Luís Miguel LuzDocente e membro da Comissão de Trabalhadores do Instituto Politécnico de Beja (IPBeja)
Como docente do IPBeja tenho acompanhado com atenção o debate sobre a oferta formativa no ensino superior. As recentes declarações do ministro da Educação, Fernando Alexandre, na inauguração da nova residência de estudantes do IPBeja, trouxeram novamente à superfície uma questão que me parece central: “Quando não há nenhuma vaga preenchida é preciso, obviamente, olhar para a procura, para aquilo que são as necessidades dos territórios e ajustar a oferta. Nós não podemos insistir em dar uma oferta que depois não tem procura”.Esta posição revela uma confusão conceptual grave: procura estudantil não é sinónimo de necessidade de profissionais. São duas variáveis distintas. A primeira reflete preferências de jovens de 17/18 anos, muitas vezes baseadas em informação incompleta, perceções desatualizadas ou pressões sociais (basta perguntar, na primeira aula, aos alunos, o que os levou a escolher o curso). A segunda resulta de transformações económicas, demográficas e tecnológicas que demoram anos a consolidar-se. Ajustar a oferta formativa exclusivamente à procura imediata é ignorar que o mercado de trabalho de 2029 já se está a desenhar — e que muitos dos cursos sem candidatos hoje correspondem a profissões em expansão acelerada. Não é um problema exclusivo deste ministro ou deste governo, mas isso não torna o erro menos grave.O IPBeja disponibilizou 519 vagas para 2025/2026, mas viu serem colocados apenas 203 novos estudantes na primeira fase, uma quebra de quase 40 por cento face ao ano anterior. Este fenómeno não se circunscreve a uma escola: afeta cursos de todas as áreas.Na Escola Superior Agrária, 91 vagas ficaram por preencher em Agronomia, Engenharia do Ambiente e Ciência e Tecnologia dos Alimentos. Na Escola Superior de Tecnologia e Gestão, com 206 vagas disponíveis, a Engenharia Informática – o curso com mais vagas do IPBeja (61) – tem registado colocações muito abaixo da oferta, apesar de ser uma área com elevada empregabilidade.Este descompasso não é exclusivo de Beja. Dados do IEFP (Instituto do Emprego e Formação Profissional) indicam que setores como energia renovável, tecnologias digitais, sistemas de informação, tecnologias ambientais e agricultura sustentável estão entre os que mais vão crescer até 2030. Paradoxalmente, são precisamente as áreas formativas que registam menor procura estudantil.O que me intriga particularmente é a incoerência das políticas públicas nesta matéria. Desde 2024/2025 o Estado criou 2500 bolsas anuais para estudantes de Educação Básica e mestrados em ensino, cobrindo integralmente as propinas. Esta medida demonstra duas coisas: primeiro, que o Estado tem capacidade de influenciar as escolhas dos estudantes através de incentivos financeiros; segundo, que reconhece a necessidade de planeamento estratégico quando se trata de áreas prioritárias.Se é legítimo e necessário orientar a procura para garantir professores suficientes, por que não aplicar a mesma lógica a outros setores igualmente críticos? Não vejo razão para que áreas como tecnologias ambientais, agricultura, cibersegurança e outras, essenciais para o desenvolvimento do País, não mereçam tratamento semelhante.Acresce que o modelo de ensino politécnico português enfrenta um desafio estrutural adicional: compete diretamente com as universidades pelo mesmo mercado de alunos, sendo sistematicamente preterido. Noutros países europeus, como na Alemanha e França, o ensino superior, equivalente ao politécnico, funciona através de um sistema dual, em que os estudantes alternam períodos na instituição de ensino com períodos na empresa, mantendo contrato de trabalho remunerado ao longo de todo o curso. Este modelo torna a formação técnica mais atrativa do que o ensino universitário tradicional para muitos jovens. Em Portugal, a aproximação crescente entre politécnicos e universidades, sem diferenciação clara de modelos pedagógicos, desperdiça o potencial de um caminho alternativo que poderia responder melhor às necessidades do mercado de trabalho (mas esta é uma conversa para a qual seriam precisas mais páginas).Relatórios europeus indicam que 77 por cento das empresas esperam transformação com a IA (inteligência artificial) até 2030. O Fórum Económico Mundial é claro: as profissões do futuro concentram-se em tecnologia digital, sustentabilidade e saúde especializada.Na agricultura, o risco é estrutural: apenas 3,9 por cento das explorações têm gestores com menos de 40 anos; a idade média é 65. Num contexto de modernização sem precedentes, pensar em eliminar cursos de Agronomia por fraca procura imediata é uma aposta perigosa.Muitos jovens cresceram desligados da realidade rural, sem contacto com os sistemas agrícolas e alimentares que sustentam a sociedade. Esta desconexão não é acidental: resulta de décadas de urbanização acelerada. Desde os anos 60, Portugal passou de um país maioritariamente rural para uma sociedade onde mais de 68 por cento da população vive em áreas urbanas. O resultado é uma profunda ignorância sobre o setor: jovens desconhecem que o setor agroalimentar enfrenta carência crónica de profissionais qualificados. As escolhas académicas refletem esta desconexão cultural, mesmo quando existem oportunidades concretas de emprego.Na informática, a situação não é menos preocupante. Apesar da procura crescente por especialistas em cibersegurança, desenvolvimento de software, inteligência artificial e Internet das coisas, os cursos de Engenharia Informática não conseguem preencher vagas. O problema não é falta de empregabilidade – o IPBeja tem indicadores positivos neste domínio – é de perceção.Não defendo que se imponham escolhas aos jovens, nem que se ignore a eficiência do sistema. Defendo, sim, que o País beneficiaria de um quadro de planeamento que ajude a formar profissionais nas áreas estratégicas. Algumas medidas concretas poderiam incluir a criação de bolsas específicas para cursos estratégicos, complementadas por programas de estágios remunerados e contratos de inserção profissional que garantam oportunidades de carreira atrativas. Estas medidas devem basear-se num planeamento estratégico nacional que identifique, regularmente, as necessidades de recursos humanos qualificados por setor e região, através de projeções independentes. Paralelamente, é essencial desenvolver uma campanha nacional de comunicação e valorização destas profissões, divulgando salários reais, perspetivas de progressão e impacto social.As escolhas dos jovens de 17/18 anos são legítimas e compreensíveis, influenciadas por múltiplos fatores como pressão social, desconhecimento das oportunidades reais ou visibilidade pública das profissões. Não se trata de desvalorizá-las, mas de reconhecer que, em momentos de transição tecnológica e demográfica, o planeamento público tem a obrigação de ajudar a alinhar vocações, oportunidades de acordo com as necessidades do País.O futuro de Portugal beneficiaria de políticas educativas que, para além de seguir a procura imediata, ajudem a preparar o País para os desafios das próximas décadas.