Texto | Jorge Martins
Ilustração | Susa Monteiro/Arquivo
São 4:18 horas. Acordo sem sono. Estou na casa do tio Zé Calha, personagem sobre quem já queria escrever faz tempo. Por entre as muitas memórias deste espaço, realço uma das maiores mas cujo formato quase passa despercebido: um fragmento do muro de Berlim que me chamou a atenção desde a primeira visita. Não fazia ideia de que se teria feito negócio com este marco histórico, duvidei, até, imagine-se, da sua originalidade, mas rapidamente percebi que era só a minha ingenuidade a dominar o cenário.
O Zé Calha é emigrante e hoje, reformado, divide o seu ano, mais ou menos 50/50, entre a Alemanha e Portugal. Quando o conheci, era ele já reformado, a primeira sensação que tive foi a de que era o típico emigrante: uma vida de trabalho, toldada pelo sacrifício “lá fora”. Tropa feita em Portugal, 1966, missão cumprida numa colónia, e respetiva foto de destaque na sala, ao lado do irmão, um ano e pouco mais velho, com quem partilhou a jornada. Esposa de uma vida. Das discretas, das da bata, das que reinam silenciosamente. A que lhe chega ao coração e lhe está sempre no discurso. Descendência portuguesa mas com vida feita “lá” e a quem Portugal diz pouco. Conversa marcada pela comparação constante entre os dois países, em que as palavras e o coração não estão em sintonia.
O “eu” está no centro do discurso. Fala mais do que ouve e tem sempre uma história. Mas não é um “eu” narcísico. É um “eu” de obra feita. De orgulho no percurso e na partilha. Parece trazer superioridade, mas, espremido, traz justiça e noção de missão cumprida.
O Zé Calha usa sempre um pin que o identifica como paraquedista, sempre. Coloca-o religiosamente e, tal como o calçado ou a chave de casa, não sai sem ele na blusa. Tem um canivete sempre pronto. Usa “Old Spice”, uma lâmina e um pincel da barba, daqueles à antiga. O Zé Calha acredita que o alho é a salvação e todas as manhãs desfaz um dente e, qual comprimido da tensão, não falha na sua toma. Tem uma fixação tal com orégãos que já o vi, de verdade, a despejar um bom bocado por cima de um gelado e comer. Gostos, enfim. O Zé Calha não dispensa o seu copo de tinto, ao almoço e nas fugas à garagem que valem sempre mais um ou outro, quer seja lá, onde tem umas reservas, ou no café do lado onde é conhecido de uma vida e onde contraria tendências ao surgir, sem pudores, com um polo cor de rosa e ser motivo de um ou outro piropo que lhe passam completamente ao lado.
Para ele o corpo é uma máquina. Ontem, ao jantar, enumerava uns quantos da sua “turma” que “já lá estão”, sempre com a devida menção à idade com que partiram, numa clara nota de anseio pelo que aí vem e de glória pelo que ainda tem. Dos nossos últimos encontros, noto-lhe esse receio pela aproximação do fim. Não há grandes sinais no corpo de 80 anos, que ainda se monta na sua bicicleta para dar a volta à cidade, mas há no discurso. Há uma repetição da ideia. Uma montanha russa que vai do lamento à glorificação e que anda ali nessa roda emocional.
O Zé Calha encerra uma geração a quem a minha geração talvez seja a última a reconhecer legitimidade e por quem nutre o respeito e reconhecimento merecidos. Às mais recentes talvez já lhes possa dizer pouco, pelo distanciamento ou, até, pelo desconhecimento da história e pelo crescente hiato temporal que os separa, que é proporcional às diferenças que os caracterizam.
A geração que por estes dias já está imune. O Zé Calha é respeitador do próximo mas diz que, em todo o caso, ninguém o prende, dado ser ex-combatente. A geração que leva mais marcas do que aquelas que deixa. A geração que nem sempre tem a flexibilidade que ele tem, de ver e aceitar, mesmo que com reservas e algumas invocações pontuais ao Estado Novo, que o mundo pula e avança e é feito de mudanças várias.
Porque a vida não é sobre o destino, pois esse é igual para todos, mas, sim, digo- -vos eu, sobre a viagem que fazemos até lá chegar. Sobre as paragens várias. As curvas apertadas, as velocidades de cruzeiro e as inversões de marcha. E como para quase todos os destinos, os caminhos são vários e a escolha será sempre nossa.
São agora 5:40 horas. E ainda falta tanto caminho para voltar a amanhecer outro e mais um dia. Na vida do Zé Calha e na de todos nós que por cá andamos.