No último fim de semana realizou-se, em Ferreira do Alentejo, o Festival Giacometti, que, na sua programação, enalteceu, como não poderia deixar de ser, o cante alentejano. O Arquivo Digital do Cante (ADC) esteve lá com a “Música Portuguesa a Gostar Dela Própria”, no âmbito das missões de cada um dos projetos que se complementam e cruzam na divulgação e valorização do cante alentejano e seus grupos. A estada em Ferreira do Alentejo, que tão bem soube organizar e acolher todos quantos visitaram o festival, permitiu a filmagem de diversos vídeos de todos os grupos do concelho em atividade.
Imbuído ainda no espírito Giacometti, e na sua profunda ligação ao cante, escrevem-se estas linhas sublinhando que ressaltou à vista uma preocupação natural quanto ao futuro dos grupos naquele concelho, como em outros. Pelo que se verifica um esforço imenso na procura de crianças e jovens para integrar os grupos.
De acordo com a informação recolhida até ao momento, nos arquivos dos grupos de cante, presume-se que nem sempre terá havido esta preocupação. No período do Estado Novo o cante acontecia quase sempre em locais de sociabilização, principalmente, nas tabernas, onde as crianças não entravam, como refere Sebastião Rações, fundador do Grupo Coral Operários da Messejana, a uma entrevista que deu ao ADC. Refere este homem do cante que aprendeu a cantar ouvindo, “do lado de fora da taberna, os homens cantando lá dentro” e quando “ia atrás deles, quando iam rua abaixo, rua acima”. Outros depoimentos referem os homens cantando no campo, durante a execução de algumas tarefas, e que os “ajudas”, sempre crianças, iam ouvindo e aprendendo. Perante este quadro limitativo da participação infantojuvenil no cante e nos grupos, fruto das práticas sociais estabelecidas pelo Estado Novo, é pois raro encontrar prova documental que contrarie este dado. Ainda assim, curiosamente, em 1952 é mencionada a participação, a título excecional, do Grupo Infantil da Mina de São Domingos no II Concurso de Cantadores que decorreu em Lisboa.
Porém, terá sido no período pós 25 de Abril de 1974 que ter-se-ão dinamizado vários grupos corais infantis. Num primeiro momento, através das estruturas juvenis ligadas ao PCP, nomeadamente, os grupos corais dos Pioneiros de Portugal, em Ervidel, Beja e muitas outras localidades, abrindo espaço para que outras estruturas e organizações criassem também os seus grupos infantis. Em 1987, nasce o Grupo Coral Infantil (Etnográfico) Os Carapinhas, de Castro Verde, um projeto irrepetível, como recentemente referido, pelo qual passaram imensas crianças que divulgaram o cante de forma ímpar em Portugal e no estrangeiro. À sua imagem e semelhança procurou-se formar outros grupos infantis, em vários concelhos. Alguns vingaram pouco tempo, outros resistiram às dificuldades inerentes a formações deste género, que são muito voláteis.
Um novo impulso na participação infantil e juvenil do cante surge em torno do processo da candidatura do cante ao reconhecimento enquanto Património Mundial da Humanidade. Desses restam alguns, e, entretanto, surgiram outros novos grupos infantis e juvenis, masculinos, femininos e mistos. O Grupo Coral Infantil de Alcáçovas, o Grupo Coral Infantil de Odemira, o Grupo Coral Infantil Campos d’Estêva, de Barrancos, o Grupo Coral Infantil Os Girassóis, de Beja, o Grupo Coral Infantil da Escola da Porta Nova (Moura) e o recém-formado Grupo Coral Infantil do Concelho de Ourique são algumas das formações infantis que têm surgido nos últimos anos.
Paralelamente, começa a verificar-se a inclusão de crianças e jovens nas formações adultas. Não fosse a pandemia de Covid-19, que veio interromper as dinâmicas de inclusão do cante nas escolas, e o panorama poderia ser bem melhor. Não obstante, verifica-se que algumas escolas, ou por sua iniciativa ou por iniciativa dos municípios, tentam caminhar nesse sentido, o que, a acontecer, será uma mais-valia, não só para a formação de novos cantadores na perspetiva de mais tarde virem a integrar as formações adultas, mas, sobretudo, para que a prática e as modas não se percam. Mas, como diz o menino Gonçalo Cardoso dos Boinas de Ferreira do Alentejo: “As pessoas acham que cantar é fácil, mas eu digo-vos: cantar não é fácil! Tens que ter voz, tens que ter manêra!“.
Florêncio Cacete Coordenador do Arquivo Digital do CanteCidehus/Universidade de Évoraflorencio.cacete@uevora.pt