Ainda no rescaldo das eleições autárquicas de 12 de outubro último, cujos resultados trouxeram uma nova configuração geopolítica ao Baixo Alentejo, as dúvidas relativamente ao que será do cante na região, sobretudo, em Beja, Serpa, Vidigueira e Aljustrel, onde poderá haver, ou não, uma alteração substancial (não necessariamente má) à abordagem a esta prática cultural, reconhecida como Património Cultural Imaterial da Humanidade, persistem. Afinal de contas, aproximamo-nos da comemoração de mais um aniversário de tal reconhecimento mundial pela Unesco e sobre a programação prevista, para assinalar a data, ainda nada se sabe!Entretanto, preparam-se as adegas para a abertura das talhas e em cada local preparam-se os magustos e outras manifestações báquicas por forma a assinalar o São Martinho e onde o cante intervém de forma mais ou menos direta, dependendo do papel que lhe é atribuído, ora como animador dos festejos, ora como organizador dos mesmos. Independente da forma, prevê-se de antemão que do conteúdo das festividades sairão modas, cantes e descantes. Seja de forma formal, havendo intervenção dos grupos, seja de forma informal, nas reuniões, privadas, de amigos. Afinal, o cante é ainda uma prática viva, em muitas comunidades, tendo ganho novo vigor com o tal reconhecimento mundial que se assinala no dia 27. No Alentejo, o vinho e o cante partilham uma mesma essência: nascem da terra e do povo que nela vive. Ambos são fruto de uma sabedoria antiga, passada de geração em geração, e expressam, à sua maneira, a profundidade da alma alentejana. O vinho, amadurecido sob o sol intenso e moldado pela paciência do tempo, carrega os sabores da planície — a serenidade dos horizontes, a lentidão dos dias, a generosidade da terra. Já o cante, nascido das vozes que ecoavam nos montes e nas tabernas, é a expressão humana dessa mesma paisagem: pausado, harmonioso, carregado de emoção e partilha.E quando os homens e, mais recentemente, também, as mulheres se reúnem para cantar, muitas vezes é o vinho que acompanha, aquecendo o convívio, soltando a voz e o coração. Não se trata apenas de beber, mas de celebrar — o trabalho, a amizade, a memória. No vinho, como no cante, há comunhão, há história e há identidade. Assim, o vinho e o cante são inseparáveis companheiros: ambos fermentam lentamente, ambos amadurecem com o tempo e ambos revelam, em cada gole e em cada verso, a autenticidade e a alma do Alentejo.O vinho e o cante alentejano constituem, portanto, dois elementos centrais do património cultural do Alentejo, ambos profundamente enraizados na vida social, económica e simbólica da região. Embora pertençam a esferas distintas — a produção agrícola e a expressão musical — partilham valores, contextos e significados que os aproximam enquanto manifestações de identidade coletiva. Desde o século XIX e, sobretudo, ao longo do século XX, as tabernas alentejanas foram espaços fundamentais para a prática do cante, ainda que, no período da ditadura salazarista, o cante espontâneo tenha sido associado a uma cultura de boémia, condenada pelo regime. No “Jornal de Moura”, datado de 16/09/1939, publica-se o artigo “Problemas Sociais: A Taberna”, assinado por Augusto C. Costa, que classifica a taberna como um “cancro terrível” e “antro imundo onde se geram os piores crimes”, numa tentativa de manipulação ideológica que termina com um apelo “a todos aqueles a que o copo e a borracha seduziram, que se esforcem por abandoná-los…” Estas e outras manifestações repressivas contribuíram para que no período do Estado Novo, em muitos locais, se olhasse o cante como sendo uma potencial fonte de contestação, levando a que a GNR atuasse no controlo e restrição desta prática nas tabernas. Não obstante, o auge desta linha ideológica é atingido quando, a propósito da instalação das casas do povo, se publica no decreto-lei n.º 30.710 de 27 de agosto de 1940, a proibição e limitação da atividade das tabernas localizadas na proximidade das casas do povo, redigindo no artigo 26.º: “Pode igualmente ser proibida a instalação de estabelecimentos de venda de vinho a copo num raio de 100 metros em torno dos edifícios das casas do povo, sempre que a vizinhança de tais estabelecimentos seja nociva à vida social daquelas instituições”. Ultrapassado que está este tempo, celebre-se o cante e o vinho, com a natural moderação que se impõe!
Florêncio Cacete Coordenador do Arquivo Digital do CanteCidehus/Universidade de Évoraflorencio.cacete@uevora.pt
Foto: Sociabilidades Masculinas na Sociedade de Cima – Santo Aleixo da Restauração. Publicada na revista “La Cant” n.º 6, da Câmara Municipal de Moura