Diário do Alentejo

Crónicas do cante: O sol anda que desanda…. Não tarda nada canta-se ao Menino!

24 de setembro 2025 - 08:00

Os dias já são mais pequenos, a noite cai mais cedo, o recurso ao casaco em noites mais frescas vira de novo um hábito quase diário. Estamos prestes a entrar no outono, já se fala na abertura das talhas pelo São Martinho e daí ao Natal é um pulinho. Este é o momento ideal para se voltar ao terreno, aos arquivos dos grupos de cante que tanto têm para desvendar e que sempre acolhem o Arquivo Digital do Cante de forma simpática e encorajadora.

Entre tantas tarefas que os grupos de cante sempre têm, lá voltaremos às secretárias improvisadas, em espaços pouco óbvios, às vezes, mas sempre acolhedores, com o intuito de organizar e digitalizar os arquivos para depois catalogar e disponibilizar ao público como novas fontes, fundamentais para o desenvolvimento do conhecimento sobre esta prática e seus protagonistas – os grupos de cante!

Da vasta documentação já consultada, no desenvolvimento deste trabalho, eis que, de quando em vez, somos confrontados com um ou outro cartaz alusivo a um encontro de cânticos de Natal, um ou outro ofício com convite ao grupo para participar no cante ao Menino. Ou, mais raramente, com um registo áudio, até, onde, entre várias modas gravadas, surge um cântico de Natal.

A julgar pela datação dos documentos, e ainda que seja cedo para afirmar com a certeza necessária, sugere-se que esta prática, entre os grupos de cante, seja recente na maioria dos casos, pois em alguns locais a própria comunidade não deixou cair no esquecimento e terá sido mais fácil o seu resgate e, mais ou menos, correta interpretação. Não obstante, noutros locais, onde resistem grupos já com largas décadas de existência, denota-se que, apesar de listados estes temas, religiosos, no seu repertório, durante alguns anos não foram interpretados. Quase caindo no esquecimento.

Ainda assim, e por razões diversas, trespassaram o tempo e tornaram-se largamente conhecidos alguns cânticos ao menino. O “Cante ao Menino da Trindade” (Beja), o “Cante ao Menino de Peroguarda” (Ferreira do Alentejo), o “Menino de Pias” (Serpa), o “Cante ao Menino de Ficalho”, do mesmo concelho, são alguns desses exemplos a que se junta “O tronco” de Safara (Moura) e o “Cântico ao Menino de Messejana” (Aljustrel). Em boa hora estes temas voltaram a ser parte importante dos repertórios dos grupos, assim como outros relacionados com o ciclo natalício, como é o caso do “Cante aos Reis de Serpa”, o “Cante aos Reis em Redondo” e algumas janeiras, como as de Mértola, que pelo meio trazem a encomendação das almas. Práticas que foram vividas pelas comunidades e que alguns grupos fazem questão de manter vivos os cantes como parte fundamental do património religioso e deste bem maior que é o cante.

No entanto, há ainda a destacar alguns aspetos, cujos dados se extraem da documentação consultada. Não é comum encontrar letras ou pautas dos cânticos ao Menino na documentação dos grupos; num ou outro grupo encontraram-se letras, mas que, por serem tão antigas, o próprio grupo atual já tinha dificuldade em interpretá-las e verifica-se uma tendência, em alguns grupos, para cantar modas que outros grupos cantam.

Num ou outro alinhamento rascunhado ou anotado em pequenos papéis verifica-se a inclusão de temas que nada têm a ver com o ciclo natalício. O que pode acontecer por duas razões. Por um lado, não é comum numa localidade haver mais do que um cântico ao Menino, logo, havendo 15 ou 20 minutos para interpretação há necessidade de completar o tempo de atuação com recurso a outros temas. Por outro lado, e através da observação de alguns encontros, verifica-se que um ou outro grupo entende que, pelo facto de ir cantar no Natal a um espaço religioso (igreja ou outro), está assim a cantar ao Menino, ainda que os temas não tenham qualquer carácter religioso.

Denota-se, aqui e acolá, uma necessidade de fazer algumas correções, porém, sublinha-se a resiliência dos grupos de cante em manter esta tradição, parte fundamental da prática do cante, bem viva, resgatando do baú modas que corriam o risco de se perder na escuridão dos tempos e cuja salvaguarda é fundamental numa perspetiva de valorização e divulgação nosso património religioso.

Florêncio Cacete

Coordenador do Arquivo Digital do CanteCidehus/Universidade de Évoraflorencio.cacete@uevora.pt

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