Diário do Alentejo

Digo eu…: Uma questão de tempo

07 de outubro 2024 - 11:00
Ilustração| DR

Texto | Jorge Martins

 

Não lido bem com a ideia de finitude.

Sei que para tudo, ou para a maior parte das coisas, existe um fim. Mas, na maior parte delas, pensar nesse momento traz sempre à tona uma tristeza latente que não nos deixa viver o momento presente em pleno.

Bem sei que é uma questão de perspetiva, de copos meios cheios, de carpe diem e etc. e tal.

Mas é também uma questão de consciência, de racionalidade e de pés na terra.

Não somos todos iguais, e ainda bem que assim é. Sabermos aceitar essas diferenças sem palpites de como deveria agir o próximo, munir-nos de ferramentas para lidar com as nossas características e respeitar o ciclo da vida podem ser partes integrantes do desafio que é esta jornada.Quando a nossa integridade (física, neste caso), ou a dos nossos, é colocada em causa e existe um laivo que seja de que esse final pode estar à espreita, toda essa racionalidade cai por terra. Somos humanos, preparados para reagir, intuitivos no momento de proteger.

Veja-se, por exemplo, o recente episódio em que a terra tremeu (mais do que o normal, segundo a medida da escala que o avalia). Estava na ponta contrária do País. Apesar do calor, tive uma noite santa, para mais estando ainda de férias. Porém, ao acordar, ao ligar a Internet, ainda na cama, quis também o meu telefone que eu sentisse um pouco do sobressalto que havia sido sentido por tantos durante aquela noite, mas com delay e mal comparado (pois imagino, pelos relatos, que aquele seja um momento de susto tremendo, quando sentido “na pele”).

Mas, bom, ao ligar, verifico que tenho perto de 100 notificações, em diferentes grupos, o que rapidamente me fez perceber, pela falta de relação entre esses grupos, que se tratava de algo mais global. Mas porque vos trago esta história, cujo impacto, como tantas outras de maior ou menor dimensão no que à catástrofe diz respeito, já vai sendo esquecido? Retomando o raciocínio anterior, sem exceção, o relato de todos aqueles que têm filhos começava com: “Fui logo ver dos miúdos”. Dir-me-ão: mas, e não é esse o papel dos pais? Qual a novidade? Digo-vos eu: nenhuma… Não há novidade. Não há questão. Não há discussão. Mas há a certeza de que isto deriva desse instinto protetor que se mistura com o receio da finitude com que comecei.

Todos caminhamos na mesma direção.

Mas quando a meta nos é anunciada, sem pré-aviso, quando nos é atribuída uma data de validade, tudo, a partir daí, tem dois caminhos: o da racionalidade que nos desperta uma urgência em fazer tudo o que ainda não foi feito, ou até o que já foi e nos encheu o coração ao ponto de repetir; ou o da entrega, em que nada faz sentido, pois o esforço (quando estamos em condições de o fazer) não compensa a ausência de memórias que vamos guardar, pois o tempo não permitirá tal arquivo. Para este último, conta muito o altruísmo de cada um, que, mesmo sem o vislumbre de umas memórias futuras, entrega tudo ao propósito de as criar com e para os seus.

Mas é também esse altruísmo que nos pode trair. Quando falamos dos nossos, de quem mais nos diz, fica difícil encarar com normalidade o nosso dia a dia, nomeadamente, os momentos de lazer e alegria. Esse altruísmo faz-nos duvidar da justiça do momento, do sentido de o viver quando, já ali ao lado, há um final à beira de acontecer.

O que nos diz a racionalidade (e até quem vive a situação na primeira pessoa) é que as máquinas não devem parar e tampouco será esse o desejo de quem nos quer bem. Mas mesmo para os mais racionais, no momento da verdade, salvo seja, esse exercício é muito mais teórico do que prático.Os finais são novos começos de algo, é certo. Mas nem sempre estamos dispostos a recomeçar, ou a encarar o lado bom, até porque, muitas vezes, esse não existe.

A (matur)idade traz-nos mais dúvidas e menos certezas. Sabemos melhor o que não queremos do que aquilo que achávamos que queríamos. Desejamos ser mais e não ter mais. Vivemos mais profundamente e menos intensamente. Obrigamo-nos menos e desfrutamos mais. Mas a idade, que encerra em si um saber de experiência feito, leva-nos a inocência à qual tantas vezes gostávamos de voltar e dá-nos a consciência, tantas vezes dispensável, de que tudo tem um fim…

Por isso mesmo, hoje ficamos por aqui.

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