Diário do Alentejo

Carmen Goínhas, uma Mulher com M maiúsculo

08 de outubro 2024 - 08:00
Foto | D.R.Foto | D.R.

Texto Ana Maria Ferreira

 

Fez 100 anos no dia 31 de agosto que nasceu em Beja Carmen Goínhas, uma mulher que haveria de marcar, pela positiva, muitas gerações de jovens, quer como professora no liceu de Beja, quer como chefe de escuteiros, quer como cristã e cidadã interventiva e empenhada nas questões da dignidade humana e da justiça social!

Como professora marcou pela competência, pela imparcialidade na atribuição das classificações, pela capacidade de inovar, tornando a prática do ensino da físico-química mais experimental e atrativa e, sobretudo, pelo bom relacionamento e proximidade que conseguia manter com os alunos.

Foi uma figura polémica, pois nunca se encaixou perfeitamente em nenhuma corrente política ou ideológica! A sua ideologia baseava-se na defesa intransigente de certos valores cristãos, tais como a liberdade, a justiça, a verdade, a solidariedade e a defesa da vida, da igualdade de oportunidades e da dignidade da pessoa humana.

Como professora foi “muito estimada” pela maioria dos alunos, mas uma “fera” para alguns, sobretudo, para os alunos externos, porque, apesar de ser uma excelente professora, era demasiado exigente e não admitia “cabulanços”, nem “cunhas” e não dava “notas por favor”!

Com um sentido crítico apurado e um espírito de justiça implacável, sempre fez questão de trabalhar de acordo com os seus princípios e convicções. Durante o fascismo, por exemplo, foi minando, por dentro, o espírito com que tinha sido criada a Mocidade Portuguesa, transformando os campos de férias da M.P.F. em oportunidades para fazer pensar, despertar o sentido crítico das jovens e fazer desabrochar a consciência política relativamente ao que era preciso mudar no País, nomeadamente, a guerra colonial, o analfabetismo, os bairros de lata, as desigualdades sociais! Foi neste contexto que a conheci, no verão de 1971, e garanto que foi nesse campo de férias que pela primeira vez ouvi e percebi a mensagem de cantores de intervenção como Zeca Afonso, José Mário Branco, Francisco Fanhais, e foi nesse campo de férias que comecei a ganhar alguma consciência do que estava mal e era preciso mudar a nível político e social! Atrevo-me a dizer que se durante o fascismo não tivessem vivido algumas pessoas como ela talvez o 25 de Abril e a democracia acontecessem muito mais tarde...

Conheci-a depois melhor no escutismo, primeiro no ramo do escutismo feminino, Guias de Portugal, que era o que então existia (nessa época, em Portugal, não havia grupos mistos, era rapazes a um lado e raparigas a outro); mais tarde, como chefe de escuteiros, já em grupos mistos, num agrupamento por onde foram passando os meus quatro filhos. Em qualquer dos casos o projeto educativo assentava em valores primordiais como a paz, a liberdade responsável, o amor e o respeito pela natureza, o respeito por si próprio e pelos outros! Desde bem cedo começou a despertar nos jovens uma consciência ecológica profunda e abrangente, proporcionando-lhes experiências marcantes e belas de contacto direto com a natureza, em contraste com visões tristes e chocantes de poluição e degradação do ambiente natural e social.

Fomentava nos jovens o desabrochar do espírito crítico e interventivo, incentivando sempre à resolução dos problemas em equipa. Não valorizava a competição, mas, sim, a cooperação!

Nunca propunha soluções, acreditava sempre na capacidade criativa dos jovens e, apelando “ao melhor de cada um”, deixava-os criar e aprender em liberdade, “fazendo”, “errando” e “refazendo”.

Acreditava que “o sonho comanda a vida”, como dizia o poeta António Gedeão, e ajudava os jovens a concretizar muitos dos seus sonhos, inclusivamente, chegou a financiar bolsas de estudo para alunos com excelentes capacidades, cujas famílias não os podiam manter a estudar, pois nesse tempo só estudava quem tinha dinheiro!

Com o seu forte sentido de justiça, não lhe eram indiferentes as assimetrias sociais da sociedade do seu tempo. Assim, procurou intervir civicamente, incentivando os alunos a participarem em projetos de promoção social, como aconteceu, por exemplo, no bairro da Esperança, mobilizando sempre a participação das populações locais e das entidades responsáveis. Sei que foi um trabalho muito participativo, que gerou pequenas mudanças, que fizeram a diferença para aquelas pessoas, por isso desafio os antigos alunos e os que participaram nessas iniciativas a descreve-las também, aqui nas páginas deste jornal, para completar e enriquecer esta pequena homenagem!

Lembro a todos os antigos alunos e escuteiros que no dia 31 de agosto de 1924 nasceu Carmen Goínhas, uma Mulher com M maiúsculo, que sonhou, acreditou e viveu intensamente os seus ideais, uma Mulher íntegra, um espírito aberto e esclarecido, que procurou, sempre (e acho que conseguiu), viver o essencial do Cristianismo e “deixar o mundo (à sua volta) um pouco melhor do que o encontrou”, quando nasceu, há 100 anos!

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