Diário do Alentejo

Crónica de Rafael Rodrigues: Os dias eram outros

18 de abril 2020 - 16:25

Tracei o percurso de outras memórias, do tempo em que o tempo não estava parado, à espera que o vírus fizesse o seu caminho e nos deixasse descansados. Percorri caminhos com tempo. Muito tempo. De memória. Li, reli. Escrevi. É isso que proporcionam a pandemia e o determinado isolamento social. Muito tempo. Para nós e para os mais próximos. Porque dos outros só conseguimos saber através do telefone ou das redes sociais. Onde, hoje, perdemos demasiado tempo. Perco demasiado tempo.

 

A pandemia está entre nós e ao que nos dizem as notícias e as comunicações oficiais, já fujo delas por vezes, para ficar ainda uns tempos. Desconhecemos o que nos vai acontecer a todos os níveis: de saúde, sociais, económicos. Mas temos a esperança que, em conjunto, saibamos aprender com esta ameaça à saúde coletiva.

 

No tempo em que os carros andavam mais devagar. O tempo andava mais devagar. Todos nós. Aparentemente, até o mundo não estava envolvido na vertigem, que nos assola, de alcançar um ponto antes que outros, de colocar na rede social uma imagem, uma música, uma frase, vagamente uma ideia, que ainda ninguém se tenha lembrado. O acesso à tecnologia tornou-nos mais individualistas. E comodistas. E conformados. Cada vez menos interrogativos e capazes de estabelecer o contraditório. De nos colocarmos no lugar do outro e perceber a sua perspectiva da vida.

 

Olhamos hoje o mundo com preocupação, através de uma rede opaca e difusa que nos limita o campo de visão. Desviamo-nos do amigo, evitamos os familiares, reduzimo-nos aos imprescindíveis, impedimos mesmo que entrem em nossa casa. 

Nestes tempos de pandemia substituímos aquele abraço pelo receio de um cumprimento ao longe, o aperto de mão pelo olhar desconfiado para com o sorriso franco e aberto, à distância, a conversa próxima pela margem de segurança necessária e aconselhada.

 

Olhamos hoje o mundo com preocupação. Os sons ouvem-se agora melhor, alguns, os chamados da natureza. São aves e mamíferos diversos, salientam-se os sinos das igrejas, quando tocam mesmo sem apelar à participação na missa, e mesmo para os cumprimentos à distância: “Fale mais baixo que nos assusta”. Ouvem-se os sons que poderemos considerar bons e também os idiotas. Felizmente, menos estes, agora, porque a maioria parece ter sido acometida de bom senso.

 

Deixaram de se ouvir os carros, as ruas estão desertas. Nas grandes cidades. Nas localidades do interior, nas pequenas comunidades, é essa a normalidade e continua a ouvir-se a passagem regular dos mesmos veículos motorizados. Só é diferente quando alguém parte. Para terra distante ou para outro lugar ainda mais distante.

 

Os dias são outros. Num ápice, todos, quase, começaram a defender o Serviço Nacional de Saúde (SNS), mesmo os que votaram contra a sua criação e sempre, mas sempre, defenderam as virtudes do serviço privado e da necessidade da privatização de tudo. Alguém destes fala agora dos malandros dos profissionais de saúde que fizeram greve para obter melhores condições para o serviço e para a sua atividade? Paira o silêncio e o reconhecimento pelo desempenho. Felizmente. Espero que isso ajude em futuras decisões quando no Governo e na Assembleia da República se discutir o SNS.

 

Os dias agora são outros. De repente, de um momento para o outro, desligámos de certos assuntos que nos enchiam os dias. Deixámos de dar atenção às diferenças políticas, não mais se falou de prazos para o arranque ou término de obras, essenciais e dentro dos programas municipais.

 

Os dias agora são outros. E as consequências de tudo isto ainda estão por avaliar e, a não existir uma intervenção do Estado, a máquina capitalista vai retirar o máximo proveito da situação, sem olhar a meios ou a quem fica para trás. É a sua essência. Não conhece pessoas ou países, só o lucro e a rentabilidade.

 

Os dias são outros e podem ainda ser piores.

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