Diário do Alentejo

Digo eu…: Há preto e branco

04 de novembro 2024 - 10:00
Ilustração| Susa Monteiro/Arquivo

Texto | Jorge Martins

Entro num café onde nunca, em mais de uma década de ali passar, havia entrado.

Ao lado do balcão, como quem faz uma pausa dado que a clientela se reduzia, até à minha entrada, a uma pessoa, está alguém. É a funcionária. Nos seus cinquentas, diria. Interrompe ao de leve a conversa por breves instantes apenas para aquele aceno com a cabeça de como quem pergunta “o que é que vai ser?”. Obriga-a a proferir duas palavras em resposta ao meu “bom dia” e, em seguida, peço o café. Foi o mote para continuar onde tinha ficado e eu, intruso, entrar neste triângulo apenas enquanto espetador atento. Nem o João Baião na “Casa Feliz” projetada num grande ecrã atrás da senhora me fez desviar daquela conversa. E se queria...

“Pois é, as ruas do Cacém estão mais bonitas. Não tem nada a ver com o tempo em que lá morava. Subi muitas vezes aquela avenida dos Bons Amigos”. Penso: eu não subi muitas vezes, mas conheci, em tempos, talvez próximos desses aos quais a pessoa se refere. E não, não ficou na memória como um sítio onde gostasse de viver, apenas porque era só uma avenida, grande, à saída do comboio, numa terra que é um dormitório povoado (sem desprimor, mas é o que é), onde a agitação das manhãs contrasta com a incerteza das noites. E, sim, falamos daquele Cacém, na linha de Sintra, que toda a santa manhã é falado nos blocos de trânsito na rádio.

Mas voltando ao estabelecimento comercial.

“Estive lá há pouco tempo, as ruas estão melhores, mas fiquei impressionada: não se vê gente assim... como nós» (e faz uma espécie de um círculo com a mão como que a envolver-nos aos três nesta bolha de privilégio de termos nascido caucasianos). “Aquilo agora é só pretos”. Esta última palavra é dita num tom próximo da surdina, pese embora reforce que éramos as únicas três almas, e brancas, naquele espaço. “Olhe que eu subi a avenida e não vi um branco”. O que se seguiu foi o cliché que se aqui não escrevesse, desse lado, digo-vos eu, conseguiriam adivinhar: “Atenção que eu não tenho nada contra os pretos, mas já não se veem pessoas das nossas”. Continuei a beber o meu café em passo apressado e deixei uma moeda em cima do balcão. Mas antes de sair, a outra cliente entrou em jogo, levantou-se e disse: “Pois, mas olhe que são eles que trabalham. Se passar numas obras, os brancos que vê lá estão cá fora a olhar”. E continua: “Eu tenho um genro que é... bom, ele não é preto, ele é mulato, mas é muito bom moço”. Vejam lá vocês esta ave rara... Um mulato boa pessoa. Este mundo já nos dá de tudo.Saí.

Fui a pensar naquilo. Fui a pensar em que ano estamos. Em que país vivemos. Na hipocrisia que é queremos dizer que o racismo está em vias de extinção por cá, a não ser quando é sentido na pele... Ou por causa dela.

Todos, tirando os visados, já terão usado ou ouvido a expressão batida do “até tenho um amigo...”. Mas também muitos já terão ouvido a expressão “eu tanto aperto a mão a um branco como o pescoço a um preto”. As referências racistas camufladas de compaixão estão longe do fim. E se a mim aquilo me incomodou por me fazer crer que não é com estas pessoas que quero partilhar o mundo, a verdade é que a outros incomodará infinitamente mais pela sensação de não pertença a um mundo, a um país onde também pertencem. E esta afetação leva a danos emocionais difíceis de resolver e cuja saída acaba por se traduzir, não poucas vezes, em revolta social.

O nosso desconforto generalizado com o que é diferente é sobejamente conhecido.

Os americanos são referência para poucas coisas, bem sabemos. Mas a aceitação “recente”, por escolha voluntária, de um presidente negro, faz-nos crer que percebem que as pessoas são isso mesmo: pessoas. Nativos ou não, devem valer pelas suas competências técnicas, sociais e humanas e não pela sua tez. Ou não serem válidos só pelo aparente privilégio de terem nascido com a cor supostamente correspondente ao país onde vivem (e exemplos de erros de casting não faltam).

A hipocrisia desta gente vai mais longe: os mesmos que multiplicam estas conversas de café e as tornam crenças são aqueles que deliram, por exemplo, com vitórias desportivas conseguidas por intérpretes como Éder, Pedro Pichardo, Nelson Évora, Patrícia Mamona e muitos outros. Nesses momentos, colocar a bandeira portuguesa às costas e proporcionar uma boas rodadas de cerveja em festa a quem os vê já não traz a amargura de ver a avenida dos Bons Amigos cheia de gente que não é “como nós”. Também o racismo tem o seu quê de conveniente.

 

Nota do autor: não obstante este texto ter sido escrito antes dos recentes acontecimentos na zona de Lisboa, que marcam a atualidade, a verdade é que, com ou sem eles, este continua a ser, infelizmente, um tema intemporal.

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