Diário do Alentejo

Evocação de uma bebé romana que viveu em Serpa

08 de janeiro 2021 - 17:00

Texto José d’Encarnação (arqueólogo)

 

Procede de Pias, no concelho de Serpa, uma placa de mármore, guardada no Museu Nacional de Arqueologia, de Lisboa. Foi dada a conhecer já em 1940, mas não se lhe terá dado até agora a devida importância, atendendo à singularidade do epitáfio que ostenta.

 

Estava fragmentada em três; uma das partes perdeu-se, mas, devido a ter sido estudada completa (figura 1), não ofereceu problemas de leitura o seu letreiro, redigido, como habitualmente, em língua latina:

 

Apolausis | Antistiae Pr|iscae delici|um Annicia | dierum XXXXVIII | h(ic) s(ita) e(st) s(it) t(ibi) t(erra) l(evis).

 

Antes, porém, de apresentarmos a tradução, cumpre assinalar os aspetos que tornam singular este monumento epigráfico (figura 2).

 

Dir-se-á, em primeiro lugar, que há aspetos estranhos. A defunta – se a leitura Annicia está correta e parece que sim – tem dois nomes, Apolausis Annicia, o que seria excecional para uma criança de tão tenra idade, normalmente identificada apenas com um nome.

 

Depois, não parece normal que se diga ter a criança morrido com 48 dias; o normal seria indicar meses e dias. Essa divisão em meses não foi, todavia, adotada e essa opção detém particular significado: contaram-se os dias e foram poucos… A carga de ternura familiar aqui patente não poderia deixar de comover o passante.

 

O nome Prisca – e este é o terceiro aspeto – é bem conhecido e, na placa, que se destinava a ser colocada na face dianteira do gavetão onde o corpo da menina foi depositado, o que se lê é Ppisca!

 

Que pode concluir-se daqui? Que, como de vez em quando acontece, o canteiro encarregado de gravar o letreiro não compreendeu cabalmente o que vinha escrito na minuta que lhe apresentaram e… cometeu erros!

 

O caso de Ppisca em vez de Prisca não causou problemas, porque de imediato se compreendeu ter havido um lapso. Já a palavra Annicia se não entendeu logo muito bem e se optou por considerar, como se disse, o segundo nome da defunta, até que um dos investigadores, apercebendo-se das outras anomalias ortográficas, apontou mais uma para aqui: o que estava na minuta era annicla (o correto seria annicula) e não Annicia! Não era um I mas sim um L e isso mudava por completo o entendimento do texto, porque annicula, com minúscula, é um adjetivo e não um substantivo próprio e quer dizer “de um ano”! Ou seja: a menina Apolausis morrera com um ano e 48 dias!

 

Estamos, desta sorte, em condições de dar agora a tradução do epitáfio:

 

“Aqui jaz Apolausis, delícia de Antístia Prisca, de um ano e 48 dias. Que a terra te seja leve”.

 

Os estudiosos chamaram ainda a atenção para dois outros aspetos que tornam esse monumento deveras especial.

 

O primeiro é que o nome dado à menina é etimologicamente grego: deriva de um substantivo que significa “delícia”, o que sugere estarmos em presença de um ambiente de escravos, porquanto, nessa época, ter nome grego era, amiúde, sintoma de origem servil, pois os senhores gostavam de dar aos seus escravos nomes bonitos, e escolhiam-nos no vocabulário grego, até para darem uma ideia de serem pessoas eruditas!

 

O segundo aspeto é ainda mais curioso: não bastou à senhora dar à pequenina escrava o nome de Apolausis, com o significado de ‘delícia’, como se viu: especificou o relacionamento que tinha com a defunta, que fora a sua “delícia”, usando agora uma palavra latina – delicium! Um jogo de palavras que manifesta, sem dúvida, elevado grau de cultura por parte desta família romana.

 

Cumpre acrescentar que, no conjunto das inscrições romanas conhecidas até ao momento, da palavra delicium se registam perto de 200 testemunhos, qualificando primordialmente crianças ou jovens prematuramente falecidos. Todavia, no âmbito do território hoje português, é este o único registo.

 

Sim, já sabemos que Apolausis constituía as delícias de Antístia Prisca. Desconhece-se, contudo, qual o grau de parentesco entre as duas. Senhora e escrava, como se disse? Poderia ter sido, contudo, a mãe (natural ou adotiva) e a ausência de menção explícita a essa maternidade justificar-se-ia pela dor imensa causada por esta morte prematura.

 

Concluir-se-á, pois, que esta placa, apesar da sua simplicidade, pode ser considerada sintoma de um grau de cultura incompatível com gentes autóctones, pelo que Antístia Prisca pode ter vindo da península itálica, entre os primeiros colonizadores romanos da região.

 

Encontra-se a placa no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, como se anotou. Ocorrerá, pois, perguntar: dada a sua singularidade, não seria de se propor a execução de uma cópia da lápide completa para figurar no Museu Municipal de Serpa?

 

Essa não é, hoje, tarefa nem difícil nem dispendiosa e a possibilidade de, em devido tempo, ser considerada “a peça do mês” no museu sempre constituiria um pretexto mais para a população se consciencializar da importância que tem a salvaguarda destas pedras com letras, por mais insignificantes que pareçam.

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