Passou mais um 27 de novembro, dia em que se celebrou mais um aniversário, o 11.º, sobre a data em que o cante alentejano foi inscrito na lista representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco. Mas que dia tão bonito! Cantou-se um pouco por toda a parte. Castro Verde, Cuba, Vidigueira, Beja, Serpa e até Almada, e na Casa do Alentejo, em Lisboa, na diáspora, foram alguns dos locais em que se cantou o Alentejo, se mobilizaram grupos de cante por forma a assinalar a efeméride! Com mais ou menos custos, com maior ou menor envergadura, cada concelho quis mostrar o seu cante, organizando para isso tais eventos, em que lá foram os grupos cantar um punhado de modas, entoando em esperada apoteose final um tema forte de forma a transmitir a pujança da data e do cante em si. Em Alvito, o “Cantexto” marcou presença mobilizando alguns grupos e a “Antena 1” fez um direto a partir de Aljustrel, tendo a jornalista Ana Sofia Carvalheda acompanhado o Arquivo Digital do Cante e o Grupo Coral do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Mineira de Aljustrel. Uma panóplia de acontecimentos com o mesmo propósito. Se esta fosse uma coluna de opinião, pessoal, muito mais se poderia escrever, mas não é! Cingimo-nos, portanto, à documentação que ora vamos recolhendo e encontrando nos arquivos dos grupos de cante, ora nos vão fazendo chegar amigos e curiosos do cante. Não obstante, e estando quase permanentemente no terreno, não ficamos imunes às questões levantadas pelos grupos e respetivos responsáveis. E uma das questões que mais se ouve e inquieta é sobre o que é que mudou passados 11 anos deste reconhecimento? Assumindo esta questão como central, um vasto conjunto de inquietações associadas se lhes segue. Há mais grupos com sede própria? Os apoios do Estado aos grupos, diretamente, quais são? Os apoios ou subsídios anuais, atribuídos pelas autarquias aos grupos, aumentaram de forma substancial? A qualidade dos eventos organizados pelos grupos melhorou e reforçou-se? Qual o nível de cedência de transportes aos pedidos dos grupos? O cante nas escolas está implementado? O que se está a ensinar nas escolas é cante? Valoriza-se o grupo, através do ponto, alto e coro, ao invés da promoção individual dos cantadores? Quem acompanha e controla esta dinâmica nas escolas?Pese embora não sejam novas estas e outras inquietações, o facto de existirem demonstram, por si só, que há ainda um largo trabalho a fazer e um caminho a percorrer e para o qual muito ajudaria uma intervenção regional, organizada, coordenada e focada que desse suporte e apoio aos diretores, ensaiadores e, consequentemente, aos grupos. Entretanto, no passado dia 1, coincidindo com as comemorações da Restauração, foi anunciada a reorganização do Grupo Coral da Casa do Povo de Santo Aleixo da Restauração, referência histórica do cante alentejano. Esta reativação merece ser saudada, não apenas pelo valor simbólico que representa, mas também por ilustrar um fenómeno característico desta prática cultural, que merece ser estudado a detalhe: o ciclo de constituição, visibilidade, declínio e ressurgimento dos grupos.Esse processo, longe de ser aleatório, reflete fatores socioculturais e institucionais, como o apoio autárquico, a participação das associações locais, a transmissão intergeracional dos repertórios e as condições socioeconómicas das comunidades. A continuidade de um grupo depende, assim, tanto da mobilização da memória coletiva – fundamento identitário do cante –, quanto da existência de práticas formais ou informais de ensino e valorização. Quando estes elementos se fragilizam, observa-se a diminuição da atividade performativa, conduzindo à hibernação ou dissolução das formações corais. A oscilação entre presença ativa e aparente desaparecimento constitui, portanto, um traço estrutural do ecossistema cultural do cante alentejano.No sentido de contribuir para a reconstituição histórica do grupo de Santo Aleixo da Restauração, cuja atividade remonta a 1934, trazemos agora dois documentos relevantes: um manuscrito de 2007, assinado por Bento Figueira, então responsável do grupo, dirigido ao Grupo Coral da Casa do Povo da Amareleja, e um cartaz do Encontro de Coros realizado em Salvada (Beja), em que participou o grupo agora reativado. Estes registos constituem importantes elementos de memória e reforçam a necessidade de aprofundar o estudo da dinâmica organizativa dos grupos de cante.
Florêncio Cacete Coordenador do Arquivo Digital do CanteCidehus/Universidade de Évoraflorencio.cacete@uevora.pt