Diário do Alentejo

Crónicas do cante: A participação infantil e juvenil nos grupos de cante (parte II)

01 de julho 2025 - 08:00

Na crónica anterior abordou-se a importância da participação das crianças e jovens nos grupos de cante, ainda imbuído pelo espírito do Festival Giacometti, em Ferreira do Alentejo, onde esteve bem vincada essa preocupação pelos grupos de cante presentes. Entretanto, o Arquivo Digital do Cante foi convidado a estar presente no Encontro de Grupos Corais da Granja, concelho de Mourão. E, mais uma vez, de forma positiva, se observa o quão importante é o papel da juventude na formação dos grupos.

Nesse dia, na freguesia da Granja, estreou-se nestas andanças o recém-formado Grupo Coral do Círculo Artístico Musical Safarense (Safara, Moura). Já havia existido naquela freguesia uma formação de cante, associada à casa do povo e que não resistiu aos tempos, e agora surge uma nova formação, maioritariamente, composta por um bom punhado de jovens, de vozes potentes, que se misturam com outras menos potentes, mas mais experientes, numa união e harmonia salutares e de louvar nos tempos que correm. A força que transmitem recorda um grupo congénere, cuja fundação foi muito similar, o Grupo Coral Juvenil Os Rama Verde de Vila Nova de Baronia, Alvito. Dois casos que remetem para a formação de pensamento acerca da importância das estruturas do movimento associativo nas localidades.

Num tempo em que tantas aldeias do interior de Portugal se veem confrontadas com o despovoamento, o envelhecimento da população e a perda progressiva de dinamismo social, há um movimento silencioso — mas poderoso — que ainda assim resiste, inova e transforma, e esse movimento é corporizado pelas camadas mais jovens. Aprendem a trabalhar em equipa, a liderar, a gerir recursos e a tomar decisões com impacto na comunidade e estas competências são fundamentais para a sua formação pessoal e profissional e, frequentemente, não se desenvolvem com tanta intensidade no contexto escolar tradicional. Nalgumas pequenas comunidades onde, por vezes, já não há escola, correios ou farmácia, ainda se ouve o riso e a energia dos jovens que, através das suas associações, organizam eventos, recuperam tradições, promovem debates, praticam desporto, fomentam o cante e dão nova vida aos espaços coletivos. O que está em jogo não é apenas o entretenimento, mas o futuro de territórios que se recusam a ser esquecidos.

Daí que as coletividades que ainda resistem e os “carolas” que promovem e dinamizam grupos de cante nestes territórios estão a ir muito para além do manter viva uma prática cultural tão nossa. Estão a formar pessoas, a combater o despovoamento, a reforçar o sentimento de pertença e, assim, contribuindo para o desenvolvimento da região e do País. E não se julgue que nas cidades tudo é mais fácil. Porque não é! Durante algum tempo o “Cante nas Escolas” foi uma realidade, e depois veio a pandemia de covid-19 e bloqueou o crescimento desta linha de intervenção e no período pós--covid, em muitos locais, já não se recuperou. Na cidade de Beja tem sido notável o esforço que o Grupo Infantojuvenil Coral e Etnográfico  Rouxinóis do Alentejo tem desenvolvido, permitindo às crianças da cidade uma participação efetiva no cante, que, de outra forma, não existiria. Assume-se, então, este grupo como uma verdadeira escola de cante, na formação de jovens cantadores que um dia, espera-se, ingressem nos grupos adultos e não deixem morrer a tradição e a prática.

Porém, se por um lado existe todo este esforço, meritório, nalgumas comunidades do Alentejo, visando uma maior participação das crianças e jovens no cante, há depois uma indústria televisiva, atenta e que tem desempenhado um papel significativo na “descoberta” e projeção de jovens talentos, sobretudo, através de programas de entretenimento e concursos de música. Estes formatos, muitas vezes altamente mediatizados, oferecem uma plataforma imediata de visibilidade que dificilmente seria alcançada por outros meios. Para muitos jovens oriundos de meios rurais ou periféricos, a televisão representa uma ponte entre o anonimato e a possibilidade de uma carreira artística, abrindo portas para o mundo da música, do teatro, da apresentação e até do cinema. E uma das primeiras medidas que toma é a assinatura de um contrato de exclusividade e é neste preciso momento que todo o trabalho desenvolvido é bloqueado, ao ponto de impedir esses “novos valores” de cantarem publicamente nas suas terras sem o respetivo aval. Este fenómeno também levanta questões sobre a sustentabilidade das carreiras lançadas sob os holofotes da fama instantânea. A pressão mediática, a falta de acompanhamento profissional e a rapidez com que o público consome e esquece novas figuras podem dificultar a consolidação de trajetos artísticos consistentes. Ainda assim, o Alentejo continua a resistir e a lutar. Também no cante.

Pelo cante. Neste país que, apesar de ter tantas práticas culturais reconhecidas mundialmente pela Unesco como Património da Humanidade, de que é exemplo o cante, vê o Ministério da Cultura ser transformado numa espécie de pelouro ou chefia de divisão de um organismo público, tornando ainda mais difícil o acesso ao mesmo.

 

Florêncio Cacete Coordenador do Arquivo Digital do CanteCidehus/Universidade de Évoraflorencio.cacete@uevora.pt

 

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