Texto | António Baião
Tenho um orgulho enorme em dizer que sou natural de Ervidel. Ali nasci em 11 de agosto de 1963, o ano em que deflagrou a guerra de má memória para tantas famílias portuguesas e africanas que viram perder os seus filhos em cenários tristes de combate, muitos sem saber porque para ali os mandaram.
Enquanto isso, o regime fascista de Salazar reprimia todos os que se lhe opunham; na primeira linha da resistência estiveram sempre os comunistas e outros democratas.
Decidi partilhar esta reflexão em poucas linhas para abordar o passado e fazer com ele uma análise comparativa com o presente.Na minha aldeia os meninos como eu e outros mais velhos, alguns agora já na fase final da sua vida, recordam-se que a aldeia era dividida em três territórios: a “Baixa”, zona central da aldeia, o “Sertão” e a “Quinta Nova”. Definíamos períodos em que quem morava em cada um deles não poderia ir ao outro e realizávamos batalhas campais, como os filmes imaginários de que ouvíamos falar, do tempo dos romanos, escudos improvisados a proteger a cabeça, nem sempre com resultado positivo, porque aqui e ali ficava um com a cabeça rachada a jorrar algum sangue.
Conclusão: os seres das gerações anteriores, e ainda da minha, eram muito influenciáveis, se calhar nunca o deixaram de ser até hoje. Noutras dimensões, e com outras emoções, tentarei explicar o que penso mais à frente.Começámos a ver televisão na casa da senhora Vitória Ernestina – espero estar a escrever bem o seu nome –, que tinha uma loja e vendia-nos, em troca, gelados de refresco ou pirolitos. Ali nos juntávamos, rapazes e raparigas, horas e horas, a ver o “Bonanza” e outros da altura.
Mais tarde, o meu pai foi emigrante clandestino em França, igual aos que hoje, oriundos de vários cantos do mundo, chegam à minha aldeia.
Lá esteve na sua primeira aventura, sem saber ler nem escrever o português e muito menos a língua e escrita dos gauleses.Ali foi explorado, como atualmente, pela sua vulnerabilidade – os que chegam até nós continuam a ser –, mas conseguia mais algum salário do que o que os grandes agrários do Alentejo para quem trabalhou lhe pagavam cá. Foi desse salário que enviava para Portugal, tornando o nosso país mais rico pelas divisas que recebia das remessas enviadas pelos emigrantes, que na primeira vez que regressou comprou a tão desejada televisão, que passou a fazer da minha casa, com bancos de madeira corridos, a nova sala de cinema, onde sempre cerca de duas dezenas de miúdos da minha geração se juntavam. Ali também sempre entrou o filho do “Toi Cigano”, homem a quem, da sua comunidade, os sedentários e os nómadas deviam respeito.
Sim, o seu filho frequentava a escola connosco e não existia, na brincadeira e no convívio, o rico e o pobre – sim, depois, nas condições de vida, nós sabíamos que alguns tinham o que nós também gostaríamos de possuir, mas que os rendimentos dos nossos pais não o alcançavam.
Isto, sim, fez de mim uma pessoa diferente e aos 10 anos, em pleno 25 de Abril, já tinha condições para entender qual era o lado dos meus pais e, por isso, o meu: o dos explorados e oprimidos. Assim sou até aos dias de hoje.
Sobre os dias de hoje queria dizer apenas:– Sempre houve homens bons e maus, em todas as etnias, religiões e de todas as origens geográficas;– Sempre fomos um país de emigrantes e muitos foram-no clandestinos e lutaram pela sua legalização e integração em condições muito difíceis.
Fomos para outros países e para vários pontos do mundo, porque éramos lá necessários, como os que hoje chegaram até nós o são aqui. Também têm experiências e vivências culturais diferentes das nossas, mas são tão seres humanos e imigrantes como os nossos pais foram emigrantes.
Como tratar este fenómeno? Erradicando as máfias que ainda os dominam, não aceitando que sejam explorados e que adquiram direitos iguais aos nossos, aos dos nossos filhos, quando tendo condições legais de permanência no nosso território. Nunca me esqueço que a ponte Vasco da Gama foi construída por trabalhadores, na sua maioria, africanos clandestinos, que chegavam a Portugal pelo aeroporto de Figo Maduro, tendo muitos deles morrido e ficado dentro do betão, sem que se soubesse o seu nome e quem era a sua família. A quem interessou essa situação? A quem interessa hoje a situação que vivemos?
Aos novos representantes do capitalismo que deles se aproveitam, clandestinos e vulneráveis, para com eles pressionar também os salários dos trabalhadores nacionais. Vejamos o que está a acontecer com a propalada “Via Verde” para a contratação de imigrantes que os patrões da hotelaria, turismo, construção civil e agricultura tanto dizem necessitar. Como a legislação aprovada obriga a que facultem habitação, formação e estabeleçam um contrato de trabalho direto no respeito pelo que estabelece a legislação laboral do nosso país, eis que dizem não conseguir satisfazer estes requisitos. Eles, os patrões, os amigos dos partidos de direita que com as redes sociais nos enchem de mentiras, que não conseguem provar, nem os relatórios de segurança os confirmam, não querem regulação nenhuma da imigração, eles entendem-se bem com as máfias e algumas são eles que as alimentam.
– A segurança e a insegurança são fatores criados pelos fazedores do ambiente de medo, porque deles se servem para efetuar a sua estratégia de manipulação das populações. A justiça existe no nosso país e é igual para todos e funciona, porque os homens maus, todos os homens maus, são julgados pelos seus atos e crimes. Sim, podemos depois afirmar que os mais fracos, vulneráveis e pobres terão sempre mais dificuldade de acesso à sua defesa na justiça, porque os ricos recorrem aos bons gabinetes de advogados e podem roubar, fugir aos impostos, deslocar as suas fortunas, que construíram à custa da exploração dos trabalhadores, para diferentes países fiscais. Isso é que me preocupa;
– A falsa mensagem repetida sobre o RSI (Rendimento Social de Inserção). Apenas para ajudar a reflexão, as pessoas de etnia cigana são menos de um por cento dos portugueses que recebem RSI. O RSI tem regras a que todos somos obrigados a cumprir e a denunciar se assim não for. Foi criado para defender os trabalhadores cujas empresas de patrões sem escrúpulos se apresentavam à falência e com 50 ou 60 anos de idade, findo o subsídio de desemprego, esses trabalhadores ficavam sem qualquer suporte nas suas vidas. Quem usa e abusa deste discurso de ódio, para apenas conseguir os votos dos menos esclarecidos, não tem uma palavra para o dinheiro que sai da nossa segurança social para pagar os lay off de reestruturação de grandes empresas que têm chorudos lucros e ainda recorrem a esse expediente, e recebem milhões, para pagar aos trabalhadores que colocam por seu interesse económico e financeiro nessa situação.
Como a estratégia desta gente tem sido a de colocar o pequeno contra o pequeno, deixando-nos a discutir na espuma dos dias com intoxicação das redes sociais com falsidades, o povo, e também algum do povo da minha terra, infelizmente, alinhou nesta farsa. Espero que não seja tarde quando perceberem a verdadeira estratégia e objetivos desta gente.