Diário do Alentejo

Crónica da diretora que salvou as crianças do Natal

16 de dezembro 2025 - 08:00

 

 

Rodrigo Ramos

 

Há, a sul do Tejo, uma planície de casas batidas pelo sol, que se estende preguiçosamente por largas avenidas e bairros em esquadria, e que responde pelo bom nome de Pinhal Novo. Sem museus ou monumentos de valor, tem para amostra dois jardins, uma estação de caminhos de ferro e, para romaria turística, pede emprestado o castelo a Palmela e a Arrábida a Setúbal. Muito fértil em crianças, a vila deu em plantar escolas, as quais se encheram de alunos. Cultural e civicamente, são maioritariamente católicos ou, melhor, fazem parte dos auto-proclamados “católicos não praticantes”, forma de dizer que concordam com os valores apregoados por Santo Agostinho, mas só cumprem aqueles que não lhes atrapalham o dia e sabem que a igreja está lá para batizados, casamentos e funerais, por esta mesma ordem, salvo raras exceções. Neste contexto social, muito dificilmente um qualquer aluno de outro credo que se apresente num recinto escolar se sentirá deslocado. Se não acredita em Deus, não está muito longe dos seus colegas católicos que, em acreditando, não lhe prestam grande atenção.

Ora, o Estado é laico e as localidades não se querem católicas. Ainda assim, o Pinhal Novo sabe que, no contexto europeu contemporâneo, o Natal é mais cultural do que religioso. Vai daí, aformoseou-se com luzinhas que piscam, um mercado de Natal que cheira a chocolate quente, a castanhas assadas, café e lenha a arder e onde se ouvem músicas natalícias.Foi então que, embrenhado neste espírito de compaixão, solidariedade, união, amizade, paz e alegria afetiva, o Agrupamento de Escolas José Maria dos Santos, em Pinhal Novo, olhou embevecido para os dois ou três meninos que rezam a outros credos e teve a lembrança de acabar com o Natal nas fotografias dos petizes. É muito natural: diretores que foram formados nos tempos em que a ideologia pós-modernista ainda dominava os cursos de didática das faculdades de Ciências Sociais e Humanas acabam invariavelmente por levar o marxismo cultural para dentro das escolas.Já os pais, pouco dados ao pós-modernismo, insistem em conservar o jeito de querer o melhor para os seus filhos e correram a arremeter palavras nas redes sociais como se fossem ponteiras de faca. À semelhança de décadas e décadas de tradição, querem que as fotografias dos seus educandos, commumente cobradas ao preço de um rim no mercado negro, tenham como cenário os habituais adereços de Natal. Por seu turno, a direção do agrupamento não enfiou o barrete (vermelho!) e defende-se: a que despropósito se colocariam agora adereços de Natal quando sabemos bem que a escola é frequentada por uns quantos meninos que não oram a Jesus? Eu, que como São Tomé tenho de ver para crer – a tal ponto que, se no meu velório, não vislumbrar o meu corpo morto, vou confiar piamente que ainda vivo – compreendo-os bem. E já estou a imaginar estes meninos de outras fés, pobrezinhos, hirtos de pasmo, a entrar numa sala onde uma árvore de Natal feita de cartolina, embalagens da Tetra Pak e papel higiénico se eleva, altiva e soberba! Que humilhação! A escola deve ser um espaço de inclusão, argumenta a diretora Maria Pena, que descobriu uma gravíssima incompatibilidade entre o recinto escolar e a tradição secular natalícia. E porque leva muito a sério a inclusão, como primeiro ato excluiu o Natal.De facto, convenhamos que se há época que destrói a inclusão é sem dúvida a quadra natalícia! A celebração de um judeu que andava sem eira nem beira, pisando as terras empoeiradas e secas da Judeia arrebanhando este e aqueloutro, e para quem Paulo jurou não haver “diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher” (só por mero desconhecimento é que a ideologia de género não tem um petisco nesta frase!), é suficiente para vassourar o presépio para dentro de uns caixotes a entulhar na arrecadação. Que depois os escrupulosos encarregados de educação de Pinhal Novo embirrem com apagamentos culturais é lá com eles! A mim, na qualidade de indivíduo habilitado para a docência, só venho pedir ao Ministério da Educação esclarecimento: é então de levar à pedagogia a promoção da diversidade através da anulação da identidade cultural ocidental? Vá que isso, em vez de nos congregar, acabe por nos alienar, como devem os docentes proceder?Eu envergonho-me de confessar que tinha por princípio elementar a noção de que a verdadeira inclusão se fazia ao convidar os de fora a participar nas nossas heranças tradicionais, promovendo a harmonia entre povos, embora respeitando quem optasse por não aderir. Que desgoverno ia a minha alma! Agora já consigo rir de mim, mas houve um tempo em que julgava que o papel da escola era educar sobre o património cultural comum, do qual era parte integrante, e que, mais do que subtrair, servia para acrescentar. Era um disparate cá meu, deixem-me. O que querem? Tinha cá para mim a ideia peregrina de que os alunos beneficiavam por conhecer e experienciar tradições diferentes, como o Natal, o Hanukkha, o Diwali, a Festa das Lanternas, e outras tantas festividades, e que a inclusão se cumpria precisamente na conjugação de toda essa diversidade cultural. Qual! A direção do Agrupamento de Escolas José Maria dos Santos é que está bem. Deixemo-nos destas alarvidades sobre a exaltação de um sentido de comunidade e construção de memórias comuns, valorização de referências culturais partilhadas, ou sobre como a laicidade não é sinónimo de ignorância e outras ingenuidades! Somente, uma preocupação: eu, por vezes, percorro as ruas da escola e, ao caminhar ao longo da vedação, vejo aquelas crianças a correr, ouço-as a rir e receio que, caso alguma tenha a infelicidade de partir um braço, a boa diretora, em nome da inclusão, se lembre de engessar as restantes.

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