 2”. Tinha 21 anos, e nunca tinha feito rádio. “Assim que entrei no estúdio e a luzinha vermelha se acendeu, senti-me como peixe na água, pois gosto muito de falar, de comunicar”, observa.

 

Do alinhamento musical passou a falar de música, “num espaço que tinha das 23:00 horas à meia-noite” que já não se lembra o nome, mas que gostava muito de fazer. “Propus à direção de programas preenchê-lo com uma entrevista com músicos, porque conhecia muitos”. O resto foi surgindo naturalmente, como gosta de dizer. Teve o “privilégio” de entrevistar grandes mestres no âmbito de Lisboa Capital da Cultura, como George Sauti, Zubin Mehta ou Montserrat Caballé. Somou 20 anos de serviço na estação. A reforma chegou há 11 por sua própria iniciativa.

 

Assume que a música e a poesia – “e a poesia também é música”, enfatiza –, no fundo a literatura em geral, são a sua vida e os seus passatempos. Se calhar por causa da formação académica: formou-se em românicas, hoje línguas e literaturas modernas. Gosta muito de Fernando Pessoa (escreveu sobre o poeta e os seus heterónimos uma peça que esteve em cena no auditório Lurdes Norberto, em Linda-a-Velha), e de Camões (mais das reflexões do poeta do que do resto da epopeia). Diz que o autor de “Os Lusíadas” é muito “contemporâneo”, com uma “visão shakespeariana do mundo”. Argumenta: “Então o canto V, quando fala na ignorância dos governantes relativamente às artes, é a cereja no topo do bolo. Continua tudo na mesma. Basta ver o que o Orçamento Geral do Estado tem para a cultura, que não chega a um por cento.”

 

O dia a dia da realizadora começa normalmente com um passeio, acompanhada pela sua pequena cadela. Mas janeiro, mais frio no Alentejo do que alguma vez imaginou, surpreende-a em casa. “Leio, vejo as notícias, quando me incomodam desligo, e preparo os meus programas para a RIO”. Também dá explicações de português através da Internet a explicandos que já tinha em Lisboa. Mais uma função que lhe enche o coração de alegria e entusiamo.

 

Habituou-se tão bem à região e às suas rotinas que não sente saudades de Lisboa. “Nem me lembro que existe”. Quando entrou na capital para passar o Natal com a irmã e o filho foi um choque: “Assustei-me com aqueles carros todos num para, arranca. Agora, faz-me confusão!”. Viu-se a pensar “que saudades que eu já tenho do meu Alentejo”. Confessa: “É aqui que eu me sinto bem. De vez em quando vou à praia, gosto de cheirar a água, de ouvir o mar a bater, gosto de passear na areia. O Alentejo só me tem dado coisas boas.”

 

GRELHA DE PROGRAMAÇÃO

 

A terra é outro elemento “maravilhoso”, para Judite Lima. “Gosto imenso de mexer na terra, a terra que é limpa e tem um cheiro especial, que é uma coisa muito forte”. Plantou “umas coisinhas” no monte de um amigo, e agora anda atenta “para ver se as ‘ouço’ crescer”, diz entre risos. Foi por lá que se estreou a conduzir um trator, “num sítio plano, porque é uma coisa extraordinariamente perigosa”. O resultado foi surpreendente: “adorei sentir-me agricultora, lavradora, mesmo que apenas por meia hora”.

 

As suas orquídeas é que já começaram “a arrebentar”. Talvez a primavera não tarde. “A natureza é eterna. Dia após dia nasce um rebentinho, e depois mais outro, que nos vai preparando para o renascimento que também nos renasce, dá-nos outra vontade de viver”.

 

De regresso à rádio, fala de um segundo programa. Este que faz alternadamente com Vítor Silva: “O Café Sudoeste é uma conversa com um convidado em estúdio, num mosaico” também de várias figuras locais, de diferentes áreas. A realizadora, que gosta “muito de aprender”, diz que lhe dá muito prazer fazer parte de mais esta rubrica, que lhe permite ficar a “saber muita coisa interessante sobre a região”. Ao diretor, elogia a capacidade sonhadora, lutadora e resiliente. “Se a RIO ainda existe, devemos ao Vítor”. Nos projetos imediatos, conta que há ainda a recuperar as “Vozes da Radio”, que foi preciso interromper por causa de problemas técnicos, e agora irá para o ar com um novo nome. Como vai ser conduzido por três pessoas, cada espaço terá o seu. O de Judite, às quartas-feiras, vai chamar-se “Navegar é Preciso”. Não vê a hora de começar!

 

EMISSÃO INTERNACIONAL A PARTIR DE ODEMIRA

 

Deitando por terra o velho lugar-comum de que no Alentejo “não se passa nada”, Vítor Silva lembra que “há pequenos projetos muito interessantes, por exemplo, na onda do sustentável e do artesanato” capazes de dar boas histórias. Assegura: “Há aqui uma grande riqueza, para além da cultura popular”. Neste espaço, a radio estava a iniciar um trabalho de recolha oral, com poetas populares, quando a pandemia obrigou o país a parar. A equipa espera vir a reatar este e outros programas interrompidos, e lançar novos.

 

O diretor é perentório: “Não queremos ser elitistas, mas queremos passar ideias novas, outras formas de ver o desenvolvimento local e social. Queremos ser uma rádio local atenta à realidade e à cultura durante o dia, até às 20:00 horas, que é quando temos o Café Sudoeste. E uma radio para amantes da radio à noite, com programas de autor, temas, com qualidade de música e qualidade de texto.”

 

Reafirma que o projeto, nesse sentido, estava em curso, com bons resultado, mas, agora, o momento é de apreensão. Vive-se um impasse. “Não entra dinheiro porque a economia colapsou, não há apoios das atividades económicas, porque não podemos ir para a rua”. Pensar estratégias para mitigar a situação passou a ser uma constante. O público sugeriu “fazer-se um clube de amigos da radio, em que as pessoas entravam com uma participação mensal simbólica, de cinco euros”.

 

Vítor Silva considera a ideia, enquanto manifesta “alguma mágoa”, ao ver os milhões “dados aos meios de comunicação nacionais, e ninguém se lembrar da imprensa regional, cujo trabalho de proximidade e afetividade com as pessoas” e de preservação da cultura popular é “tão necessário e nobre”. Em Odemira, a radio ‘online’ vai prosseguir com a grelha de programas possível. À espera de melhores dias, como Portugal inteiro.

Comentários