Por várias razões, e de diversas formas, as “Crónicas do Cante” têm chegado a vários assinantes e leitores do “Diário do Alentejo” que, ora pessoalmente, ora por escrito, fazem chegar a sua opinião e feedback. Recentemente o Arquivo Digital do Cante (ADC) recebeu um email do assinante do “Diário do Alentejo” Joaquim Cortes, que muito agradecemos pelas palavras que endereça a respeito das crónicas, bem como pela foto enviada, que hoje se publica. Este leitor fez-nos chegar uma foto da década de 1970 do, já extinto, Grupo Coral de Vale de Açor (Mértola). Grupo que ainda não havia sido referenciado pelo ADC.
Esta foto, semelhante a tantas outras espalhadas por aí, realça a importância e alcance das crónicas, sublinha a importância dos registos fotográficos, bem como valida a importância do trabalho que se tem desenvolvido. Obrigado, senhor Joaquim Cortes, por este documento valiosíssimo. Por outro lado, esta foto, que podia estar numa qualquer vitrina da sede de um grupo de cante, remete-nos para a importância da história destes registos e também para a história dos objetos que em tantas sedes partilham o espaço com fotos do mesmo género. Quando se entra numa destas sedes — tantas vezes simples, modestas, mas profundamente enraizadas no território — o olhar é inevitavelmente puxado para os detalhes: um retrato antigo do grupo fundador, um traje, uma peça etnográfica usada por décadas, registos sonoros em cassetes ou vinis, diplomas, medalhas e até as cadeiras gastas que ouviram gerações inteiras a cantar em coro.
Estes objetos não são meros adereços decorativos. São testemunhos da resistência cultural, da identidade de um povo que sempre fez da voz um instrumento de união, de luta e de afirmação. Cada fotografia de uma atuação no estrangeiro, cada troféu recebido num encontro de grupos corais, cada fita com o nome do grupo, o velhinho estandarte, são sinais de um percurso coletivo feito com esforço, paixão e pertença. Preservar estes objetos é preservar a história do cante. E mais do que isso: é manter viva a alma do Alentejo.
O cante alentejano, classificado pela Unesco como Património Cultural Imaterial da Humanidade, vive não só na voz dos cantadores, mas também nos objetos que povoam as sedes dos grupos. Mais ou menos cuidados, mais ou menos acessíveis, mas que, sem eles, a memória torna-se mais frágil, mais distante, mais esquecida.
Alguns grupos têm vindo a reunir os seus espólios, organizando pequenas exposições ou arquivos. Outros, com poucos recursos, confiam na boa vontade dos mais velhos para manter viva a história oral — que muitas vezes se entrelaça com a materialidade dos objetos. É preciso apoiar estas iniciativas, dar-lhes visibilidade e sentido de urgência. Porque quando um objeto se perde não se perde apenas uma peça: perde-se uma história, uma memória, uma raiz.
Em cada sede de grupo coral alentejano há um pequeno museu em potência — feito de coisas simples, mas cheias de significado. Visitar, conhecer e valorizar esses espaços é, em última instância, valorizar o próprio cante. E garantir que a voz do Alentejo continuará a ecoar, de geração em geração, com toda a sua força, beleza e verdade.
A importância de preservar e contar a história destes objetos vai muito além da nostalgia. É uma forma de educar as novas gerações, de inspirar o futuro com base no passado e de reforçar o sentimento de pertença a uma comunidade. São objetos que ligam avós a netos, que contam como se viveu, como se lutou e como se sonhou. Objetos como bandeiras, fotografias, troféus, instrumentos, documentos, trajes ou mobiliário antigo carregam memórias que ajudam a contar a história do próprio grupo coral e/ou da coletividade em que se insere. Eles mantêm viva a recordação dos fundadores, dos eventos marcantes, das lutas e conquistas do grupo ao longo da sua história.
Florêncio Cacete Coordenador do Arquivo Digital do CanteCidehus/Universidade de Évoraflorencio.cacete@uevora.pt
1 – Grupo Coral de Vale de Açor (Mértola). Fotografia cedida por Joaquim Cortes. 2 – Troféu de 3.º classificado nas Festas Folclóricas de Beja, em 1956. Espólio do Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa.